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sexta-feira, 20 de maio de 2022

Pessoa. Uma Biografia, por Richard Zenith


Diz-se que Pessoa não teve vida fora da obra, mas Richard Zenith precisou de uma dúzia de anos e de 1200 páginas para escrever a sua biografia, agora lançada em português pela Quetzal, depois de a edição original em língua inglesa ter chegado à final do prémio Pulitzer. Sai-se deste livro, escrito numa prosa cativante e precisa, com a noção exacta de tudo quanto não sabíamos sobre o escritor central da literatura portuguesa do século XX.

 

Luís Miguel Queirós, 2022/05/20




Quando recebeu o Prémio Pessoa, em 2012, Richard Zenith já estava a trabalhar nesta biografia, cuja edição portuguesa foi apresentada esta quinta-feira na Gulbenkian. Lançada em Julho de 2021 no mundo de língua inglesa e recebida pela imprensa norte-americana e britânica com críticas poucos menos do que estratosféricas, esta obra monumental chega agora, com a ajuda dos tradutores Salvato e Vasco Teles de Menezes, à língua e à cultura portuguesas, que ao longo de mais de 70 anos – desde que João Gaspar Simões publicou, em 1950, a sua pioneira Vida e Obra de Fernando Pessoa – não se mostrou capaz de produzir uma biografia actualizada do seu mais importante escritor moderno. Uma lacuna genuinamente enigmática e que as anteriores biografias do espanhol Ángel Crespo e do francês Robert Bréchon não tinham verdadeiramente conseguido colmatar.

O próprio Zenith confessa aqui ter receado, quase até ao fim, que este Pessoa. Uma Biografia viesse apenas confirmar que o seu título propunha uma espécie de contradição nos termos e que não era possível escrever-se uma biografia satisfatória do elusivo criador de heterónimos. Afinal é. E a espantosa quantidade de pequenos factos desconhecidos, negligenciados ou esquecidos que muitos anos de pesquisas lhe permitiram reunir neste livro, ou a luz inteiramente nova que lança sobre o papel desempenhado por alguns familiares do biografado, como a prima-tia Lisbela ou o tio Cunha, ou ainda as notáveis páginas em que contextualiza o mundo em que o poeta viveu, de Durban a Lisboa, sendo alguns dos inquestionáveis méritos desta obra, não devem ocultar o seu triunfo principal, que é ter realmente conseguido contar-nos a história de Fernando Pessoa. É uma figura viva que emerge destas páginas, com uma existência exterior não tão monótona como nos fizeram crer, e uma das mais vastas e complexas vidas imaginadas que algum cérebro acolheu.

A sexualidade, os interesses esotéricos, as posições políticas, os preconceitos, tudo é tratado por Zenith com elegância e imparcialidade, evitando impor juízos ao leitor. Se esta biografia propõe uma tese é a de que Pessoa era “um implacável transformador de si mesmo” e que gostava de antecipar o que ainda não era para se obrigar a chegar lá. Foi assim que se tornou o génio que decidiu ser.

Nasceu em Washington, nos Estados Unidos, em 1956. Como é que veio parar a Portugal e descobriu Fernando Pessoa?
Vim com uma bolsa da Fundação Guggenheim para traduzir e organizar uma antologia de cantigas medievais. Publiquei então 113 Galician-Portuguese Troubadour Poems, de que acabou agora de sair, 25 anos depois, uma edição muito revista e ampliada. Mas o interesse por Fernando Pessoa é anterior. Tinha uma amiga em Chicago, onde vivi um ano, cujo namorado português lhe passou alguns poemas do Pessoa: um deles, lembro-me bem, era a Tabacaria. Como ambos sabíamos espanhol, conseguíamos perceber o que líamos. Ficámos fascinados.

Em que ano se passou isso?
Talvez em 1978. A seguir fui para o Brasil, onde estive três anos e aprendi português. Ainda hoje tenho algumas edições brasileiras do Pessoa que comprei na altura. Mas nunca imaginei que iria trabalhar sobre a obra dele. Só quando cheguei a Portugal em 1987, com a tal bolsa, é que li o Livro do Desassossego, que tinha sido publicado em 1982. Achei-o espantoso e montei um projecto para o traduzir para inglês.

Foi a primeira edição em língua inglesa?
Já havia traduções para espanhol, francês, alemão e italiano, mas não para inglês. Só que não fui o único a reparar nisso: mais três pessoas tiveram a mesma ideia e, em apenas seis meses, saíram quatro traduções: três em Inglaterra, incluindo a minha, e uma nos Estados Unidos.

Com quase 1200 páginas, Pessoa. Uma Biografia reúne uma quantidade fabulosa de detalhes, muitos deles desconhecidos, sobre a vida quotidiana do poeta, do percurso escolar, em Durban e Lisboa, às relações familiares, ou das amizades aos projectos comerciais. Quanto tempo lhe tomou este livro?
Trabalhei nisto 13 anos, mas fui fazendo outras coisas pelo meio. Contando apenas o tempo de pesquisa e escrita, talvez oito anos. Passei longas horas em vários arquivos e bibliotecas, entrevistei descendentes de familiares e outros que conheceram Pessoa, tive acesso a cartas e outros documentos inéditos, graças à colaboração de Manuela Nogueira, sobrinha do poeta e a única pessoa ainda viva que conviveu com ele, e viajei para Durban. O mais difícil, no entanto, foi a própria escrita. Ligar todas as informações numa sequência que fizesse sentido, que constituísse uma história fiel e ao mesmo tempo viva, dinâmica, deu-me imenso trabalho. Escrevo lentamente.

A ideia muito difundida de que Pessoa não teve propriamente biografia pode levar os leitores a pegar no livro com expectativas diminuídas de conhecerem muitos factos novos e expectativas aumentadas de encontrarem mais uma explicação de Fernando Pessoa. Não lhe parece que esta sua biografia se arrisca a conseguir frustrar ambas?
Espero bem que sim. Devo dizer, aliás, que a pesquisa e a escrita do livro frustraram as minhas próprias expectativas. O contrato que tinha era para escrever cerca de 160 mil palavras, e afinal o livro ficou com 360 mil, mais do dobro. Em parte porque incluí bastante contextualização, mas também porque Pessoa tinha muitos interesses: literatura, esoterismo, política, sociologia…

Todos esses detalhes biográficos que pesquisou ajudaram-no a perceber melhor a obra?
Muito. Fica-se a ver como a obra de Pessoa é, afinal de contas, bastante autobiográfica, embora de forma distorcida. Tudo o que sente, e ele sentia mesmo aquilo tudo, é de ordem pessoal, mas serve-lhe também imediatamente como matéria-prima para fazer arte. Os seres humanos comuns usam o que sentem e pensam para construírem a sua identidade. Pessoa transformava logo o que sentia e pensava em palavras, em obra. E é também por isso que é uma figura instável, que está sempre a mudar.

Esta biografia abre com uma lista de “dramatis personae”, autores fictícios inventados por Pessoa. São 47 entradas e, mesmo assim, não incluiu sequer todos os que figuram no livro. Tem ideia de quantos haverá no total?
É uma contagem difícil. Podemos dizer que há de certeza mais de uma centena de nomes que Pessoa inventou com a intenção de lhes atribuir textos ou traduções. E entre esses haverá talvez uns vinte e tal com obra significativa.

Essas minibiografias estão escritas num tom conciso e factual – arruma o Pessoa ortónimo em duas linhas –, que parece mais pensado para abrir o apetite do leitor do que para lhe satisfazer a curiosidade antes do tempo…
A minha ideia inicial até era pôr a lista no fim, mas a editora nos Estados Unidos achou que faria mais sentido a abrir o livro. E eu concordei: assim serve de referência ao leitor, que ao tropeçar num nome de que já não se lembra, pode ir ali ver. E usei a expressão “dramatis personae” para evitar designar todos como heterónimos, mas também porque numa peça de teatro a lista de personagens vem no início, e Fernando Pessoa defendia, com razão, que era um poeta dramático.

Nessa lista não distingue os heterónimos principais dos restantes. O que os separa de outros autores fictícios relevantes, como o Barão de Teive ou António Mora, é uma questão de grau, e não de natureza?
Até digo logo no início que Pessoa criou três heterónimos plenamente desenvolvidos, mas essa discussão sobre quem é e não é heterónimo parece-me ter pouca relevância. O interessante é o fenómeno da heteronímia. E para além dos três heterónimos principais, há outros com peso e substância, como esses que citou, mas também, por exemplo, Alexander Search. E depois até há alguns que aparecem nos papéis e que são apenas ideias de possíveis heterónimos, que se ficaram pelo nome. Incluo um deles…

…Refere-se a Gaveston, que parece ter sido uma espécie de projecto falhado de alter ego homossexual?
Exacto. Não tem textos ou projectos atribuídos, mas a assinatura dele aparece ao longo de vários anos, o que sugere que representava qualquer coisa para Pessoa.

Diz que tentou construir uma vida “cinematográfica”, como se tivesse uma câmara na mão e acompanhasse Pessoa na sua vida quotidiana. A opção de incluir um apêndice final com um resumo do que veio a acontecer às personagens principais depois de ele ter morrido também faz pensar no cinema…
Sim, é como nos filmes antigos. Foi deliberado, claro. Mas esse apêndice também me serviu para abordar a posteridade de Pessoa e a publicação da obra depois da sua morte.

Escolheu um modelo distintamente cronológico. Foi uma opção evidente desde o início?
Contemplei várias abordagens, mas uma vez que Pessoa é tão complexo e variado, pareceu-me que a cronologia poderia dar-me pelo menos um fio condutor seguro. Um dos desafios desta biografia, e só o percebi bem ao escrevê-la, é que quase todos os interesses e obsessões de Pessoa surgiram logo no início, em criança, e permaneceram até ao fim. Isso levou-me a escolher um modelo que é um pouco o da fuga, em sentido musical. Há vários temas que se entrelaçam ao longo do livro e que vão sempre regressando, com fases em que um ou outro – as preocupações políticas, a busca espiritual… – se torna predominante. E ainda bem que segui o método cronológico, porque cruzar a vida de Pessoa com o que ia acontecendo no plano político e social, e também com o que ele estava a escrever em cada momento, permitiu-me descobrir muita coisa.

Dedica muita atenção a figuras próximas de Pessoa que os biógrafos anteriores tinham abordado superficialmente, ou mesmo ignorado, como a prima Lisbela Pessoa Machado, que foi uma das suas financiadoras mais recorrentes, ou o tio-avô Manuel Gualdino da Cunha, cujos jogos com personagens inventadas podem ter ajudado a estimular no sobrinho a tendência para criar autores fictícios…
Essa Lisbela, uma prima direita do pai a quem Pessoa tratava por “tia”, vivia em Tavira e era uma figura importante na vida do poeta. Quanto ao tio Cunha, Manuela Nogueira publicou algumas cartas dele para Pessoa quando este estava em Durban, e através delas ficamos a conhecer os curiosos jogos que os dois mantinham. Inventavam personagens que depois tinham continuidade, como nas telenovelas. E o tio Cunha também levava o pequeno Fernando à redacção do jornal do Partido Progressista, o que pode ter inspirado Pessoa a criar, na adolescência, jornais escritos por uma série de autores fictícios. É difícil saber o que Fernando Pessoa teria sido sem este tio. Gaspar Simões menciona-o, mas diz que era praticamente analfabeto, o que não é de todo verdade.

Há também vários episódios que o leitor reconhece, mas que no seu livro parecem estar corrigidos. Penso, por exemplo, no célebre slogan para a Coca-Cola, que afinal seria um pouco mais comprido do que se pensava…
Quem primeiro mencionou a história da Coca-Cola foi o Luís Pedro Moitinho de Almeida, filho de um dos patrões de Pessoa, num livro publicado em 1985. Mas não se lembrava bem do slogan, e também se enganou no ano. Fui pesquisar e descobri o anúncio nos jornais da época. O texto correcto é: “No primeiro dia: Estranha-se. No quinto dia: Entranha-se.”

Tirando o pioneiro João Gaspar Simões, os poucos biógrafos de Pessoa têm sido estrangeiros. O espanhol Ángel Crespo, o francês Robert Bréchon, e agora o americano-português Richard Zenith. Além da falta de tradição local do género biográfico, será que o facto de escreverem para leitores das suas próprias línguas os desembaraça um pouco da ansiedade de estarem a contar coisas já conhecidas por muitos portugueses?
Há alguma verdade nisso. Sendo um outsider, escrevendo em inglês, sentia-me mais livre. A propósito, na edição portuguesa, eu próprio sugeri que eliminássemos algumas coisas que todos os portugueses sabem. Mas acho que a maioria não conhecerá assim tão bem o que conto desse período fascinante da transição da Monarquia podre para a República disfuncional, e depois para a ditadura militar e para o Estado Novo. Em relação à história americana, eu também ignoro muita coisa que acontecia nesses mesmos anos.

O que é que aprendeu com as biografias anteriores?
Em primeiro lugar, aprendi como é difícil escrever uma biografia de Fernando Pessoa! Difícil, sobretudo, captar o seu lado humano e quotidiano, porque a dimensão de escritor genial, essa está patente na obra. Cada uma das biografias anteriores tinha uma visão diferente, a começar pela de João Gaspar Simões, a primeira, cuja abordagem algo freudiana foi muito criticada, embora essa perspectiva até tivesse alguma razão de ser. Acaba por ser limitativa, porém, uma vez que Pessoa está sempre à frente de qualquer explicação, psicológica ou outra. Mas usei certamente informações da sua biografia. Embora ele raramente cite as suas fontes, é óbvio que falou muito com a irmã de Pessoa, Henriqueta, e há uma série de factos para os quais é a única fonte que temos. É sempre fácil criticar o trabalho já feito, mas Gaspar Simões tinha intuições certeiras. E se não conheceu a fundo o espólio de Pessoa é porque isso lhe teria exigido anos, e ele não tinha essa possibilidade: não era rico e precisava de ganhar dinheiro. Comecei a minha biografia num momento em que já existia um grande trabalho de investigação feito por muitas pessoas, eu incluído, e beneficiei disso. Mas também tenho de dizer que, em termos de abordagem, nenhuma das biografias anteriores me ajudou muito. Foram mais importantes, como modelo, algumas biografias ao estilo anglo-saxónico, como, por exemplo, as que Richard Ellmann escreveu sobre Joyce, Yeats ou Oscar Wilde.

Uma coisa que ressalta desta biografia, e que não me parece que fosse assim tão óbvio (e tão documentado) antes dela, é que, ao longo de toda a sua vida, Pessoa se rodeou de excêntricos. Atraía-os? Era ele que os procurava?
Pessoa conheceu dezenas e dezenas de pessoas, mas não quis confundir os leitores com tantos nomes e concentrei-me nos amigos que o seguiram realmente ao longo da vida. Reuniam-se em cafés e eram, realmente, bastante excêntricos. Vários tinham mesmo algum grau de loucura, e mais do que um chegou a ser internado. Penso que Pessoa sentia nessa excentricidade, mesmo quando não a percebia, uma visão diferente do mundo, alguma originalidade que o atraía. E, claro, ele próprio era completamente excêntrico, de modo que fazia sentido que convivesse com os seus semelhantes.

O substantivo excêntrico tem esse sentido de pessoa extravagante, mas o adjectivo indica o que se situa fora do centro. Esse grupo não era também constituído por gente que não pertencia ao mainstream, até no plano literário?
Sim, é bem visto. Pessoa, no seu percurso, tendeu a ocupar a periferia, onde estavam também os seus amigos. E é curioso ver como evoluiu, por exemplo, a sua relação com um escritor e artista como Almada Negreiros, que frequentou muito na fase de Orpheu. Mas depois disso, embora continuassem amigos, encontravam-se bastante pouco. Talvez porque Almada, sendo um artista que criticava a sociedade, era de certo modo mainstream, era muito conhecido. E os amigos que Pessoa mais frequentava eram sujeitos sem protagonismo público, com os quais provavelmente se sentia mais à vontade.

Mostra que Pessoa andou a vida inteira a dever dinheiro a toda a gente: familiares, amigos, comerciantes. Mas também se fica com a ideia de que nunca teve dificuldades materiais sérias. Era também isso uma espécie de jogo?
Penso que sim. Podia ter arranjado um emprego a tempo parcial, que até lhe deixaria mais tempo para escrever, em vez de andar a correr de um escritório para outro ou a fazer umas traduções aqui e ali. Mas sempre recusou tudo o que implicasse grandes responsabilidades e não conseguia assumir um emprego normal. Aliás, rejeitava as várias facetas que constituíam o que via como uma vida vulgar: ter um emprego certo, um casamento certo, tudo certo. Mas é curioso verificar que mantinha registos precisos de todas as suas dívidas, o que também tem o seu quê de lúdico. Pedia dinheiro emprestado do credor B para poder pagar ao credor A, do credor C para pagar ao credor B, e estava sempre nisto. De certa forma, talvez se divertisse com isso. O certo é que, apesar de todos os apuros, havia sempre familiares e amigos dispostos a financiá-lo.

Assegura que “Pessoa não copulou com nenhum homem ou mulher, não rezou a nenhum deus e não aderiu a nenhum partido político”. Não há qualquer dúvida de que morreu virgem?
Há apontamentos escritos no final da vida, alguns ainda não publicados, em que ele teoriza sobre a sua castidade e o que isso representa em termos espirituais, vendo nela uma vantagem para o seu caminho pessoal.

Evita definir a sexualidade de Pessoa, ainda que a dado passo arrisque que seria “androginamente monossexual”. Mas esse é um dos temas fortes desta biografia. Porque lhe pareceu relevante, ou também por se ter sentido genuinamente intrigado?
As questões da sexualidade eram muito importantes para Fernando Pessoa, mais do que eu imaginava. E a castidade não era, para ele, a negação do sexo, era a sua maneira de ser sexual. É difícil de explicar, mas a biografia tenta fazê-lo. Ele vivia pela escrita, e também o sexo era experimentado através de representações, como as que deixou nos poemas Antinous ou Epithalamium. Note-se que os heterónimos eram um clube de homens, todos solteiros, mas havia em toda aquela proliferação heteronímica uma espécie de energia sexual que depois era como que transformada em escrita. E Pessoa relacionava ainda tudo isto com a sua demanda espiritual.

Além do namoro com Ofélia, a biografia alude a dois vagos flirts com outras mulheres. Mas embora pareça provável que Pessoa se tenha sentido atraído por homens, não se lhe conhece nenhum entusiasmo semelhante dirigido a um homem concreto. Não acha isso estranho?
Há quem especule sobre a sua relação com Sá-Carneiro, mas isso não me convence. Pessoa tinha com certeza impulsos, mas era muito reservado, e é na sua obra literária que acaba por se exprimir e encontrar alguma compensação. Pode ser que se recusasse a admitir certas atracções, mas ele também dizia, embora não exactamente nestes termos, que não tinha uma libido forte. Talvez seja essa a explicação.

Quando cheguei às páginas em que aborda a relação com Mário de Sá-Carneiro, ocorreu-me que a escrita desta biografia deve ter sido o contexto ideal para se aperceber do potencial significado da perda das cartas de Pessoa ao amigo.
Resta uma que Pessoa copiou e conservou porque ponderava incluí-la no Livro do Desassossego. E ainda uma outra, inacabada, que não chegou a enviar. E é possível, até certo ponto, ler-se as cartas de Pessoa através das de Sá-Carneiro. Em todo o caso, não sei se teriam acrescentado assim tanto à biografia, até porque muitas eram altamente literárias. Mas haveria certamente outras com assuntos mais mundanos.

E sugere que essas cartas que teriam desaparecido da mala que Sá-Carneiro deixou no hotel onde se matou, em Paris, poderão afinal ter sido destruídas pelo seu pai.
Durante o período em que conheceu Pessoa, Mário de Sá-Carneiro passou três temporadas em Paris. E da última vez que partiu não teria certamente metido na mala todas as cartas antigas de Pessoa. O natural teria sido deixá-las em casa, em Portugal. Portanto, quando morreu, só deveria ter com ele as últimas cartas que Pessoa lhe enviara. Mas desapareceram todas, e não apenas essas. Um mistério...

Como vê o interesse de Pessoa pelo esoterismo e a sua renovação do mito do Quinto Império? Surpreendeu-me perceber que quase só fala disso nas últimas entrevistas que deu a jornais.
Há um jornalista, Luís Câmara Reis [fundador e director da Seara Nova], que escreveu que Pessoa tinha um ar de mago, o que não surpreende, pois dedicava-se ao estudo do esoterismo com muita paixão. Mas havia outro lado dele que era completamente céptico, e os dois podiam coexistir. Para mim foi difícil escrever sobre astrologia e outros domínios esotéricos, pois não é um assunto que me atraia naturalmente ou em que acredite. Mas era importantíssimo para Pessoa. Quis descrever tudo aquilo sem menosprezar, sem fazer um juízo. Quanto ao Quinto Império, é uma esperança e uma visão que Pessoa começa a nutrir em 1915. Como acontece com outras ideias que lhe eram caras, não a revela logo ao público. Vejo o Quinto Império não só como uma visão, mas como um poema. Um poema que, afinal de contas, não deu certo.

Ao longo do livro, vai contrastando a vida e a obra de Pessoa com as de autores como Joyce, Yeats, Whitman, Eliot, Pound, Rilke, Kafka ou Kaváfis. Como é que situa o poeta português nessa constelação da modernidade literária?
Quis mostrar que era um modernista, como Yeats, Pound ou Eliot, e que estava na periferia, como Kaváfis em Alexandria. A vários níveis, Pessoa tinha muito em comum com eles, mas quis também mostrar que, ao mesmo tempo, era profundamente diferente. Foi um modernista, certo, mas ia além do modernismo, a que só deu alguma importância na época de Orpheu, quando criou aqueles movimentos vanguardistas do paulismo, interseccionismo e sensacionismo. Há Ricardo Reis, que é classicista. E há Álvaro de Campos, que nasce como uma espécie de futurista, mas rapidamente abandona essa estética. Pessoa queria ser tudo, abranger tudo, e não podia encaixar-se num movimento ou corrente literária. Era e não era modernista.

Pessoa atrai leitores muito diversos, e creio que até os menos preparados sentem que o percebem, o que não será muito extensível a um Joyce ou um Eliot. Concorda? Acha que se deve ao facto de conseguir inovar sem grandes subversões linguísticas?
Um dos aspectos geniais de Pessoa é que consegue ser profundo e simples ao mesmo tempo. É extremamente erudito, mas essa sabedoria está entre parêntesis, não é exibida na obra. Tinha, por exemplo, um domínio fortíssimo do latim, mas mal se dá por isso.

Há um passo em que, aludindo aos contos que Joyce reuniu em Dubliners, sugere que Pessoa poderia ter escrito Os Lisboetas. Como vê a sua relação com a cidade onde viveu quase toda a sua vida?
Lisboa é central na obra de Fernando Pessoa. Identificamo-lo com Lisboa como identificamos Kafka com Praga ou Joyce com Dublin. No entanto, vejo a sua relação com a sua cidade de um modo um pouco diferente: creio que os habitantes de Lisboa são como uma família para ele. Pessoa não criou a sua própria família, mas no Livro do Desassossego, e também nos poemas, menciona muito essas figuras das camadas populares: os empregados dos restaurantes, os barbeiros, as costureiras, os moços de frete, que eram aqueles galegos que esperavam nas esquinas de Lisboa que alguém os contratasse para levar um recado ou transportar algum objecto. E há depois a sua relação com os escritórios de Lisboa e com quem lá trabalhava. Todas essas pessoas constituíam para Fernando Pessoa uma espécie de família. E são também muito importantes para ele o espaço, a topografia da cidade, que descreve com muito pormenor no Livro do Desassossego, e também o céu de Lisboa, as nuvens, o pôr-do-sol.

Acentua o facto de o seu biografado, até bastante tarde, ter querido ser um poeta inglês. Se o tivesse conseguido, acredita que teríamos equivalentes ingleses de Caeiro, Reis e Campos?
Está a misturar coisas diferentes, mas sim, Pessoa poderia ter criado heterónimos igualmente fortes em inglês se essa fosse a sua língua materna. Mas não era. Nabokov, que era russo, e Conrad, que era polaco, conseguiram escrever romances num inglês formidável. O inglês de Pessoa era muito bom, mas não a esse nível. É como se ele não conseguisse sentir em inglês. Costumo dizer que a melhor poesia inglesa de Pessoa foi escrita em português, por Caeiro e Campos. Detecto neles, como também no Livro do Desassossego, uma certa influência da língua inglesa.

O fenómeno da heteronímia aguçou o interesse por Pessoa, e não cessam de aparecer novas teses a tentar explicá-la. Essa proliferação enriquece a figura ou começa a ser um ruído, que perturba uma leitura mais limpa da obra?
Ambas as hipóteses são verdadeiras. Claro que a heteronímia enriquece a personagem, mas não vale a pena preocuparmo-nos excessivamente com ela. Pessoa foi um jogador, e este livro mostra que ele próprio acabou por se cansar desse jogo e que, no final da vida, já quase não existe esse desdobramento. Mas o fenómeno subjacente à heteronímia, essa falta de um ser uno e coeso, está sempre lá.

É correcto dizer que se situa a meio caminho entre os que acham que a heteronímia é um mero artifício e os que tendem a esquecer-se de que os heterónimos são textos, e não pessoas de carne e osso?
Há pessoanos que desdenham um pouco a heteronímia, mas a verdade é que muitos dos mais belos poemas de Pessoa não existiriam sem os heterónimos, porque os foi escrevendo em função deles. A ficção do heterónimo faz parte do poema assinado pelo heterónimo em causa. Ao escrever esta biografia, vi também claramente que as primeiras experiências de escrita, a criação de autores fictícios e o interesse por publicações, designadamente jornais, são coisas que nascem todas ao mesmo tempo e estão relacionadas.

Sabe-se que Pessoa projectou e atribuiu textos a um poeta pagão alguns anos antes do surgimento de Alberto Caeiro e dos restantes heterónimos principais. E que estes não terão nascido, como ele escreveu, num só “dia triunfal” de Março de 1914, mas foram ainda assim criados – e criaram um corpo de poemas significativo – num período muito curto e espantosamente criativo. Consegue ver o aparecimento deste trio de altos heterónimos, chamemos-lhes assim, como um episódio num processo que vinha de trás, ou há ali um salto quântico, um enigma que a pesquisa textual nunca explicará?
Ao escrever a biografia, o meu entendimento da heteronímia mudou um pouco. Enfim, já tinha mudado, mas tornou-se mais claro que a ideia de que a heteronímia surge com a obra de Caeiro não é verdadeira. Um amigo pessoano que leu a biografia em inglês achou que eu podia dar a impressão errada de que a heteronímia já funcionava antes de 1914. Mas a verdade é que acho mesmo que já estava completamente instalada quando Fernando Pessoa era bastante jovem, e mais ainda quando voltou a Lisboa para estudar na primeira década do século XX, altura em que criou uma série de personagens que escreviam em inglês, português, e até em francês. A existência de um grupo de amigos e colaboradores literários fictícios já era fundamental para a sua escrita. Em 1908, elaborou The Transformation Book, que era um projecto para organizar toda a sua obra em torno de autores inventados. Portanto, esse “drama em gente”, como Pessoa lhe chamou, não nasceu com Alberto Caeiro, mas também é verdade que Caeiro representa um salto, um mega-salto, e que sem esse conseguimento, essa capacidade de se tornar tão outro, tão diferente, o drama em gente teria tido pouco interesse e Pessoa não teria sido o grande escritor que conhecemos.

E a dívida de Caeiro a Whitman não ajuda a explicar esse salto?
Para lá da construção do drama em gente, havia todas as leituras que Pessoa fez em várias línguas, e que abarcavam uma série de movimentos, incluindo o simbolismo. Tudo isso estava em Pessoa, essa grande variedade de inputs. Eduardo Lourenço foi talvez o primeiro a realçar a grande importância de Walt Whitman para a existência de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. Pessoa leu Whitman pela primeira vez por volta de 1906, e ficou espantado, mas não soube logo o que fazer com aquilo. No entanto, Whitman vai ser, mais tarde, o catalisador, a chispa que irá reagir com todos os conhecimentos que Pessoa já tinha, produzindo a admirável explosão dos três heterónimos maiores. Foi com Caeiro, o primeiro a nascer, que Pessoa revelou a sua capacidade dramática de se destacar totalmente de si próprio e ser inteiramente outro.

À discussão sobre o que Caeiro deve a Whitman e Teixeira de Pascoaes, cuja influência tem sido defendida por António Feijó, o Richard Zenith junta agora o nome de Cesário Verde.
Quando Caeiro estava a nascer, Pessoa foi redigindo vários poemas que ainda não eram de Caeiro mas estavam a caminho, já chegavam perto. Num desses manuscritos do Caeiro embrionário, ainda não completamente formado, Pessoa assinalou ao lado de um verso que este era puro Cesário. O que vemos nesses manuscritos é um conflito entre, por um lado, Pascoaes e o franciscanismo, e, por outro, Cesário e Whitman. Todas estas influências foram cruciais para a formação do Caeiro. Se com Whitman Pessoa aprendeu a inserir o corpo na escrita, foi Cesário quem lhe ensinou a concretude das coisas.

No final da vida de Pessoa, a produção heteronímica esmorece e quase se eclipsa, e embora continue a escrever bastante, parecem ir longe os poderes criativos que tinham gerado a Ode Marítima ou os mais talentosos trechos do Livro do Desassossego. No entanto, Pessoa estava na casa dos quarenta, não era um velho. É a confirmação de que a heteronímia era mesmo o motor da sua arte, e que sem essa energia também ela definhou?
É possível. Sem dúvida que os heterónimos estimulavam muito a sua criatividade. No final da vida, quando há de facto um desmoronamento do projecto heteronímico, Pessoa começa a escrever outros tipos de poesia, como as quadras populares ou os poemas políticos contra Salazar e o Estado Novo, mas também poemas íntimos, como o grande poema inacabado Un Soir à Lima, a primeira vez que lembra na sua poesia os anos que viveu na África do Sul e o relacionamento com a família. Mas é verdade que se só tivéssemos essa poesia final não teríamos razão para celebrar Pessoa como um grande escritor. O que não quer dizer que não tenha continuado a escrever alguns poemas que estão entre os seus melhores, como a última ode de Ricardo Reis, que abre com o verso “Vivem em nós inúmeros”, a única que escreveu no ano da sua morte. E é um poema curioso, porque embora tenha a forma clássica das odes de Reis, o narrador, que fala desses muitos eus que há dentro dele, parece ser claramente o próprio Fernando Pessoa. Apesar deste grande poema e de mais um ou outro que Pessoa escreveu em 1935, percebe-se que, perto do fim, há um cansaço a todos os níveis, e também como escritor. Se tivesse vivido mais vinte anos, teria continuado a escrever, mas não sei se a sua morte nos fez perder muitas obras geniais. Sei que há excepções, mas tendo a acreditar que os escritores morrem na altura certa.

Qual é o seu heterónimo preferido, incluindo o Pessoa ortónimo e Bernardo Soares?
O meu heterónimo favorito é normalmente aquele que estou a traduzir, ou acerca do qual estou a escrever no momento. Fico sempre seduzido pelo heterónimo de que me estou a ocupar. Mesmo Ricardo Reis, que tende a ser, talvez, o menos apreciado pelo público, deixa-me encantado quando o traduzo ou edito. E é assim com todos os outros. Mas diria que, na poesia, Álvaro de Campos é o heterónimo que acho mais fascinante. E é o que está mais perto de Fernando Pessoa. Parece ser muito diferente por fora – é exuberante, viaja imenso, tem amores, enquanto Pessoa é tímido e pouco ousado –, mas penso que representa o lado mais instintivo de Pessoa. Toda essa exuberância existia realmente dentro de Fernando Pessoa e a maneira de a exprimir chamou-se Álvaro de Campos. Na prosa, a sua obra mais genial é, para mim, o Livro do Desassossego, que se calhar até pode ser considerado poesia.

Nesta nossa época um pouco apaixonada por ruínas e fragmentos, tendemos a valorizar a irresolúvel instabilidade editorial do Livro do Desassossego. Mas suponha que Pessoa o tinha publicado em vida, como projectou fazer: consegue imaginar um livro acabado que fosse mais interessante do que esse não-livro que nos deixou?
Se ele o tivesse acabado, ficaria bastante mais curto, porque teria cortado o que achasse menos conseguido. Deixou apontamentos, aliás, a declarar essa intenção. O livro que resultasse desta revisão seria decerto de grande qualidade. Mas talvez fosse, não digo menos bom, mas menos interessante, porque todos os caminhos experimentados mas nem sempre seguidos pelo livro dão-lhe a dimensão de uma coisa infinita. E gosto de lembrar que se o desassossego do título é psicológico, referindo-se à inquietação do narrador, comporta também a ideia de que nada é estável, tudo está sempre em movimento.

Neste momento em que não se perdoam facilmente, mesmo a autores do passado, declarações racistas ou misóginas, inclui várias confirmações textuais de que Pessoa foi ambas as coisas, ainda que também mostre que evoluiu, no final, para posições mais humanistas e democráticas…
…Não há necessidade de defender Pessoa. É um escritor fabuloso e foi um homem da sua época. Não acreditava no chamado racismo científico, muito popular na altura, e não creio que tivesse sentimentos hostis contra os negros, mas percebe-se que era racista por alguns poucos comentários que surgem na sua escrita. Somos todos pessoas complexas, e a vantagem de se escrever uma biografia é que se tem espaço para se poder contextualizar tudo.

Sentiu-se aliviado quando viu a biografia impressa, primeiro em inglês e agora em português? Vai continuar a trabalhar em edições pessoanas?
À primeira parte da pergunta é fácil responder: sinto uma libertação enorme. Durante anos tive esta biografia em cima de mim, como um fardo. E, para ser honesto, durante a maior parte desse tempo tive dúvidas enormes. Sabia que poderia facilmente ultrapassar as tentativas anteriores, porque sabemos hoje bastante mais acerca de Pessoa e da sua obra, mas receava que a minha biografia, apesar de apresentar muitas informações novas, fosse confirmar a ideia de que é mesmo impossível retratar a vida de Fernando Pessoa. Só dois ou três anos antes de entregar o texto é que senti que tudo começava a encaixar-se e que ia conseguir contar a história como a queria contar. Agora vou acompanhar as traduções do livro, e também continuar a preparar edições da obra de Pessoa, mas quero ao mesmo tempo separar-me um pouco. Não digo um divórcio, que não me seria possível abandonar completamente Fernando Pessoa, mas gostava de fazer outras coisas, até porque há muitos pessoanos mais novos que estão a fazer um óptimo trabalho.

Esta não é uma biografia de tese, mas vai assumindo algumas convicções fortes. Uma das mais sedutoras e originais é a de que Pessoa decidiu ser um génio. E que estabelecer essa meta o levou a conseguir atingi-la.
Se lermos o que escreveu em criança, encontramos umas coisas curiosas, mas nada de realmente genial. Há outros escritores nos quais descortinamos esses sinais de grandeza na infância que não vemos em Pessoa. Mas ele sentia que tinha uma missão a cumprir que exigia dele que fosse um génio, e acho que isso fez com que viesse a sê-lo. Do mesmo modo que ao criar um heterónimo chamado Ricardo Reis se impôs a si próprio um papel que o levou a escrever quase 200 odes horacianas, Pessoa foi sempre estabelecendo metas para depois as cumprir. Veja-se o texto que escreveu para a Águia em 1912 a anunciar a vinda de um Super-Camões: também aí estava a lançar a si próprio um desafio, porque não tinha escrito praticamente nada que pudesse justificar a sua convicção de que viria a ser um tal poeta.

Traduziu muitos poetas portugueses contemporâneos e organizou uma antologia, 28 Portuguese Poets, que começa em Fernando Pessoa e fecha com Daniel Jonas. Como vê o impacto de Pessoa na literatura portuguesa? Encontra a sua marca em muitos poetas posteriores?
Pessoa e alguns dos seus amigos trouxeram o modernismo à literatura portuguesa, libertando-a de alguma rigidez e conservadorismo. E há estudos que mostram a influência de Fernando Pessoa em certos autores, mas a verdade é que, entre os grandes poetas posteriores, vejo muita originalidade e pouco epigonismo. Talvez a sua influência seja de outro tipo. Do mesmo modo que Pessoa, ao declarar a sua genialidade, estava a estabelecer uma meta que o empurraria para se tornar um génio, pode ser que a sua obra funcione como um estímulo para os poetas posteriores, como uma prova de que é possível criar grandes coisas. Um desafio, não para que façam como ele, mas para que façam tão bem como ele.

Talvez ligada a essa sua intuição de que Pessoa quis ser um génio, lança uma outra ideia, que exprime desta forma: “Nunca deixou de reconfigurar a sua identidade, e devemos ter o cuidado de não parar demasiado tempo em qualquer um dos seus pontos de descanso. (…) Mais do que um céptico de si próprio, Pessoa foi um implacável transformador de si próprio.” Se afinal sempre houver por aqui uma tese, não será esta?
Acho que sim. Não é por acaso que a biografia em Inglaterra se chamou Pessoa. An Experimental Life. Ele pega na sua própria vida e faz experiências. Tem uma curiosidade infinita, e também uma grande energia para tentar novos pontos de vista, novas teorias. Entre os textos dedicados à sua busca espiritual, o mais fascinante talvez seja o projecto de livro O Caminho da Serpente: a serpente, no seu caminho sinuoso, roça em todas as verdades sem parar em nenhuma. E quando chega a Deus, continua. É como aquele conjunto de poemas que escreveu em 1913 intitulado Além-Deus. Há sempre um outro além. Fernando Pessoa nunca pára.

https://www.publico.pt/2022/05/20/culturaipsilon/entrevista/fernando-pessoa-homem-decidiu-genio-2006572





Richard Zenith e Fernando Pessoa: o que revela a nova biografia do poeta português?

 

A biografia de Fernando Pessoa de Richard Zenith é um trabalho agregador importante que contribuirá para a divulgação da obra do poeta. Mas não inclui nenhuma descoberta verdadeiramente importante.

Quando, em 1950, João Gaspar Simões publicou a sua biografia de Fernando Pessoa ainda não se estampavam t-shirts com caricaturas do poeta, não havia conúbio post-mortem na sua cama, universidades com o seu nome, ainda o seu colo empedernido não aninhava turistas e do famoso baú ainda não se conhecia a imensa coleção de mascaradas.

O “drama em gente” tornou-se um drama em multidão, tanto aquela que Pessoa albergava como a que o aplaudia, pelo que se tornava cada vez mais necessária a presença de um condutor das massas. Gaspar Simões, que não conhecera o Livro do Desassossego nem muitos dos heterónimos ia-se afogando entre o barulho pessoano, e a obra e os estudos de Pessoa clamavam por uma nova voz organizadora, capaz de pôr ordem na arca.

Eis que aparece Richard Zenith; faz orelhas moucas às discussões políticas e ideológicas sobre a obra de Pessoa, não se deixa atemorizar pela confusão de personalidades e atira-se ao arquivo seguindo a máxima cartesiana: se um problema é complexo, divide-se em partes mais simples. Aponta novos heterónimos, distribui os textos por quem de direito, descreve personalidades e põe a vozearia pessoana a cantar afinada, num complexo coro de várias vozes.

É difícil ter noção da importância do trabalho de Zenith com a obra de Pessoa; uma das maneiras mais fáceis de a notar, contudo, passa por esta biografia e pela sensação de que ela não era completamente necessária. É claro que é bom ter a informação biográfica de Pessoa reunida num só volume, e que não deslustra a imagem do nosso maior poeta contemporâneo a existência de uma biografia de dimensões bíblicas. A sensação que se tem ao lê-la, contudo, é a de que não há aqui nenhuma descoberta verdadeiramente importante. É claro que Zenith tem informação nova, que há cartas que mais ninguém tinha lido ainda, pormenores sobre a família que não eram conhecidos; no entanto, o efeito ordenador que uma biografia costuma ter sobre a imagem de um poeta, a demonstração de uma coerência ou de grandes períodos criativos, não aparece propriamente nesta biografia. Isto não se deve a um mau trabalho de Zenith — deve-se ao bom trabalho anterior. O acesso que temos hoje à obra de Fernando Pessoa dá-nos uma imagem da sua personalidade fragmentada e uma consciência do jogo de estilos e personalidades que se devem, em grande parte, ao esforço organizador de Zenith. Se esta biografia não nos desse mais nada, dava-nos a consciência da importância do trabalho editorial que, nos últimos anos, foi feito em torno de Pessoa.

Não há nenhum leitor interessado em Pessoa que não conheça a questão da heteronímia e não saiba até que ponto esta fragmentação foi explorada por Pessoa; não há ninguém que não tenha consciência das contradições do poeta e que não saiba que o poeta também tinha consciência delas. Aquilo que Zenith tem para nos dizer sobre Pessoa parece pouco, no muito da muita informação que nos traz, porque já no-lo disse da maneira mais generosa possível: ao fazer parecer que, na leitura de Pessoa, éramos nós que o descobríamos, como se a organização dos trabalhos do poeta não influenciasse a leitura que fazemos dele.

Aquilo que Zenith tem para nos dizer sobre Pessoa parece pouco, no muito da muita informação que nos traz, porque já no-lo disse da maneira mais generosa possível: ao fazer parecer que, na leitura de Pessoa, éramos nós que o descobríamos, como se a organização dos trabalhos do poeta não influenciasse a leitura que fazemos dele.

Esta biografia não foi escrita para o público português. Isso nota-se no modo como é exposto o contexto histórico, talvez um pouco básico para o leitor português, familiarizado com a vida política da I República ou do Estado Novo. Há um travo pedagógico no livro que, para lá daqueles assuntos em que parece despropositado para um português, tem as suas virtudes e os seus defeitos.

É bom, por um lado, porque se tornará, com certeza, um utilíssimo instrumento de trabalho. Zenith esforçou-se por ser, em certa medida, “generalista”. Isto é, a sua biografia de Pessoa não tem propriamente tese. É uma coleção de factos bem ordenados, sem grandes voos interpretativos, mais concentrada em apresentar todas as minudências sobre a vida de Pessoa do que em mostrar uma caudalosa veia hermenêutica. Quer isto dizer que qualquer pessoano futuro poderá colher daqui informação para as suas teses: Zenith não escolheu informação, preferiu deixar a porta aberta para qualquer um poder servir-se a trazer uma chave de leitura muito sofisticada.

E se isto será útil para estudos vindouros, tem também o reverso da medalha. Parece paradoxal olhar para esta biografia, tão organizada, tão informada, com um ar tão claro de conclusão de um trabalho de anos, como uma obra inacabada. Mas a verdade é que a grande utilidade desta biografia parece ser, precisamente por causa das suas qualidades, aquilo que ela não fez. A partir daqui podem surgir muitos olhares novos sobre Pessoa. Haverá quem retire de minudências biográficas significados complexos e quem corrobore teses com o conhecimento que Zenith tem das leituras de Pessoa ou das suas relações afetivas. Não foi esse o trabalho, contudo, que Zenith fez. A sua biografia, tão pedagógica em certos aspectos, tão voltada para o grande público, parece por outro lado não se lhe destinar precisamente por isto. Todas as grandes biografias têm alguma coisa a dizer. Esta, contudo, parece escusar-se a isso. Dá-nos o suficiente para que possamos dizer muita coisa sobre Pessoa; Zenith, no entanto, não parece ter muito a dizer sobre ele.

Esta biografia não foi escrita para o público português. Isso nota-se no modo como é exposto o contexto histórico, talvez um pouco básico para o leitor português, familiarizado com a vida política da I República ou do Estado Novo. Há um travo pedagógico no livro que, para lá daqueles assuntos em que parece despropositado para um português, tem as suas virtudes e os seus defeitos.

A biografia de Gaspar Simões, tão criticada e tão louvada ao longo dos anos, tinha pelo menos esta qualidade. Podíamos não concordar com a leitura psicanalítica que o crítico fez de Pessoa, podemos até saber que o próprio Pessoa desconsiderava a interpretação de Gaspar Simões; no entanto, é uma biografia que resiste ao tempo, mesmo que entretanto já se saiba muito mais sobre a vida de Pessoa, já se conheçam textos — alguns até dos mais importantes – que alteram obrigatoriamente a imagem do poeta e que a psicanálise já não esteja na moda. A ideia de ver o desdobramento heteronímico como um sintoma de uma personalidade mal integrada, de perceber o drama de Pessoa ortónimo como o da personalidade com consciência dessa incapacidade de integração, tem obviamente uma força poderosa que dá unidade ao livro.

Não estamos, com isto, a defender a necessidade de uma interpretação “original” só porque sim; é claro que as interpretações só têm utilidade na sua relação com a verdade dos textos. Isto é, de nada nos serviria uma interpretação psicanalítica de Fernando Pessoa se esta não aprofundasse os textos, se não nos desse uma maior consciência da complexidade pessoana mediante a leitura.

O que acontece com esta biografia de Zenith é, então, uma espécie de contenção no papel do intérprete que tira alguma força ao livro. É interessante saber muito sobre a vida de Pessoa? Certamente, mas no capítulo da curiosidade. A força maior de um livro destes passa por aquilo que pode dar à leitura de Pessoa. Ora, Zenith não parece querer dar muito. Contém-se, numa atitude que terá certamente os seus adeptos, que não quer ser parcial e que é também, em certa medida, generosa. Poderá gerar bons livros futuros sobre Fernando Pessoa, escorados em informação organizada por Zenith. Não deixa, contudo, de retirar alguma força ao seu livro.

A haver alguma “tese” na biografia de Richard Zenith ela passará, timidamente, pela noção de que aquilo que faz de Pessoa uma figura literária importante é a sua fragmentação. Não propriamente o desdobramento heteronómico, porque desse podemos encontrar antecedentes literários noutros autores, como (com uma série de diferenças impossíveis de elencar aqui) Kierkegaard; a grande obra de Pessoa passaria pela tentativa de manter sempre a sua obra fragmentada, contraditória, até, numa espécie de corpus no sentido medieval do termo (uma obra em remissão constante para si própria, fazendo uso de conceitos explicados noutros lugares), embora com uma diferença fundamental: a subsidiariedade desta obra não assentaria, no fim, sobre uma tese fundamental ou sobre uma qualquer ideia de verdade. Seria a própria fragmentação, a ideia de um “eu” plural o sustento de todas as vozes.

Nisto Zenith é, realmente, diferente de alguns dos principais autores que se dedicaram à ideia de alteridade em Pessoa, como Jacinto do Prado Coelho ou Pierre Hourcade. Hourcade é especialmente engenhoso porque associa a heteronímia (ou aquilo que ele podia conhecer da heteronímia) à sucessão de movimentos — paulismo, intersecionismo, futurismo — que caracterizam o modernismo português. Isto é, o que estaria em causa para Hourcade, mais do que uma ideia de alteridade, seria uma ideia de movimento, de uma obra em evolução constante, que ilustraria por isso mesmo a ideia de movimento.

A sua biografia, tão pedagógica em certos aspectos, tão voltada para o grande público, parece por outro lado não se lhe destinar precisamente por isto. Todas as grandes biografias têm alguma coisa a dizer. Esta, contudo, parece escusar-se a isso. Dá-nos o suficiente para que possamos dizer muita coisa sobre Pessoa; Zenith, no entanto, não parece ter muito a dizer sobre ele.

Com Zenith, contudo, aquilo que temos é um esforço de manter sempre a alteridade fora de uma corrente agregadora ou de uma ideia interpretativa principal, que unificaria a conceção artística de Pessoa. A ideia, de uma forma redutora, é a de que não há bem ideia, de que é preciso um esforço para resistir à tentação unificadora e que a personalidade e o jogo literário de Pessoa se concentram nessa resistência às prisões do sentido. Também isto, contudo, mostra como a utilidade do trabalho anterior e Zenith prejudica este trabalho biográfico. Se a fragmentação é o grande valor pessoano, a edição das suas obras é, de facto, o grande trabalho: é o único modo de as apresentar simultaneamente, sem precedências de umas sobre outras, de tal modo que se possam contradizer constantemente diante do leitor. Mas se é este, de facto, o grande valor, então a sua biografia também tem pouco interesse num mundo tão artificialmente construído, tão autoconsciente das limitações do eu, num esforço tão claro para se libertar do “empirismo organizador” que qualquer vida constitui.

Sejamos claros: é impossível um trabalho desta dimensão, de um estudioso tão conhecedor e tão arguto, não ter uma importância desmedida. É claro que tem: há uma importância social óbvia na existência de uma biografia de Pessoa deste género, por tudo o que trará para a divulgação da obra de Pessoa e da sua figura, pelo interesse que suscitará, pelos comentários e até pela projeção internacional do poeta. É também importante o trabalho organizador que uma biografia destas comporta, embora, como já o dissemos, Zenith já tivesse feito muito desse trabalho organizador. Mas se encararmos uma biografia como mais do que um apêndice ao biografado, se encararmos o trabalho também ele como “obra”, então esta completíssima biografia poderia dar um pouco mais.

Carlos Maria Bobone, “Richard Zenith e Fernando Pessoa: o que revela a nova biografia do poeta português?” in https://observador.pt/especiais/richard-zenith-e-fernando-pessoa-o-que-revela-a-nova-biografia-do-poeta-portugues/ , 2022-06-12

 


 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 



CARREIRO, José. “Pessoa. Uma Biografia, por Richard Zenith”. Portugal, Folha de Poesia, 20-05-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/05/pessoa-uma-biografia-richard-zenith.html


segunda-feira, 9 de maio de 2022

Praia das Lágrimas

Fotografia  da Torre de Belém, situada onde outrora existiu a praia de Belém. © José Carreiro, 2019-05-04
 

Planta "Le chateau de Belem" in Description del reyno de Portugal y de los reynos de Castilla que confinan con su frontera / Delineada por D. Pedro Teixeira´Albernaz (ca 1595-1662). Disponível em: https://purl.pt/16992


 A designação “praia das lágrimas” surgiu num texto de João de Barros (c.1496-c.1570). Corresponde ao local da partida dos nautas portugueses, localizado em Belém, no Restelo, nos séculos XV e XVI:


Praia de Lágrimas | por João de Barros

No qual ato foi tanta a lágrima de todos, que neste dia tomou aquela praia posse das muitas que nela se derramam na partida das armadas que cada ano vão a estas partes que Vasco da Gama ia descobrir: de onde com razão lhe podemos chamar praia de lágrimas para os que vão e terra de prazer aos que vêm. E quando veio ao desfraldar das velas, que os mareantes, segundo seu uso, deram aquele alegre princípio de caminho, dizendo “boa viagem!”, – todolos que estavam na vista deles com uma piedosa humanidade dobraram estas lágrimas e começaram de os encomendar a Deus, e lançar juízos segundo o que cada um sentia daquela partida. Os navegantes, dado que com o fervor da obra e alvoroço daquela empresa embarcaram contentes, também, passado o termo do desferir das velas, vendo ficar em terra seus parentes e amigos e lembrando-lhe que sua viagem estava posta em esperança, e não em tempo certo nem lugar sabido, assim os acompanhavam em lágrimas como em o pensamento das cousas que em tam novos casos se representam na memória dos homens. Assi que, uns olhando para a terra, e outros para o mar, e juntamente todos ocupados em lágrimas e pensamento daquela incerta viagem, tanto estiveram prontos nisso té que os navios se alongaram do porto.

João de Barros, O descobrimento da Índia: Ásia, Década I, livro IV (capítulo II). Lisboa: Seara Nova, 1947.

 

Linhas de leitura

  • Justifica a designação “praia das lágrimas”.
  • Procura, ainda, no texto o nome dado à mesma praia, quando a ela se chegava.


Partida de Vasco da Gama para a Índia, Vista Alegre, c. 1960 (pintura num prato).


Praia das Lágrimas | por Luís de Camões

Camões inclui em Os Lusíadas um episódio conhecido como “Praia das Lágrimas” ou “Despedidas em Belém” (Canto IV, estâncias 84-93), que faz parte do plano da viagem e é narrado por Vasco da Gama ao rei de Melinde.

No episódio, é uma analepse que permite tomar conhecimento do sucedido na viagem dos marinheiros desde a partida de Lisboa até ao momento em que chegam ao canal de Moçambique (Canto I, est. 19 – recorde-se o conceito de narração in medias res).


1.ª parte: Os preparativos da viagem (est. 84-87)

Vasco da Gama relata os preparativos para a partida. O papel de Gama como narrador deste episódio fica explícito na utilização do pronome pessoal me («pera seguir-me» – est. 84) e no recurso à primeira pessoa do singular («[eu] Certifico-te» – est. 87). O interlocutor de Vasco da Gama, o rei de Melinde, é também assinalado através do pronome pessoal te («Certifico-te» – est. 87) e do vocativo («ó Rei» – est. 87).

Neste momento inicial, Vasco da Gama situa a ação «no porto da ínclita Ulisseia» (est. 84) e, de seguida, sublinha a coragem dos marinheiros e dos guerreiros que o acompanham na longa viagem («não refreia / Temor nenhum o juvenil despejo, / Porque a gente marítima e a de Marte / Estão pera seguir-me a toda a parte» – est. 84) e a sua determinação («E não menos de esforço aparelhados / Pera buscar do inundo novas partes» – est. 85).

Estando aptos física e psicologicamente para a viagem, os marinheiros assistem a uma cerimónia religiosa, de modo a preparar a «alma pera a morte» (est. 86), ouvindo missa, comungando e pedindo a Deus proteção («Implorámos favor que nos guiasse, / E que nossos começos aspirasse» – est. 86).

No final da descrição dos preparativos, Vasco da Gama relata a entrada nas embarcações, referindo-se ao espaço físico que os marinheiros abandonam por meio de uma perífrase, «Partimo-nos assim do santo templo / Que nas praias do mar está assentado, / Que o nome tem da terra, pera exemplo, / Donde Deus foi em carne ao mundo dado» (est. 87), que faz alusão ao topónimo Belém.

A sua afirmação final, «se contemplo / Como fui destas praias apartado, / Cheio dentro de dúvida e receio, / Que apenas nos meus olhos ponho o freio» (est. 87), permite estabelecer um contraste entre a determinação dos homens e os medos que os assaltam no momento da partida. Os sentimentos evidenciados acabam por contribuir para engrandecer os heróis portugueses, pois, para além de todos os seus feitos, venceram também os medos e as dúvidas que poderiam tê-los impedido de conquistar o mar e de chegar à Índia.

 

84

«E já no porto da ínclita Ulisseia1

Cum alvoroço nobre e cum desejo

(Onde o licor2 mistura e branca areia

Co salgado Neptuno3 o doce Tejo)

As naus prestes4 estão; e não refreia

Temor nenhum o juvenil despejo5,

Porque a gente marítima e a de Marte6

Estão pera seguir-me a toda a parte.

 

Notas:

1 Lisboa (cidade de Ulisses). 2 Água. 3 Oceano. 4 Prontas. 5 Juvenil desembaraço. 6 Os guerreiros, a tropa que seguia na frota do Gama.

Paráfrase:

Já no porto de Lisboa

Com entusiasmo e vontade

(onde a água doce do Tejo

se mistura com a salgada do mar)

as naus estão prontas a partir;

nenhum medo consegue diminuir

a energia dos jovens

porque os marinheiros e os soldados

estão dispostos a seguir-me para toda a parte.

 

OU

 

No porto de Lisboa, na praia do Restelo, em Belém, onde a água salgada do oceano se mistura com a água doce do rio Tejo, as naus da armada de Vasco da Gama estão prontas para a viagem em direção à Índia.

Perante este acontecimento, não há medo nenhum que impeça os marinheiros de embarcarem, pois tanto estes como os guerreiros que acompanhavam a armada seguirão Vasco da Gama para onde quer que ele vá.

 

85

«Pelas praias vestidos os soldados

De várias cores vêm e várias artes,

E não menos de esforço aparelhados7

Pera buscar do mundo novas partes.

Nas fortes naus os ventos sossegados

Ondeiam os aéreos estandartes;

Elas8 prometem, vendo os mares largos,

De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos9.

 

Notas:

7 Preparados. 8 As naus. 9 De serem colocadas no Olimpo (= tornadas imortais), como acontecera na Antiguidade à nau de Argo, que Minerva pôs entre as constelações.

 

Paráfrase:

Soldados de diversas patentes e ofícios

estão preparados para descobrir novas partes do mundo.

Um suave vento ondeia as bandeiras;

as naus, ao verem os mares largos,

prometem ser estrelas no Olimpo (isto é, prometem fama aos navegadores portugueses).

 

86

«Despois de aparelhados, desta sorte,

De quanto tal viagem pede e manda,

Aparelhámos a alma pera a morte10,

Que sempre aos nautas ante os olhos anda.

Pera o sumo Poder, que a etérea Corte

Sustenta só co a vista veneranda,

Implorámos favor que nos guiasse

E que nossos começos aspirasse11.

 

Notas:

10 Ouvimos missa, comungámos, como convinha a bons cristãos que iriam expor-se a muitos perigos. 11 Favorecesse.

 

Paráfrase:

Os marinheiros preparam-se para a viagem e preparam também a alma para a morte.

Rezaram a Deus para que os ajudasse.

 

87

«Partimo-nos assi do santo templo12

Que nas praias do mar está assentado,

Que o nome tem da terra, pera exemplo,

Donde Deus foi em carne ao mundo dado13.

Certifico-te, ó Rei, que, se contemplo14

Como fui destas praias apartado,

Cheio dentro de dúvida e receio,

Que apenas nos meus olhos ponho o freio15.

 

Notas:

12 Ermida de Nª Srª de Belém. 13 Nestes primeiros quatro versos, indica-se que os tripulantes da armada saíram de Belém para as naus. (= partimo-nos de Belém, na margem direita do Tejo). Em Belém, na Palestina, nasceu Jesus – “Deus foi em carne ao mundo dado”. 14 Se me lembro. 15 Dificilmente reprimo as lágrimas.

 

Paráfrase:

Nós partimos do templo situado na praia de Belém.

Quando recordo esses momentos da partida,

cheio de dúvidas e receio,

dificilmente contenho as lágrimas.

 

2.ª parte: A despedida (est. 88-92)

• 1.º momento – plano geral (est. 88-89): o olhar do narrador centra-se nas pessoas que ficam na praia, assistindo à partida dos nautas. Começa por referir -se a esta multidão de forma generalista como «A gente da cidade» (est. 88), oferecendo um plano geral sobre aqueles que assistem à partida. São amigos ou familiares, embora lá se encontrem também meros curiosos que foram «por ver somente» (est. 88). Neste momento, todos partilham sentimentos de tristeza e de saudade, o que se fica a dever à crença generalizada de que quem embarcava encaminhava-se possivelmente para a morte:

«Em tão longo caminho e duvidoso / Por perdidos as gentes nos julgavam» (est. 89). O narrador centra, de forma mais pormenorizada, o seu olhar nas mulheres que sofrem com um «choro piadoso» (est. 89) e nos homens que suspiram. Todavia, a atenção do narrador deter-se-á mais longamente nas «Mães, Esposas, Irmãs» (est. 89), ligadas por laços estreitos aos nautas e unidas pelos sentimentos de tristeza e de medo de não tornar a ver os seus familiares.

• 2.º momento – plano de pormenor: a mãe (est. 90): o narrador centra-se, agora, em dois grandes planos de pormenor: vai atentar numa mãe e numa esposa, deixando-nos ouvir as suas palavras magoadas. Estas duas figuras, uma vez que representam todas as esposas e mães que ficam na praia a ver os seus entes queridos partir, designam-se personagens coletivas. O discurso da mãe é marcado pelas interrogações retóricas, que sublinham a sua incapacidade de compreender a atitude do filho, que era o único «emparo / Desta cansada já velhice». A sua perplexidade e revolta ficam fortemente marcadas na última questão: «Porque de mi te vás, o filho caro, / A fazer o funéreo encerramento, / Onde sejas de pexes mantimento?», onde sublinha a injustiça da situação que leva o filho a uma possível morte, deixando o amor de uma mãe sem resposta.

• 3.º momento – plano de pormenor: a esposa (est. 91): a mesma mágoa está expressa nas palavras da mulher. Recorrendo, igualmente, às interrogações retóricas, a esposa censura o marido por ir para o mar, levando uma vida que não é dele mas dela. Esta afirmação tem como base o forte amor que os une, e que faz deles um só ser. Acusa-o ainda de colocar em risco de esquecimento o amor que os une: «Nosso amor, nosso vão contentamento, / Quereis que com as velas leve o vento?» Note -se, nesta frase final, a sonoridade conseguida pela aliteração do -v-, que recorda o som do vento que leva o marido e com ele a vida da própria mulher.

• 4.º momento – plano geral (est. 92): após este momento de maior lirismo, o narrador volta a olhar a multidão de uma forma mais geral e destaca, de novo, os sentimentos de «amor e de piadosa humanidade», referindo-se agora aos velhos e aos meninos que também ficam na praia. Todos estes sentimentos influenciam a própria natureza envolvente, que, personificada, entra em sintonia com o sofrimento que domina a multidão: «Os montes de mais perto respondiam, / Quási movidos de alta piedade» e a «branca areia» chora com quem fica na praia.

 

88

«A gente da cidade, aquele dia,

(Uns por amigos, outros por parentes,

Outros por ver somente) concorria,

Saüdosos na vista e descontentes.

E nós, co a virtuosa companhia

De mil Religiosos diligentes,

Em procissão solene, a Deus orando,

Pera os batéis16 viemos caminhando.

 

Nota: 16 Embarcações que conduziam os homens da terra para os navios.

Paráfrase:

Apareciam amigos, parentes e curiosos da cidade,

Que se mostravam saudosos e descontentes.

E nós, acompanhados por muitos religiosos,

viemos caminhando para os batéis,

orando a Deus, em procissão solene.

 

89

«Em tão longo caminho e duvidoso

Por perdidos as gentes nos julgavam,

As mulheres cum choro piadoso17,

Os homens com suspiros que arrancavam.

Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso

Amor mais desconfia18, acrecentavam19

A desesperação e frio medo

De já nos não tornar a ver tão cedo.

 

Notas: 17 Por piedoso. 18 Torna mais receosas. 19 Por acrescentavam (= aumentavam).

Paráfrase:

Como o caminho era longo e desconhecido

as pessoas achavam que nos perderíamos,

as mulheres choravam e os homens suspiravam.

Mães, Esposas e Irmãs temiam

(desesperadas e com medo)

não nos verem tão cedo.

 

90

«Qual20 vai dizendo: – «Ó filho, a quem eu tinha

Só para refrigério e doce emparo

Desta cansada já velhice minha,

Que em choro acabará, penoso e amaro,

Porque me deixas, mísera e mesquinha?

Porque de mi te vás, o filho caro,

A fazer o funéreo encerramento,

Onde sejas de pexes21 mantimento?»

 

Notas: 20 Uma. 21 Por peixes.

Paráfrase:

Uma [mãe] vai dizendo:

“- Ó filho, porque me deixas tão miserável e numa velhice penosa?

Eu que te tinha para me cuidares na velhice.

Porque te vais embora, meu querido filho,

Para seres comida de peixe?”

 

OU

 

Uma mulher diz:

- Ó filho, que eu tinha só para conforto e doce amparo da minha cansada velhice, que acabará em choro penoso.

Porque me deixas na miséria? Querido filho, porque te vais embora para servires de mantimento para peixes?

 

91

«Qual22 em cabelo: – «Ó doce e amado esposo,

Sem quem não quis Amor que viver possa,

Porque is23 aventurar ao mar iroso

Essa vida que é minha e não é vossa?

Como, por um caminho duvidoso,

Vos esquece a afeição tão doce nossa?

Nosso amor, nosso vão contentamento,

Quereis que com as velas leve o vento?»

 

Notas: 22 Outra (mulher que na aflição da despedida nem teve tempo de tapar o cabelo como era de esperar nas mulheres casadas e viúvas). 23 Ides.

Paráfrase:

Outra mulher, com o cabelo solto (i.e., como se estivesse solteira):

“Ó doce e amado esposo,

Que o Amor não deixa viver sem ti,

Porque arriscas a tua vida nesse mar perigoso?

Essa vida que é minha e não é tua?

Como é possível que por causa de uma viagem duvidosa

Possas esquecer o nosso amor?

Queres que o nosso amor seja levado pelo vento?”

 

92

«Nestas e outras palavras que diziam,

De amor e de piadosa humanidade,

Os velhos e os mininos os seguiam,

Em quem menos esforço põe a idade.

Os montes de mais perto respondiam,

Quási24 movidos de alta piedade;

A branca areia as lágrimas banhavam,

Que em multidão com elas se igualavam.

 

Nota: 24 Como.

Paráfrase:

A estes lamentos juntavam-se

os velhos e as crianças,

que eram mais fracos por causa da sua idade.

Os montes, como se estivessem comovidos,

respondiam com o eco;

as lágrimas da multidão inundavam a areia.

 

3.ª parte: A partida (est. 93)

O episódio termina centrado naqueles que partem. Vasco da Gama decide que a partida se fará «Sem o despedimento costumado», como forma de impedir o sofrimento («Por nos não magoarmos») ou a alteração da decisão tomada («ou mudarmos / Do propósito firme começado»).

 

93

«Nós outros sem a vista alevantarmos

Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,

Por nos não magoarmos, ou mudarmos

Do propósito firme começado,

Determinei de assi nos embarcarmos

Sem o despedimento costumado,

Que, posto que é de amor usança boa,

A quem se aparta, ou fica, mais magoa.

 

Paráfrase:

Nós não levantávamos os olhos

para não ver mães e esposas naquele estado

e para não sofrermos ou nos arrependermos de partir.

Então, dei ordem para que embarcássemos

sem as despedidas habituais

porque fazem sofrer quem fica e quem parte.

 

Fonte: Síntese e notas adaptadas de Letras & Companhia. Português 9.º Ano. Carla Marques e Inês Silva. Edições Asa, 2013. Paráfrase adaptada de Os Lusíadas. Edição organizada por António José Saraiva. Porto, Figueirinhas, 1978.

 


 

“Mar Português” | de Fernando Pessoa

 



 

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

 

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.


Fernando Pessoa, Mensagem, 1934

 

Linhas de leitura:

Estamos perante um poema épico-lírico em que «o poeta sentiu, imaginando, os trabalhos e as dores que o Império custou» (J. P. Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, Lisboa, Ed. Verbo, 1980, 6ª ed.), procurando unir o trágico e o heroico.

 

Tema: o mar como desgraça e glória do povo português.

 

Cada uma das estrofes constitui uma parte do texto:

 

A primeira estrofe é marcadamente emocional, épica e dramática. O poeta procura apresentar e interiorizar uma realidade épica, os sacrifícios necessários para que o povo português conquistasse o mar.

 

É uma estrofe circular, começando e terminando com a apóstrofe ao mar e que poderíamos dizer que o personifica.

 

Mais uma vez, como em «O menino da sua mãe», a ideia de Império aparece associada à de Portugal e às de dor e sacrifícios. Verifica-se ainda a intertextualidade com Camões. Nesta estrofe ecoam com intensidade as palavras das mães e das esposas na despedida das naus em Belém narrada em Os Lusíadas, IV, 88-92.

 

É toda a família nacional atingida pela conquista do mar: os pais, as mães, os filhos, os noivos e as noivas. Drama nacional e glória nacional.

 

Ao nível morfossintático, é importante verificar a pobreza do texto em adjetivos (apenas dois em ambas as estrofes: «salgado», v.1, e «pequena», v.8) e a predominância dos substantivos e dos verbos, como convém às características do tema desenvolvido.

 

Os tempos verbais, que exprimem uma dualidade – acontecimentos passados / sua validade no presente e no futuro –, são o pretérito perfeito e o presente do indicativo, o primeiro evoca todos os dolorosos sacrifícios necessários no passado glorioso e o segundo remete-nos para os valores intemporais de tenacidade, do espírito de luta e da eterna necessidade da procura e da autossuperação, única maneira de justificar a existência.

 

As exclamações de toda a 1ª estrofe servem os intuitos épicos do autor e vêm dar ao poema uma entoação e um ritmo adequados.

 

vv. 1-2, metáfora hiperbólica que não destoa do carácter e intenções da 1ª estrofe: o sal são lágrimas de Portugal.

 

Repetição intencional de palavras que, na 1ª estrofe, vêm aumentar o dramatismo da evocação das situações provocadas pelas Descobertas: «[] Quantas mães []»; «Quantos filhos []»; «Quantas noivas []» (no caso das duas últimas expressões podemos até dizer que se trata de uma repetição anafórica).

 

Note-se o facto de os dois primeiros versos resumirem toda a história passada, e mesmo presente, de um povo, e poderem, portanto, ser apresentados como exemplo da grande capacidade de síntese e aproveitamento das potencialidades expressivas das palavras mais banais, tão típica de Fernando Pessoa ortónimo.

 

 

A segunda estrofe é reflexiva, constituída na maior parte pela resposta a uma curta pergunta.

 

A resposta é dada por três frases carregadas de denso simbolismo que se pode condensar nesta afirmação: a glória exige um preço.

 

Esta estrofe é consequência do assunto apresentado na primeira: o mardesgraça e glória do povo português. O poeta tece considerações sobre a realidade e os sacrifícios que a sua concretização exigiu, afirmando que «tudo vale a pena se a alma não é pequena» – no mar se espelha o céu (habitação de Deus) e quem quiser aproximar-se dele, pelo heroísmo, «tem que passar além da dor».

 

Notar que o simbolismo do céu é neste contexto a realização do sonho e da glória. O mar espelha o céu; quem conquistar o mar, conquista o céu = glória.

 

O poema ultrapassa a história trágico-marítima para se situar no nível da meta-história. Com efeito, a dor depura o ser humano e a realização humana absoluta está na síntese do imanente e do transcendente (mar + céu).

 

Elemento de ligação entre o passado e a certeza adivinhada do futuro, o mar é o símbolo do ser-se português. Foi-o, no passado, pelo que espelha do português desvendador e dominador de mundos; sê-lo-á, no futuro, porque sagrado português, «fornecerá o elemento simbólico para todo o navegar» (Pires: 1987) ou, se quisermos, para a eterna procura.

 

Note-se, ainda, que as palavras «Bojador» e «espelhou» são usadas em sentido metafórico: dificuldades e esperança, respetivamente.

 

O carácter aforístico de algumas frases deste poema e que são muito conhecidas:

. «Tudo vale a pena se a alma não é pequena».

. «Quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor».

 

A repetição intencional de algumas palavras:

. «Valeu a pena? Tudo vale a pena»

. «Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor».

 

(Adaptado de Fernando Pessoa e Heterónimos - Propostas de Análise, Avelino Soares Cabral, Mem Martins, Edições Sebenta, impress. 2007)


Proposta de trabalho:

  • Relaciona o poema de Fernando Pessoa com o episódio da Praia das Lágrimas d'Os Lusíadas no que respeita às pessoas envolvidas e aos sentimentos expressos por quem fica.



Praia das Lágrimas | por Carlos Tê



 


O tema da partida da Praia das Lágrimas tem sido muito abordado tanto na literatura como na música. Rui Veloso e Carlos Tê escreveram a canção intitulada “Praia das Lágrimas”, que faz parte do álbum Auto da Pimenta, disco oficial das comemorações do quinto centenário dos Descobrimentos Portugueses.

 

PRAIA DAS LÁGRIMAS

 

Ó mar salgado eu sou só mais uma

Das que aqui choram e te salgam a espuma

 

Ó mar das trevas que somes galés

Meu pranto intenso engrossa as marés

 

Ó mar da Índia lá nos teus confins

De chorar tanto tenho dores nos rins

 

Choro nesta areia salina será

Choro toda a noite seco de manhã

 

Ai ó mar roxo ó mar abafadiço

Poupa o meu homem não lhe dês sumiço

 

Que sol é o teu nesses céus vermelhos

Que eles partem novos e retornam velhos

 

Ó mar da calma ninho do tufão

Que é do meu amor seis anos já lá vão

 

Não sei o que os chama aos teus nevoeiros

Será fortuna ou bichos-carpinteiros

 

Ó mar da China Samatra e Ceilão

Não sei que faça sou viúva ou não

 

Não sei se case notícias não há

Será que é morto ou se amigou por lá

 

Carlos Tê e Rui Veloso, Auto da Pimenta, 1991

 

Comentário de texto:

Faz um pequeno comentário à letra da música, tratando os seguintes tópicos:

a. sujeito poético;

b. interlocutor;

c. intenção do sujeito poético ao dirigir-se ao interlocutor;

d. relação entre o conteúdo do texto e o título.

 

Fonte: Letras & Companhia. Português 9.º Ano. Carla Marques e Inês Silva. Edições Asa, 2013.


Sugestão de resposta solicitada a ChatGPT:

A letra da música “Praia das Lágrimas” é bastante emotiva, retratando o sofrimento de uma mulher que chora a ausência do seu marido, que viajou para a Índia e nunca mais voltou. O sujeito poético é uma mulher desesperada e sofrida, que chora a ausência do marido e teme por sua vida, pois sabe que muitos navegadores foram tragados pelo mar e nunca mais voltaram.

O interlocutor do poema é o mar, que é personificado como um ser vivo, capaz de sumir galés e engrossar as marés com o pranto intenso da mulher. A intenção do sujeito poético ao dirigir-se ao interlocutor é suplicar que o mar poupe a vida do seu marido, pedindo-lhe que não o mate na viagem de regresso da Índia, mesmo sem ter notícias dele há muitos anos. A mulher busca uma resposta do mar, uma esperança de que seu marido esteja vivo e possa voltar para ela.

O título da música, “Praia das Lágrimas”, faz referência à praia onde a mulher está, chorando a ausência do marido. A praia é um local de muita dor e sofrimento para a mulher, que se encontra angustiada e preocupada com a vida do marido. O conteúdo do texto está intimamente relacionado com o título, pois a mulher chora na praia enquanto pede ao mar que poupe a vida do seu marido, e é esse sofrimento que dá origem ao nome “Praia das Lágrimas”.

No geral, a música retrata uma situação bastante comum nos Descobrimentos Portugueses, que foi a separação de famílias e a incerteza em relação ao destino dos navegadores que partiam em busca de novas terras. A letra transmite um sentimento de tristeza e saudade, mostrando a dor de uma mulher que espera pelo retorno do marido, e ao mesmo tempo revela a força e a coragem que essas mulheres precisavam ter para enfrentar a incerteza e a saudade, enquanto seus maridos arriscavam suas vidas nos mares desconhecidos.

ChatGPT Feb 13 Version, disponível em https://chat.openai.com/chat, 2023-02-15



    O tema da partida da Praia das Lágrimas 


(autor desconhecido), Mulheres – Nazaré, c. 1951 (fotografia)


Embora representativa de uma situação ocorrida em local e época diferentes, esta fotografia de mulheres nazarenas, em pleno século XX, vestidas com o tradicional traje das sete saias, na praia da Nazaré, pode ser associada à temática da partida aqui exposta, porque também representa a tristeza, o desconsolo das mulheres e idosos que veem os familiares partir rumo ao mar.

A praia da Nazaré e os homens e mulheres que ali vivem em torno do mar atraíram escritores, pintores, fotógrafos e cineastas.

Nas palavras de Afonso Lopes Vieira ("Passeio nas Minhas Terras", 1940, in Nova demanda do Graal, 1942), a Nazaré assumia-se como o modelo de um mundo cândido que era preciso preservar face ao avanço da modernidade; uma “tribu (…) tão impermeável à influência dos forasteiros burgueses que, vivendo paredes meias com eles, guarda intacto o carácter e íntegra a fisionomia (…). O Nazareno pescador é um dos tipos mais profundamente nacionais, caldeado na costa do país a que arribou um dia (…)” (apud “Memória e representação do mar. Guilherme Filipe e Lino António, os pintores das paisagens e gentes da Nazaré” in Imaginários do Mar – volume 2. Uma antologia crítica, Carlos F. Clamote Carreto e Luís Sousa Martins, Lisboa, IELT – NOVA FCSH, 2021).





A pesca do bacalhau por homens e navios portugueses é uma saga humana lendária. Drama épico por excelência, encerra uma densidade narrativa singular, composta por memórias socialmente disputadas e muito diversas entre si. Aventura humana exaltada pela ditadura do Estado Novo, a grande pesca conheceu nesse contexto a sua expressão histórica mais saliente. Foi então que o Estado a apresentou à sociedade e aos olhos de estrangeiros como uma obra nacional de fundas raízes históricas, enquanto expressão eloquente do "regresso de Portugal ao mar", o principal axioma da ideologia maritimista do regime. Nas suas variadas iniciativas de propaganda, o Estado recobriu a frota bacalhoeira e os seus protagonistas humanos com uma ideologia historicista cheia de sugestões épicas.

"Trazer à pátria o pão dos mares", "reencontrar a nação com o mar" e resgatar o espírito de Quinhentos através da bravura dos pescadores-marinheiros que todos os anos embarcavam para o Atlântico Norte foram tópicos insistentes da propaganda. Esse discurso oficial e oficioso, promovido pela organização corporativa das pescas e pelo seu chefe-oligarca Henrique Tenreiro, depressa alcançou uma dimensão popular, sobretudo graças à espetacular bênção dos bacalhoeiros, um ritual nacionalista, religioso e profano, que teve lugar em Lisboa a partir de 1936. A bênção anual dos veleiros e das tripulações no momento da largada para a Terra Nova não só se alojou na memória coletiva como inibiu imagens e interpretações menos estilizadas ou mesmo dissidentes sobre as campanhas do bacalhau.

De forma paradoxal - ou significativa desse condicionamento cultural -, até hoje a literatura e as artes pouco se interessaram por este universo narrativo simultaneamente belo e cruel, humano e desumano, épico mas dramático. A multiplicidade de interpretações que podemos atribuir à pesca do bacalhau e a diversidade de sentidos que podemos conferir às suas peripécias humanas traduzem bem a riqueza deste património narrativo. O excesso de real da "faina maior" alimenta o mito e mantém vivas as disputas memoriais, que são afinal lutas de significado.

As obras de Bernardo Santareno sobre a pesca do bacalhau, O Lugre e Nos Mares do Fim do Mundo, ambas editadas pela Ática em 1959, continuam a ser as mais fecundas representações literárias das viagens à Terra Nova e à Gronelândia. […]

 

Álvaro Garrido, “Prefácio” in Nos Mares do Fim do Mundo, Bernardo Santareno. E-primatur/Letras Errantes, 2016

 

Nos Mares do Fim do Mundo, Bernardo Santareno. Lisboa, Parque EXPO 98, 1997
(seleção de algumas crónicas de viagem)


OS FOGUETES

 

- Os lugres. Vêm lá os lugres! Vêm lá!...

Num instante, juntou-se uma multidão no cais, em S. Miguel: Mas quem mais gritava e corria, desfeitas as longas tranças, o riso aguado de sol, nos olhos cavalos desenfreados, eram as mulheres - as mulheres dos pescadores açorianos do bacalhau.

- Os lugres! Já s'avistam os lugres!!...

E a Rosa Bailão, doidinha de todo, a chorar e a rir, mordia as mãos de ansiedade:

- O fogo, o fogo! Atirem já os foguetes!...

E atiraram: encheram o céu de rosas de lume, barulhentas e garrulas ...

Era assim todos os anos.

Quando os primeiros desembarcaram, a Rosa lançou-se para o meio deles, incontida, com todo o sal do mar a morder-lhe na garganta:

- O meu Jorge?... O meu homem?...

Os pescadores, sucumbidos, desviaram os olhos, os braços caíram-lhes inertes ... E passaram adiante.

- Qu'é dele?... O meu Jorge... O meu homem?...

Os foguetes crepitavam mais vivos que nunca. E gritos, abraços, choros... frenesins de gestos e de beijos.

- O meu Jorge... o meu.... ai, Santo Deus!...

E a Rosa, geladas as linhas da face pelo terror, deixou-se cair no chão...

- O meu Jorge... o meu...

Não, o Jorge Bailão não vinha: Bebera-o uma onda do mar bravo, em bancos da Terra Nova.

Pobre Rosa!: De entre todas as mulheres de pescador, fora ela quem mais foguetes comprara, quem mais se desentranhara em brados, risos e danças, mal a linha puríssima do horizonte oceânico começou a levedar em pontos escuros, móveis e vivos, cada vez maiores, maiores!...

- O meu, Jorge?... Qu'é dele?... Onde está o meu homem?!...

E o povo de S. Miguel, desde então, nunca mais queimou foguetes, à chegada dos lugres bacalhoeiros.

 

Bernardo Santareno, Nos Mares do Fim do Mundo, 1959

 

Lugre Argus fundeado em Belém para a cerimónia de Bênção


Análise textual do texto “Os Foguetes”

O texto "Os Foguetes" de Bernardo Santareno, presente na obra Nos Mares do Fim do Mundo, retrata uma cena emocionante que se desenrola num cais da ilha de São Miguel, nos Açores, à espera da chegada dos lugres que trazem de volta os pescadores que passaram meses pescando no Atlântico Norte. A multidão ansiosa e alegre é composta principalmente pelas mulheres dos pescadores que, com grande expectativa, aguardam o retorno de seus maridos, pais e irmãos.

A protagonista, Rosa Bailão, representa todas as mulheres dos pescadores, cujas vidas estão profundamente ligadas à pesca do bacalhau, importante no suporte económico da região. A sua ansiedade é palpável quando se aproximam os navios, ela é a primeira a ver e anunciar a chegada dos lugres. A ansiedade de Rosa é tão grande que ela pede que atirem foguetes para celebrar o retorno dos pescadores, e o céu é iluminado por "rosas de lume, barulhentas e garrulas".

A emoção das mulheres transforma-se em angústia quando os pescadores finalmente desembarcam e Rosa busca o seu marido, Jorge Bailão. No entanto, ela acaba por perceber que ele foi perdido no mar, tornando-se uma das muitas vítimas da dura vida dos pescadores açorianos. A descrição da cena em que Rosa se apercebe da morte do marido é extremamente emocionante, e o narrador consegue transmitir com grande sensibilidade a dor e a tristeza que acometem a personagem.

A história de "Os Foguetes" é um exemplo poderoso da dureza da vida dos pescadores açorianos, em particular, e dos pescadores portugueses, em geral, que enfrentam os perigos do mar em busca do sustento das suas famílias. A narrativa de Bernardo Santareno é marcada por um forte realismo e por uma abordagem sensível das emoções humanas. A utilização de uma linguagem simples, porém expressiva, permite que o leitor se identifique facilmente com as personagens e com a sua luta pela sobrevivência.

Em suma, "Os Foguetes" é uma história emocionante e comovente que retrata a vida dos pescadores açorianos de maneira realista e sensível. A obra de Bernardo Santareno consegue transmitir a dureza e a beleza da vida no mar, bem como as emoções fortes e profundas que permeiam as relações humanas.

Análise textual solicitada a ChatGPT (Feb 13 Version), disponível em https://chat.openai.com/chat, 2023-02-17 (resposta revista e adaptada)

 



CARREIRO, José. “Praia das Lágrimas”. Portugal, Folha de Poesia, 09-05-2022 (última atualização: 17/02/2023). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/05/praia-de-lagrimas.html