Diz-se que Pessoa não teve vida fora da
obra, mas Richard Zenith precisou de uma dúzia de anos e de 1200 páginas para
escrever a sua biografia, agora lançada em português pela Quetzal, depois de a
edição original em língua inglesa ter chegado à final do prémio Pulitzer.
Sai-se deste livro, escrito numa prosa cativante e precisa, com a noção exacta
de tudo quanto não sabíamos sobre o escritor central da literatura portuguesa
do século XX.
Luís Miguel Queirós, 2022/05/20
Quando recebeu o Prémio Pessoa, em 2012, Richard
Zenith já estava a trabalhar nesta biografia, cuja edição portuguesa foi
apresentada esta quinta-feira na Gulbenkian. Lançada em Julho de 2021 no
mundo de língua inglesa e recebida pela imprensa norte-americana e britânica
com críticas poucos menos do que estratosféricas, esta obra monumental chega
agora, com a ajuda dos tradutores Salvato e Vasco Teles de Menezes, à língua e
à cultura portuguesas, que ao longo de mais de 70 anos – desde que João
Gaspar Simões publicou, em 1950, a sua pioneira Vida e Obra de Fernando
Pessoa – não se mostrou capaz de produzir uma biografia actualizada do seu mais importante escritor
moderno. Uma lacuna genuinamente enigmática e que as anteriores biografias
do espanhol Ángel Crespo e do francês
Robert Bréchon não tinham verdadeiramente conseguido colmatar.
O próprio
Zenith confessa aqui ter receado, quase até ao fim, que este Pessoa. Uma
Biografia viesse apenas confirmar que o seu título propunha uma espécie de
contradição nos termos e que não era possível escrever-se uma biografia
satisfatória do elusivo criador de heterónimos. Afinal é. E a espantosa
quantidade de pequenos factos desconhecidos, negligenciados ou esquecidos que
muitos anos de pesquisas lhe permitiram reunir neste livro, ou a luz inteiramente
nova que lança sobre o papel desempenhado por alguns familiares do biografado,
como a prima-tia Lisbela ou o tio Cunha, ou ainda as notáveis páginas em que
contextualiza o mundo em que o poeta viveu, de Durban
a Lisboa, sendo alguns dos inquestionáveis méritos desta obra, não devem
ocultar o seu triunfo principal, que é ter realmente conseguido contar-nos a
história de Fernando Pessoa. É uma figura viva que emerge destas páginas, com
uma existência exterior não tão monótona como nos fizeram crer, e uma das mais
vastas e complexas vidas imaginadas que algum cérebro acolheu.
A sexualidade,
os interesses esotéricos, as posições políticas, os preconceitos, tudo é
tratado por Zenith com elegância e imparcialidade, evitando impor juízos ao
leitor. Se esta biografia propõe uma tese é a de que Pessoa era “um implacável
transformador de si mesmo” e que gostava de antecipar o que ainda não era para
se obrigar a chegar lá. Foi assim que se tornou o génio que decidiu ser.
Nasceu em
Washington, nos Estados Unidos, em 1956. Como é que veio parar a Portugal e
descobriu Fernando Pessoa?
Vim com uma bolsa da Fundação
Guggenheim para traduzir e organizar uma antologia de cantigas medievais.
Publiquei então 113 Galician-Portuguese Troubadour Poems, de que acabou
agora de sair, 25 anos depois, uma edição muito revista e ampliada. Mas o
interesse por Fernando Pessoa é anterior. Tinha uma amiga em Chicago, onde vivi
um ano, cujo namorado português lhe passou alguns poemas do Pessoa: um deles,
lembro-me bem, era a Tabacaria. Como ambos sabíamos espanhol,
conseguíamos perceber o que líamos. Ficámos fascinados.
Em que ano se
passou isso?
Talvez em 1978. A seguir fui para o Brasil, onde estive três anos e aprendi
português. Ainda hoje tenho algumas edições brasileiras do Pessoa que comprei
na altura. Mas nunca imaginei que iria trabalhar sobre a obra dele. Só quando
cheguei a Portugal em 1987, com a tal bolsa, é que li o Livro
do Desassossego, que tinha sido publicado em 1982. Achei-o espantoso e
montei um projecto para o traduzir para inglês.
Foi a primeira
edição em língua inglesa?
Já havia traduções para espanhol, francês, alemão e italiano, mas não para
inglês. Só que não fui o único a reparar nisso: mais três pessoas tiveram a
mesma ideia e, em apenas seis meses, saíram quatro traduções: três em
Inglaterra, incluindo a minha, e uma nos Estados Unidos.
Com quase 1200
páginas, Pessoa. Uma Biografia reúne uma quantidade fabulosa de
detalhes, muitos deles desconhecidos, sobre a vida quotidiana do poeta, do percurso
escolar, em Durban e Lisboa, às relações familiares, ou das amizades aos
projectos comerciais. Quanto tempo lhe tomou este livro?
Trabalhei nisto 13 anos, mas fui fazendo outras coisas pelo meio. Contando
apenas o tempo de pesquisa e escrita, talvez oito anos. Passei longas horas em
vários arquivos e bibliotecas, entrevistei descendentes de familiares e outros
que conheceram Pessoa, tive acesso a cartas e outros documentos inéditos,
graças à colaboração de Manuela
Nogueira, sobrinha do poeta e a única pessoa ainda viva que conviveu com
ele, e viajei para Durban. O mais difícil, no entanto, foi a própria escrita.
Ligar todas as informações numa sequência que fizesse sentido, que constituísse
uma história fiel e ao mesmo tempo viva, dinâmica, deu-me imenso trabalho.
Escrevo lentamente.
A ideia muito
difundida de que Pessoa não teve propriamente biografia pode levar os leitores
a pegar no livro com expectativas diminuídas de conhecerem muitos factos novos
e expectativas aumentadas de encontrarem mais uma explicação de Fernando
Pessoa. Não lhe parece que esta sua biografia se arrisca a conseguir frustrar
ambas?
Espero bem que sim. Devo dizer, aliás, que a pesquisa e a escrita do livro
frustraram as minhas próprias expectativas. O contrato que tinha era para
escrever cerca de 160 mil palavras, e afinal o livro ficou com 360 mil, mais do
dobro. Em parte porque incluí bastante contextualização, mas também porque
Pessoa tinha muitos interesses: literatura, esoterismo, política, sociologia…
Todos esses
detalhes biográficos que pesquisou ajudaram-no a perceber melhor a obra?
Muito. Fica-se a ver como a obra de Pessoa é, afinal de contas, bastante
autobiográfica, embora de forma distorcida. Tudo o que sente, e ele sentia
mesmo aquilo tudo, é de ordem pessoal, mas serve-lhe também imediatamente como
matéria-prima para fazer arte. Os seres humanos comuns usam o que sentem e
pensam para construírem a sua identidade. Pessoa transformava logo o que sentia
e pensava em palavras, em obra. E é também por isso que é uma figura instável, que
está sempre a mudar.
Esta biografia
abre com uma lista de “dramatis personae”, autores fictícios inventados
por Pessoa. São 47 entradas e, mesmo assim, não incluiu sequer todos os que
figuram no livro. Tem ideia de quantos haverá no total?
É uma contagem difícil. Podemos dizer que há de certeza mais de uma centena de
nomes que Pessoa inventou com a intenção de lhes atribuir textos ou traduções.
E entre esses haverá talvez uns vinte e tal com obra significativa.
Essas
minibiografias estão escritas num tom conciso e factual – arruma o Pessoa
ortónimo em duas linhas –, que parece mais pensado para abrir o apetite do
leitor do que para lhe satisfazer a curiosidade antes do tempo…
A minha ideia inicial até era pôr a lista no fim, mas a editora nos Estados
Unidos achou que faria mais sentido a abrir o livro. E eu concordei: assim
serve de referência ao leitor, que ao tropeçar num nome de que já não se
lembra, pode ir ali ver. E usei a expressão “dramatis personae” para evitar
designar todos como heterónimos, mas também porque numa peça de teatro a lista
de personagens vem no início, e Fernando Pessoa defendia, com razão, que era um
poeta dramático.
Nessa lista não
distingue os heterónimos principais dos restantes. O que os separa de outros
autores fictícios relevantes, como o Barão
de Teive ou António Mora, é uma questão de grau, e não de natureza?
Até digo logo no início que Pessoa criou três heterónimos plenamente
desenvolvidos, mas essa discussão sobre quem é e não é heterónimo parece-me ter
pouca relevância. O interessante é o fenómeno da heteronímia. E para além dos
três heterónimos principais, há outros com peso e substância, como esses que
citou, mas também, por exemplo, Alexander
Search. E depois até há alguns que aparecem nos papéis e que são apenas
ideias de possíveis heterónimos, que se ficaram pelo nome. Incluo um deles…
…Refere-se a
Gaveston, que parece ter sido uma espécie de projecto falhado de alter ego
homossexual?
Exacto. Não tem textos ou projectos atribuídos, mas a assinatura dele aparece
ao longo de vários anos, o que sugere que representava qualquer coisa para
Pessoa.
Diz que tentou
construir uma vida “cinematográfica”, como se tivesse uma câmara na mão e
acompanhasse Pessoa na sua vida quotidiana. A opção de incluir um apêndice
final com um resumo do que veio a acontecer às personagens principais depois de
ele ter morrido também faz pensar no cinema…
Sim, é como nos filmes antigos. Foi deliberado, claro. Mas esse apêndice também
me serviu para abordar a posteridade de Pessoa e a publicação da obra depois da
sua morte.
Escolheu um
modelo distintamente cronológico. Foi uma opção evidente desde o início?
Contemplei várias abordagens, mas uma vez que Pessoa é tão complexo e variado,
pareceu-me que a cronologia poderia dar-me pelo menos um fio condutor seguro.
Um dos desafios desta biografia, e só o percebi bem ao escrevê-la, é que quase
todos os interesses e obsessões de Pessoa surgiram logo no início, em criança,
e permaneceram até ao fim. Isso levou-me a escolher um modelo que é um pouco o
da fuga, em sentido musical. Há vários temas que se entrelaçam ao longo do
livro e que vão sempre regressando, com fases em que um ou outro – as
preocupações políticas, a busca espiritual… – se torna predominante. E ainda
bem que segui o método cronológico, porque cruzar a vida de Pessoa com o que ia
acontecendo no plano político e social, e também com o que ele estava a
escrever em cada momento, permitiu-me descobrir muita coisa.
Dedica muita
atenção a figuras próximas de Pessoa que os biógrafos anteriores tinham
abordado superficialmente, ou mesmo ignorado, como a prima Lisbela Pessoa
Machado, que foi uma das suas financiadoras mais recorrentes, ou o tio-avô
Manuel Gualdino da Cunha, cujos jogos com personagens inventadas podem ter
ajudado a estimular no sobrinho a tendência para criar autores fictícios…
Essa Lisbela, uma prima direita do pai a quem Pessoa tratava por “tia”, vivia
em Tavira e era uma figura importante na vida do poeta. Quanto ao tio Cunha,
Manuela Nogueira publicou algumas cartas dele para Pessoa quando este estava em
Durban, e através delas ficamos a conhecer os curiosos jogos que os dois
mantinham. Inventavam personagens que depois tinham continuidade, como nas
telenovelas. E o tio Cunha também levava o pequeno Fernando à redacção do
jornal do Partido Progressista, o que pode ter inspirado Pessoa a criar, na
adolescência, jornais escritos por uma série de autores fictícios. É difícil
saber o que Fernando Pessoa teria sido sem este tio. Gaspar Simões menciona-o,
mas diz que era praticamente analfabeto, o que não é de todo verdade.
Há também
vários episódios que o leitor reconhece, mas que no seu livro parecem estar
corrigidos. Penso, por exemplo, no célebre
slogan para a Coca-Cola, que afinal seria um pouco mais comprido do
que se pensava…
Quem primeiro mencionou a história da Coca-Cola foi o Luís Pedro Moitinho de
Almeida, filho de um dos patrões de Pessoa, num livro publicado em 1985. Mas
não se lembrava bem do slogan, e também se enganou no ano. Fui pesquisar
e descobri o anúncio nos jornais da época. O texto correcto é: “No primeiro
dia: Estranha-se. No quinto dia: Entranha-se.”
Tirando o
pioneiro João
Gaspar Simões, os poucos biógrafos de Pessoa têm sido estrangeiros. O
espanhol Ángel Crespo, o francês Robert Bréchon, e agora o americano-português
Richard Zenith. Além da falta de tradição local do género biográfico, será que
o facto de escreverem para leitores das suas próprias línguas os desembaraça um
pouco da ansiedade de estarem a contar coisas já conhecidas por muitos portugueses?
Há alguma verdade nisso. Sendo um outsider, escrevendo em inglês,
sentia-me mais livre. A propósito, na edição portuguesa, eu próprio sugeri que
eliminássemos algumas coisas que todos os portugueses sabem. Mas acho que a
maioria não conhecerá assim tão bem o que conto desse período fascinante da transição
da Monarquia podre para a República disfuncional, e depois para a ditadura
militar e para o Estado Novo.
Em relação à história americana, eu também ignoro muita coisa que acontecia
nesses mesmos anos.
O que é que
aprendeu com as biografias anteriores?
Em primeiro lugar, aprendi como é difícil escrever uma biografia de Fernando
Pessoa! Difícil, sobretudo, captar o seu lado humano e quotidiano, porque a
dimensão de escritor genial, essa está patente na obra. Cada uma das biografias
anteriores tinha uma visão diferente, a começar pela de João Gaspar Simões, a
primeira, cuja abordagem algo freudiana foi muito criticada, embora essa
perspectiva até tivesse alguma razão de ser. Acaba por ser limitativa, porém,
uma vez que Pessoa está sempre à frente de qualquer explicação, psicológica ou
outra. Mas usei certamente informações da sua biografia. Embora ele raramente
cite as suas fontes, é óbvio que falou muito com a irmã de Pessoa, Henriqueta,
e há uma série de factos para os quais é a única fonte que temos. É sempre
fácil criticar o trabalho já feito, mas Gaspar Simões tinha intuições
certeiras. E se não conheceu a fundo o espólio de Pessoa é porque isso lhe
teria exigido anos, e ele não tinha essa possibilidade: não era rico e
precisava de ganhar dinheiro. Comecei a minha biografia num momento em que já existia
um grande trabalho de investigação feito por muitas pessoas, eu incluído, e
beneficiei disso. Mas também tenho de dizer que, em termos de abordagem,
nenhuma das biografias anteriores me ajudou muito. Foram mais importantes, como
modelo, algumas biografias ao estilo anglo-saxónico, como, por exemplo, as que Richard Ellmann
escreveu sobre Joyce, Yeats ou Oscar
Wilde.
Uma coisa que
ressalta desta biografia, e que não me parece que fosse assim tão óbvio (e tão
documentado) antes dela, é que, ao longo de toda a sua vida, Pessoa se rodeou
de excêntricos. Atraía-os? Era ele que os procurava?
Pessoa conheceu dezenas e dezenas de pessoas, mas não quis confundir os
leitores com tantos nomes e concentrei-me nos amigos que o seguiram realmente
ao longo da vida. Reuniam-se em cafés e eram, realmente, bastante excêntricos.
Vários tinham mesmo algum grau de loucura, e mais do que um chegou a ser
internado. Penso que Pessoa sentia nessa excentricidade, mesmo quando não a
percebia, uma visão diferente do mundo, alguma originalidade que o atraía. E,
claro, ele próprio era completamente excêntrico, de modo que fazia sentido que
convivesse com os seus semelhantes.
O substantivo
excêntrico tem esse sentido de pessoa extravagante, mas o adjectivo indica o
que se situa fora do centro. Esse grupo não era também constituído por gente
que não pertencia ao mainstream, até no plano literário?
Sim, é bem visto. Pessoa, no seu percurso, tendeu a ocupar a periferia, onde
estavam também os seus amigos. E é curioso ver como evoluiu, por exemplo, a sua
relação com um escritor e artista como Almada Negreiros,
que frequentou muito na fase de Orpheu.
Mas depois disso, embora continuassem amigos, encontravam-se bastante pouco.
Talvez porque Almada, sendo um artista que criticava a sociedade, era de certo
modo mainstream, era muito conhecido. E os amigos que Pessoa mais
frequentava eram sujeitos sem protagonismo público, com os quais provavelmente
se sentia mais à vontade.
Mostra que
Pessoa andou a vida inteira a dever dinheiro a toda a gente: familiares,
amigos, comerciantes. Mas também se fica com a ideia de que nunca teve
dificuldades materiais sérias. Era também isso uma espécie de jogo?
Penso que sim. Podia ter arranjado um emprego a tempo parcial, que até lhe
deixaria mais tempo para escrever, em vez de andar a correr de um escritório
para outro ou a fazer umas traduções aqui e ali. Mas sempre recusou tudo o que
implicasse grandes responsabilidades e não conseguia assumir um emprego normal.
Aliás, rejeitava as várias facetas que constituíam o que via como uma vida
vulgar: ter um emprego certo, um casamento certo, tudo certo. Mas é curioso
verificar que mantinha registos precisos de todas as suas dívidas, o que também
tem o seu quê de lúdico. Pedia dinheiro emprestado do credor B para poder pagar
ao credor A, do credor C para pagar ao credor B, e estava sempre nisto. De
certa forma, talvez se divertisse com isso. O certo é que, apesar de todos os
apuros, havia sempre familiares e amigos dispostos a financiá-lo.
Assegura que
“Pessoa não copulou com nenhum homem ou mulher, não rezou a nenhum deus e não
aderiu a nenhum partido político”. Não há qualquer dúvida de que morreu virgem?
Há apontamentos escritos no final da vida, alguns ainda não publicados, em que
ele teoriza sobre a sua castidade e o que isso representa em termos
espirituais, vendo nela uma vantagem para o seu caminho pessoal.
Evita definir a
sexualidade de Pessoa, ainda que a dado passo arrisque que seria
“androginamente monossexual”. Mas esse é um dos temas fortes desta biografia.
Porque lhe pareceu relevante, ou também por se ter sentido genuinamente
intrigado?
As questões da sexualidade eram muito importantes para Fernando Pessoa, mais do
que eu imaginava. E a castidade não era, para ele, a negação do sexo, era a sua
maneira de ser sexual. É difícil de explicar, mas a biografia tenta fazê-lo.
Ele vivia pela escrita, e também o sexo era experimentado através de
representações, como as que deixou nos poemas Antinous ou Epithalamium.
Note-se que os heterónimos eram um clube de homens, todos solteiros, mas havia
em toda aquela proliferação heteronímica uma espécie de energia sexual que
depois era como que transformada em escrita. E Pessoa relacionava ainda tudo
isto com a sua demanda espiritual.
Além do namoro
com Ofélia, a biografia alude a dois vagos flirts com outras
mulheres. Mas embora pareça provável que Pessoa se tenha sentido atraído por
homens, não se lhe conhece nenhum entusiasmo semelhante dirigido a um homem
concreto. Não acha isso estranho?
Há quem especule sobre a sua
relação com Sá-Carneiro, mas isso não me convence. Pessoa tinha com certeza
impulsos, mas era muito reservado, e é na sua obra literária que acaba por se
exprimir e encontrar alguma compensação. Pode ser que se recusasse a admitir
certas atracções, mas ele também dizia, embora não exactamente nestes termos,
que não tinha uma libido forte. Talvez seja essa a explicação.
Quando cheguei
às páginas em que aborda a relação com Mário de Sá-Carneiro, ocorreu-me
que a escrita desta biografia deve ter sido o contexto ideal para se aperceber
do potencial significado da perda das cartas de Pessoa ao amigo.
Resta uma que Pessoa copiou e conservou porque ponderava incluí-la no Livro
do Desassossego. E ainda uma outra, inacabada, que não chegou a enviar. E é
possível, até certo ponto, ler-se as cartas de Pessoa através das de
Sá-Carneiro. Em todo o caso, não sei se teriam acrescentado assim tanto à
biografia, até porque muitas eram altamente literárias. Mas haveria certamente
outras com assuntos mais mundanos.
E sugere que
essas cartas que teriam desaparecido da mala que Sá-Carneiro deixou no hotel
onde se matou, em Paris, poderão afinal ter sido destruídas pelo seu pai.
Durante o período em que conheceu Pessoa, Mário de Sá-Carneiro passou três
temporadas em Paris. E da última vez que partiu não teria certamente metido na
mala todas as cartas antigas de Pessoa. O natural teria sido deixá-las em casa,
em Portugal. Portanto, quando morreu, só deveria ter com ele as últimas cartas
que Pessoa lhe enviara. Mas desapareceram todas, e não apenas essas. Um
mistério...
Como vê o
interesse de Pessoa pelo esoterismo e a sua renovação do mito
do Quinto Império? Surpreendeu-me perceber que quase só fala disso nas
últimas entrevistas que deu a jornais.
Há um jornalista, Luís Câmara Reis [fundador e director da Seara
Nova], que escreveu que Pessoa tinha um ar de mago, o que não
surpreende, pois dedicava-se ao estudo do esoterismo com muita paixão. Mas
havia outro lado dele que era completamente céptico, e os dois podiam
coexistir. Para mim foi difícil escrever sobre astrologia e outros domínios
esotéricos, pois não é um assunto que me atraia naturalmente ou em que
acredite. Mas era importantíssimo para Pessoa. Quis descrever tudo aquilo sem
menosprezar, sem fazer um juízo. Quanto ao Quinto Império, é uma esperança e
uma visão que Pessoa começa a nutrir em 1915. Como acontece com outras ideias
que lhe eram caras, não a revela logo ao público. Vejo o Quinto Império não só
como uma visão, mas como um poema. Um poema que, afinal de contas, não deu
certo.
Ao longo do
livro, vai contrastando a vida e a obra de Pessoa com as de autores como Joyce,
Yeats, Whitman, Eliot, Pound, Rilke, Kafka ou Kaváfis. Como é que situa o poeta
português nessa constelação da modernidade literária?
Quis mostrar que era um modernista, como Yeats, Pound ou Eliot, e que estava na
periferia, como Kaváfis em Alexandria. A vários níveis, Pessoa tinha muito em
comum com eles, mas quis também mostrar que, ao mesmo tempo, era profundamente
diferente. Foi um modernista, certo, mas ia além do modernismo, a que só deu
alguma importância na época de Orpheu, quando criou aqueles movimentos
vanguardistas do paulismo, interseccionismo e sensacionismo. Há Ricardo
Reis, que é classicista. E há Álvaro de Campos, que nasce como uma espécie
de futurista, mas rapidamente abandona essa estética. Pessoa queria ser tudo,
abranger tudo, e não podia encaixar-se num movimento ou corrente literária. Era
e não era modernista.
Pessoa atrai
leitores muito diversos, e creio que até os menos preparados sentem que o
percebem, o que não será muito extensível a um Joyce ou um Eliot. Concorda?
Acha que se deve ao facto de conseguir inovar sem grandes subversões
linguísticas?
Um dos aspectos geniais de Pessoa é que consegue ser profundo e simples ao
mesmo tempo. É extremamente erudito, mas essa sabedoria está entre parêntesis,
não é exibida na obra. Tinha, por exemplo, um domínio fortíssimo do latim, mas
mal se dá por isso.
Há um passo em
que, aludindo aos contos que Joyce reuniu em Dubliners, sugere que
Pessoa poderia ter escrito Os Lisboetas. Como vê a sua relação com a
cidade onde viveu quase toda a sua vida?
Lisboa é central na obra de Fernando Pessoa. Identificamo-lo com Lisboa como
identificamos Kafka com Praga ou Joyce com Dublin. No entanto, vejo a sua
relação com a sua cidade de um modo um pouco diferente: creio que os habitantes
de Lisboa são como uma família para ele. Pessoa não criou a sua própria
família, mas no Livro do Desassossego, e também nos poemas, menciona
muito essas figuras das camadas populares: os empregados dos restaurantes, os
barbeiros, as costureiras, os moços de frete, que eram aqueles galegos que
esperavam nas esquinas de Lisboa que alguém os contratasse para levar um recado
ou transportar algum objecto. E há depois a sua relação com os escritórios de
Lisboa e com quem lá trabalhava. Todas essas pessoas constituíam para Fernando
Pessoa uma espécie de família. E são também muito importantes para ele o espaço,
a topografia da cidade, que descreve com muito pormenor no Livro do
Desassossego, e também o céu de Lisboa, as nuvens, o pôr-do-sol.
Acentua o facto
de o seu biografado, até bastante tarde, ter querido ser um poeta inglês. Se o
tivesse conseguido, acredita que teríamos equivalentes ingleses de Caeiro, Reis
e Campos?
Está a misturar coisas diferentes, mas sim, Pessoa poderia ter criado
heterónimos igualmente fortes em inglês se essa fosse a sua língua materna. Mas
não era. Nabokov, que era russo, e Conrad, que era polaco, conseguiram escrever
romances num inglês formidável. O inglês de Pessoa era muito bom, mas não a
esse nível. É como se ele não conseguisse sentir em inglês. Costumo
dizer que a melhor poesia inglesa de Pessoa foi escrita em português, por
Caeiro e Campos. Detecto neles, como também no Livro do Desassossego,
uma certa influência da língua inglesa.
O fenómeno da
heteronímia aguçou o interesse por Pessoa, e não cessam de aparecer novas teses
a tentar explicá-la. Essa proliferação enriquece a figura ou começa a ser um
ruído, que perturba uma leitura mais limpa da obra?
Ambas as hipóteses são verdadeiras. Claro que a heteronímia enriquece a
personagem, mas não vale a pena preocuparmo-nos excessivamente com ela. Pessoa
foi um jogador, e este livro mostra que ele próprio acabou por se cansar desse
jogo e que, no final da vida, já quase não existe esse desdobramento. Mas o
fenómeno subjacente à heteronímia, essa falta de um ser uno e coeso, está
sempre lá.
É correcto
dizer que se situa a meio caminho entre os que acham que a heteronímia é um
mero artifício e os que tendem a esquecer-se de que os heterónimos são textos,
e não pessoas de carne e osso?
Há pessoanos que desdenham um pouco a heteronímia, mas a verdade é que muitos
dos mais belos poemas de Pessoa não existiriam sem os heterónimos, porque os
foi escrevendo em função deles. A ficção do heterónimo faz parte do poema
assinado pelo heterónimo em causa. Ao escrever esta biografia, vi também
claramente que as primeiras experiências de escrita, a criação de autores
fictícios e o interesse por publicações, designadamente jornais, são coisas que
nascem todas ao mesmo tempo e estão relacionadas.
Sabe-se que
Pessoa projectou e atribuiu textos a um poeta pagão alguns anos antes do
surgimento de Alberto Caeiro e dos restantes heterónimos principais. E que
estes não terão nascido, como ele escreveu, num só “dia triunfal” de Março de
1914, mas foram ainda assim criados – e criaram um corpo de poemas
significativo – num período muito curto e espantosamente criativo. Consegue ver
o aparecimento deste trio de altos heterónimos, chamemos-lhes assim, como um
episódio num processo que vinha de trás, ou há ali um salto quântico, um enigma
que a pesquisa textual nunca explicará?
Ao escrever a biografia, o meu entendimento da heteronímia mudou um pouco.
Enfim, já tinha mudado, mas tornou-se mais claro que a ideia de que a
heteronímia surge com a obra de Caeiro não é verdadeira. Um amigo pessoano que
leu a biografia em inglês achou que eu podia dar a impressão errada de que a
heteronímia já funcionava antes de 1914. Mas a verdade é que acho mesmo que já
estava completamente instalada quando Fernando Pessoa era bastante jovem, e
mais ainda quando voltou a Lisboa para estudar na primeira década do século XX,
altura em que criou uma série de personagens que escreviam em inglês,
português, e até em francês. A existência de um grupo de amigos e colaboradores
literários fictícios já era fundamental para a sua escrita. Em 1908, elaborou The
Transformation Book, que era um projecto para organizar toda a sua obra em
torno de autores inventados. Portanto, esse “drama em gente”, como Pessoa lhe
chamou, não nasceu com Alberto Caeiro, mas também é verdade que Caeiro
representa um salto, um mega-salto, e que sem esse conseguimento, essa
capacidade de se tornar tão outro, tão diferente, o drama em gente teria tido
pouco interesse e Pessoa não teria sido o grande escritor que conhecemos.
E a dívida de
Caeiro a Whitman não ajuda a explicar esse salto?
Para lá da construção do drama em gente, havia todas as leituras que Pessoa fez
em várias línguas, e que abarcavam uma série de movimentos, incluindo o
simbolismo. Tudo isso estava em Pessoa, essa grande variedade de inputs.
Eduardo Lourenço
foi talvez o primeiro a realçar a grande importância de Walt Whitman para a
existência de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. Pessoa leu Whitman pela
primeira vez por volta de 1906, e ficou espantado, mas não soube logo o que
fazer com aquilo. No entanto, Whitman vai ser, mais tarde, o catalisador, a
chispa que irá reagir com todos os conhecimentos que Pessoa já tinha,
produzindo a admirável explosão dos três heterónimos maiores. Foi com Caeiro, o
primeiro a nascer, que Pessoa revelou a sua capacidade dramática de se destacar
totalmente de si próprio e ser inteiramente outro.
À discussão
sobre o que Caeiro deve a Whitman e Teixeira de Pascoaes,
cuja influência tem sido defendida por António
Feijó, o Richard Zenith junta agora o nome de Cesário Verde.
Quando Caeiro estava a nascer, Pessoa foi redigindo vários poemas que ainda não
eram de Caeiro mas estavam a caminho, já chegavam perto. Num desses manuscritos
do Caeiro embrionário, ainda não completamente formado, Pessoa assinalou ao
lado de um verso que este era puro Cesário. O que vemos nesses manuscritos é um
conflito entre, por um lado, Pascoaes e o franciscanismo, e, por outro, Cesário
e Whitman. Todas estas influências foram cruciais para a formação do Caeiro. Se
com Whitman Pessoa aprendeu a inserir o corpo na escrita, foi Cesário quem lhe
ensinou a concretude das coisas.
No final da
vida de Pessoa, a produção heteronímica esmorece e quase se eclipsa, e embora
continue a escrever bastante, parecem ir longe os poderes criativos que tinham
gerado a Ode Marítima ou os mais talentosos trechos do Livro do
Desassossego. No entanto, Pessoa estava na casa dos quarenta, não era um
velho. É a confirmação de que a heteronímia era mesmo o motor da sua arte, e
que sem essa energia também ela definhou?
É possível. Sem dúvida que os heterónimos estimulavam muito a sua criatividade.
No final da vida, quando há de facto um desmoronamento do projecto
heteronímico, Pessoa começa a escrever outros tipos de poesia, como as quadras
populares ou os poemas
políticos contra Salazar e o Estado Novo, mas também poemas íntimos, como o
grande poema inacabado Un Soir à Lima, a primeira vez que lembra na sua
poesia os anos que viveu na África do Sul e o relacionamento com a família. Mas
é verdade que se só tivéssemos essa poesia final não teríamos razão para
celebrar Pessoa como um grande escritor. O que não quer dizer que não tenha
continuado a escrever alguns poemas que estão entre os seus melhores, como a última
ode de Ricardo Reis, que abre com o verso “Vivem em nós inúmeros”, a única que
escreveu no ano da sua morte. E é um poema curioso, porque embora tenha a forma
clássica das odes de Reis, o narrador, que fala desses muitos eus que há dentro
dele, parece ser claramente o próprio Fernando Pessoa. Apesar deste grande
poema e de mais um ou outro que Pessoa escreveu em 1935, percebe-se que, perto
do fim, há um cansaço a todos os níveis, e também como escritor. Se tivesse
vivido mais vinte anos, teria continuado a escrever, mas não sei se a sua morte
nos fez perder muitas obras geniais. Sei que há excepções, mas tendo a
acreditar que os escritores morrem na altura certa.
Qual é o seu
heterónimo preferido, incluindo o Pessoa ortónimo e Bernardo Soares?
O meu heterónimo favorito é normalmente aquele que estou a traduzir, ou acerca
do qual estou a escrever no momento. Fico sempre seduzido pelo heterónimo de
que me estou a ocupar. Mesmo Ricardo Reis, que tende a ser, talvez, o menos
apreciado pelo público, deixa-me encantado quando o traduzo ou edito. E é assim
com todos os outros. Mas diria que, na poesia, Álvaro de Campos é o heterónimo que acho mais fascinante. E
é o que está mais perto de Fernando Pessoa. Parece ser muito diferente por fora
– é exuberante, viaja imenso, tem amores, enquanto Pessoa é tímido e pouco
ousado –, mas penso que representa o lado mais instintivo de Pessoa. Toda essa
exuberância existia realmente dentro de Fernando Pessoa e a maneira de a
exprimir chamou-se Álvaro de Campos. Na prosa, a sua obra mais genial é, para
mim, o Livro do Desassossego, que se calhar até pode ser considerado
poesia.
Nesta nossa
época um pouco apaixonada por ruínas e fragmentos, tendemos a valorizar a
irresolúvel instabilidade editorial do Livro do Desassossego. Mas
suponha que Pessoa o tinha publicado em vida, como projectou fazer: consegue
imaginar um livro acabado que fosse mais interessante do que esse não-livro que
nos deixou?
Se ele o tivesse acabado, ficaria bastante mais curto, porque teria cortado o
que achasse menos conseguido. Deixou apontamentos, aliás, a declarar essa
intenção. O livro que resultasse desta revisão seria decerto de grande
qualidade. Mas talvez fosse, não digo menos bom, mas menos interessante, porque
todos os caminhos experimentados mas nem sempre seguidos pelo livro dão-lhe a
dimensão de uma coisa infinita. E gosto de lembrar que se o desassossego do
título é psicológico, referindo-se à inquietação do narrador, comporta também a
ideia de que nada é estável, tudo está sempre em movimento.
Neste momento
em que não se perdoam facilmente, mesmo a autores do passado, declarações
racistas ou misóginas, inclui várias confirmações textuais de que Pessoa foi
ambas as coisas, ainda que também mostre que evoluiu, no final, para posições
mais humanistas e democráticas…
…Não há necessidade de defender Pessoa. É um escritor fabuloso e foi um homem
da sua época. Não acreditava no chamado racismo científico, muito popular na
altura, e não creio que tivesse sentimentos hostis contra os negros, mas
percebe-se que era racista por alguns poucos comentários que surgem na sua
escrita. Somos todos pessoas complexas, e a vantagem de se escrever uma
biografia é que se tem espaço para se poder contextualizar tudo.
Sentiu-se
aliviado quando viu a biografia impressa, primeiro em inglês e agora em
português? Vai continuar a trabalhar em edições pessoanas?
À primeira parte da pergunta é fácil responder: sinto uma libertação enorme.
Durante anos tive esta biografia em cima de mim, como um fardo. E, para ser
honesto, durante a maior parte desse tempo tive dúvidas enormes. Sabia que
poderia facilmente ultrapassar as tentativas anteriores, porque sabemos hoje
bastante mais acerca de Pessoa e da sua obra, mas receava que a minha
biografia, apesar de apresentar muitas informações novas, fosse confirmar a
ideia de que é mesmo impossível retratar a vida de Fernando Pessoa. Só dois ou
três anos antes de entregar o texto é que senti que tudo começava a encaixar-se
e que ia conseguir contar a história como a queria contar. Agora vou acompanhar
as traduções do livro, e também continuar a preparar edições da obra de Pessoa,
mas quero ao mesmo tempo separar-me um pouco. Não digo um divórcio, que não me
seria possível abandonar completamente Fernando Pessoa, mas gostava de fazer
outras coisas, até porque há muitos pessoanos mais novos que estão a fazer um
óptimo trabalho.
Esta não é uma
biografia de tese, mas vai assumindo algumas convicções fortes. Uma das mais
sedutoras e originais é a de que Pessoa decidiu ser um génio. E que estabelecer
essa meta o levou a conseguir atingi-la.
Se lermos o que escreveu em criança, encontramos umas coisas curiosas, mas nada
de realmente genial. Há outros escritores nos quais descortinamos esses sinais
de grandeza na infância que não vemos em Pessoa. Mas ele sentia que tinha uma
missão a cumprir que exigia dele que fosse um génio, e acho que isso fez com
que viesse a sê-lo. Do mesmo modo que ao criar um heterónimo chamado Ricardo
Reis se impôs a si próprio um papel que o levou a escrever quase 200 odes
horacianas, Pessoa foi sempre estabelecendo metas para depois as cumprir.
Veja-se o texto que escreveu para a Águia em 1912 a anunciar a vinda de
um Super-Camões: também aí estava a lançar a si próprio um desafio, porque não
tinha escrito praticamente nada que pudesse justificar a sua convicção de que viria
a ser um tal poeta.
Traduziu muitos
poetas portugueses contemporâneos e organizou uma antologia, 28 Portuguese
Poets, que começa em Fernando Pessoa e fecha com Daniel Jonas.
Como vê o impacto de Pessoa na literatura portuguesa? Encontra a sua marca em
muitos poetas posteriores?
Pessoa e alguns dos seus amigos trouxeram o modernismo à literatura portuguesa,
libertando-a de alguma rigidez e conservadorismo. E há estudos que mostram a
influência de Fernando Pessoa em certos autores, mas a verdade é que, entre os
grandes poetas posteriores, vejo muita originalidade e pouco epigonismo. Talvez
a sua influência seja de outro tipo. Do mesmo modo que Pessoa, ao declarar a
sua genialidade, estava a estabelecer uma meta que o empurraria para se tornar
um génio, pode ser que a sua obra funcione como um estímulo para os poetas
posteriores, como uma prova de que é possível criar grandes coisas. Um desafio,
não para que façam como ele, mas para que façam tão bem como ele.
Talvez ligada a
essa sua intuição de que Pessoa quis ser um génio, lança uma outra ideia, que
exprime desta forma: “Nunca deixou de reconfigurar a sua identidade, e devemos
ter o cuidado de não parar demasiado tempo em qualquer um dos seus pontos de descanso.
(…) Mais do que um céptico de si próprio, Pessoa foi um implacável
transformador de si próprio.” Se afinal sempre houver por aqui uma tese, não
será esta?
Acho que sim. Não é por acaso que a biografia em Inglaterra se chamou Pessoa.
An Experimental Life. Ele pega na sua própria vida e faz experiências. Tem
uma curiosidade infinita, e também uma grande energia para tentar novos pontos
de vista, novas teorias. Entre os textos dedicados à sua busca espiritual, o
mais fascinante talvez seja o projecto de livro O Caminho da Serpente: a
serpente, no seu caminho sinuoso, roça em todas as verdades sem parar em
nenhuma. E quando chega a Deus, continua. É como aquele conjunto de poemas que
escreveu em 1913 intitulado Além-Deus. Há sempre um outro além. Fernando
Pessoa nunca pára.
Richard Zenith e Fernando
Pessoa: o que revela a nova biografia do poeta português?
A biografia de Fernando Pessoa de Richard Zenith é um
trabalho agregador importante que contribuirá para a divulgação da obra do
poeta. Mas não inclui nenhuma descoberta verdadeiramente importante.
Quando, em 1950, João Gaspar Simões publicou a sua biografia de Fernando
Pessoa ainda não se estampavam t-shirts com caricaturas do poeta, não havia
conúbio post-mortem na sua cama, universidades com o seu nome, ainda o
seu colo empedernido não aninhava turistas e do famoso baú ainda não se
conhecia a imensa coleção de mascaradas.
O “drama em gente” tornou-se um drama em multidão, tanto aquela que Pessoa
albergava como a que o aplaudia, pelo que se tornava cada vez mais necessária a
presença de um condutor das massas. Gaspar Simões, que não conhecera o Livro
do Desassossego nem muitos dos heterónimos ia-se afogando entre o
barulho pessoano, e a obra e os estudos de Pessoa clamavam por uma nova voz
organizadora, capaz de pôr ordem na arca.
Eis que aparece Richard Zenith; faz orelhas moucas às discussões políticas
e ideológicas sobre a obra de Pessoa, não se deixa atemorizar pela confusão de
personalidades e atira-se ao arquivo seguindo a máxima cartesiana: se um
problema é complexo, divide-se em partes mais simples. Aponta novos
heterónimos, distribui os textos por quem de direito, descreve personalidades e
põe a vozearia pessoana a cantar afinada, num complexo coro de várias vozes.
É difícil ter noção da importância do trabalho de Zenith com a obra de
Pessoa; uma das maneiras mais fáceis de a notar, contudo, passa por esta
biografia e pela sensação de que ela não era completamente necessária. É
claro que é bom ter a informação biográfica de Pessoa reunida num só volume, e
que não deslustra a imagem do nosso maior poeta contemporâneo a existência de
uma biografia de dimensões bíblicas. A sensação que se tem ao lê-la,
contudo, é a de que não há aqui nenhuma descoberta verdadeiramente importante.
É claro que Zenith tem informação nova, que há cartas que mais ninguém tinha
lido ainda, pormenores sobre a família que não eram conhecidos; no entanto,
o efeito ordenador que uma biografia costuma ter sobre a imagem de um poeta, a
demonstração de uma coerência ou de grandes períodos criativos, não aparece
propriamente nesta biografia. Isto não se deve a um mau trabalho de Zenith —
deve-se ao bom trabalho anterior. O acesso que temos hoje à obra de Fernando
Pessoa dá-nos uma imagem da sua personalidade fragmentada e uma consciência do
jogo de estilos e personalidades que se devem, em grande parte, ao esforço
organizador de Zenith. Se esta biografia não nos desse mais nada, dava-nos a
consciência da importância do trabalho editorial que, nos últimos anos, foi
feito em torno de Pessoa.
Não há nenhum leitor interessado em Pessoa que não conheça a questão da
heteronímia e não saiba até que ponto esta fragmentação foi explorada por
Pessoa; não há ninguém que não tenha consciência das contradições do poeta e
que não saiba que o poeta também tinha consciência delas. Aquilo que Zenith
tem para nos dizer sobre Pessoa parece pouco, no muito da muita informação que
nos traz, porque já no-lo disse da maneira mais generosa possível: ao fazer
parecer que, na leitura de Pessoa, éramos nós que o descobríamos, como se a
organização dos trabalhos do poeta não influenciasse a leitura que fazemos
dele.
Aquilo que
Zenith tem para nos dizer sobre Pessoa parece pouco, no muito da muita
informação que nos traz, porque já no-lo disse da maneira mais generosa
possível: ao fazer parecer que, na leitura de Pessoa, éramos nós que o
descobríamos, como se a organização dos trabalhos do poeta não influenciasse a
leitura que fazemos dele.
Esta biografia não foi escrita para o público português. Isso nota-se no
modo como é exposto o contexto histórico, talvez um pouco básico para o leitor
português, familiarizado com a vida política da I República ou do Estado Novo.
Há um travo pedagógico no livro que, para lá daqueles assuntos em que parece
despropositado para um português, tem as suas virtudes e os seus defeitos.
É bom, por um lado, porque se tornará, com certeza, um utilíssimo
instrumento de trabalho. Zenith esforçou-se por ser, em certa medida,
“generalista”. Isto é, a sua biografia de Pessoa não tem propriamente tese. É
uma coleção de factos bem ordenados, sem grandes voos interpretativos, mais concentrada
em apresentar todas as minudências sobre a vida de Pessoa do que em mostrar uma
caudalosa veia hermenêutica. Quer isto dizer que qualquer pessoano futuro
poderá colher daqui informação para as suas teses: Zenith não escolheu
informação, preferiu deixar a porta aberta para qualquer um poder servir-se a
trazer uma chave de leitura muito sofisticada.
E se isto será útil para estudos vindouros, tem também o reverso da
medalha. Parece paradoxal olhar para esta biografia, tão organizada, tão
informada, com um ar tão claro de conclusão de um trabalho de anos, como uma
obra inacabada. Mas a verdade é que a grande utilidade desta biografia parece
ser, precisamente por causa das suas qualidades, aquilo que ela não fez. A
partir daqui podem surgir muitos olhares novos sobre Pessoa. Haverá quem retire
de minudências biográficas significados complexos e quem corrobore teses com o
conhecimento que Zenith tem das leituras de Pessoa ou das suas relações
afetivas. Não foi esse o trabalho, contudo, que Zenith fez. A sua
biografia, tão pedagógica em certos aspectos, tão voltada para o grande
público, parece por outro lado não se lhe destinar precisamente por isto. Todas
as grandes biografias têm alguma coisa a dizer. Esta, contudo, parece
escusar-se a isso. Dá-nos o suficiente para que possamos dizer muita coisa
sobre Pessoa; Zenith, no entanto, não parece ter muito a dizer sobre ele.
Esta biografia
não foi escrita para o público português. Isso nota-se no modo como é exposto o
contexto histórico, talvez um pouco básico para o leitor português,
familiarizado com a vida política da I República ou do Estado Novo. Há um travo
pedagógico no livro que, para lá daqueles assuntos em que parece despropositado
para um português, tem as suas virtudes e os seus defeitos.
A biografia de Gaspar Simões, tão criticada e tão louvada ao longo dos
anos, tinha pelo menos esta qualidade. Podíamos não concordar com a leitura
psicanalítica que o crítico fez de Pessoa, podemos até saber que o próprio
Pessoa desconsiderava a interpretação de Gaspar Simões; no entanto, é uma
biografia que resiste ao tempo, mesmo que entretanto já se saiba muito mais
sobre a vida de Pessoa, já se conheçam textos — alguns até dos mais importantes
– que alteram obrigatoriamente a imagem do poeta e que a psicanálise já não
esteja na moda. A ideia de ver o desdobramento heteronímico como um sintoma de
uma personalidade mal integrada, de perceber o drama de Pessoa ortónimo como o
da personalidade com consciência dessa incapacidade de integração, tem
obviamente uma força poderosa que dá unidade ao livro.
Não estamos, com isto, a defender a necessidade de uma interpretação
“original” só porque sim; é claro que as interpretações só têm utilidade na sua
relação com a verdade dos textos. Isto é, de nada nos serviria uma
interpretação psicanalítica de Fernando Pessoa se esta não aprofundasse os textos,
se não nos desse uma maior consciência da complexidade pessoana mediante a
leitura.
O que acontece com esta biografia de Zenith é, então, uma espécie de
contenção no papel do intérprete que tira alguma força ao livro. É interessante
saber muito sobre a vida de Pessoa? Certamente, mas no capítulo da curiosidade.
A força maior de um livro destes passa por aquilo que pode dar à leitura de
Pessoa. Ora, Zenith não parece querer dar muito. Contém-se, numa atitude
que terá certamente os seus adeptos, que não quer ser parcial e que é também,
em certa medida, generosa. Poderá gerar bons livros futuros sobre Fernando
Pessoa, escorados em informação organizada por Zenith. Não deixa, contudo, de
retirar alguma força ao seu livro.
A haver alguma “tese” na biografia de Richard Zenith ela passará,
timidamente, pela noção de que aquilo que faz de Pessoa uma figura literária
importante é a sua fragmentação. Não propriamente o desdobramento heteronómico,
porque desse podemos encontrar antecedentes literários noutros autores, como
(com uma série de diferenças impossíveis de elencar aqui) Kierkegaard; a grande
obra de Pessoa passaria pela tentativa de manter sempre a sua obra fragmentada,
contraditória, até, numa espécie de corpus no sentido medieval do termo
(uma obra em remissão constante para si própria, fazendo uso de conceitos
explicados noutros lugares), embora com uma diferença fundamental: a
subsidiariedade desta obra não assentaria, no fim, sobre uma tese fundamental ou
sobre uma qualquer ideia de verdade. Seria a própria fragmentação, a ideia de
um “eu” plural o sustento de todas as vozes.
Nisto Zenith é, realmente, diferente de alguns dos principais autores que
se dedicaram à ideia de alteridade em Pessoa, como Jacinto do Prado Coelho ou
Pierre Hourcade. Hourcade é especialmente engenhoso porque associa a
heteronímia (ou aquilo que ele podia conhecer da heteronímia) à sucessão de
movimentos — paulismo, intersecionismo, futurismo — que caracterizam o
modernismo português. Isto é, o que estaria em causa para Hourcade, mais do que
uma ideia de alteridade, seria uma ideia de movimento, de uma obra em evolução
constante, que ilustraria por isso mesmo a ideia de movimento.
A sua
biografia, tão pedagógica em certos aspectos, tão voltada para o grande
público, parece por outro lado não se lhe destinar precisamente por isto. Todas
as grandes biografias têm alguma coisa a dizer. Esta, contudo, parece
escusar-se a isso. Dá-nos o suficiente para que possamos dizer muita coisa sobre
Pessoa; Zenith, no entanto, não parece ter muito a dizer sobre ele.
Com Zenith, contudo, aquilo que temos é um esforço de manter sempre a
alteridade fora de uma corrente agregadora ou de uma ideia interpretativa
principal, que unificaria a conceção artística de Pessoa. A ideia, de uma forma
redutora, é a de que não há bem ideia, de que é preciso um esforço para
resistir à tentação unificadora e que a personalidade e o jogo literário de
Pessoa se concentram nessa resistência às prisões do sentido. Também isto,
contudo, mostra como a utilidade do trabalho anterior e Zenith prejudica este
trabalho biográfico. Se a fragmentação é o grande valor pessoano, a edição das
suas obras é, de facto, o grande trabalho: é o único modo de as apresentar
simultaneamente, sem precedências de umas sobre outras, de tal modo que se
possam contradizer constantemente diante do leitor. Mas se é este, de facto, o
grande valor, então a sua biografia também tem pouco interesse num mundo tão
artificialmente construído, tão autoconsciente das limitações do eu, num
esforço tão claro para se libertar do “empirismo organizador” que qualquer vida
constitui.
Sejamos claros: é impossível um trabalho desta dimensão, de um estudioso
tão conhecedor e tão arguto, não ter uma importância desmedida. É claro que
tem: há uma importância social óbvia na existência de uma biografia de
Pessoa deste género, por tudo o que trará para a divulgação da obra de Pessoa e
da sua figura, pelo interesse que suscitará, pelos comentários e até pela
projeção internacional do poeta. É também importante o trabalho organizador
que uma biografia destas comporta, embora, como já o dissemos, Zenith já
tivesse feito muito desse trabalho organizador. Mas se encararmos uma biografia
como mais do que um apêndice ao biografado, se encararmos o trabalho também ele
como “obra”, então esta completíssima biografia poderia dar um pouco mais.
Carlos
Maria Bobone, “Richard Zenith e Fernando Pessoa: o que revela a nova biografia
do poeta português?” in https://observador.pt/especiais/richard-zenith-e-fernando-pessoa-o-que-revela-a-nova-biografia-do-poeta-portugues/
, 2022-06-12
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obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de
Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
CARREIRO, José. “Pessoa.
Uma Biografia, por Richard Zenith”. Portugal, Folha de Poesia, 20-05-2022.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/05/pessoa-uma-biografia-richard-zenith.html