François Villon (1431?-1463), poeta francês
do final da Idade Média, também boémio e ladrão, é precursor dos “poetas
malditos” do Romantismo.
BALLADE
DES MENUS PROPOS.
Je
congnois bien mouches en laict ;
Je
congnois à la robe l’homme ;
Je
congnois le beau temps du laid ;
Je
congnois au pommier la pomme ;
Je
congnois l’arbre à veoir la gomme ;
Je
congnois quand tout est de mesme ;
Je
congnois qui besongne ou chomme ;
Je
congnois tout, fors que moy-mesme.
Je
congnois pourpoinct au collet ;
Je
congnois le moyne à la gonne ;
Je
congnois le maistre au valet ;
Je
congnois au voyle la nonne ;
Je
congnois quand piqueur jargonne ;
Je
congnois folz nourriz de cresme ;
Je
congnois le vin à la tonne ;
Je
congnois tout, fors que moy-mesme.
Je
congnois cheval du mulet ;
Je
congnois leur charge et leur somme ;
Je
congnois Bietrix et Bellet ;
Je
congnois gect qui nombre et somme ;
Je
congnois vision en somme ;
Je
congnois la faulte des Boesmes ;
Je
congnois filz, varlet et homme ;
Je
congnois tout, fors que moy-mesme.
ENVOI.
Prince,
je congnois tout en somme ;
Je
congnois coulorez et blesmes ;
Je
congnois mort qui nous consomme ;
Je
congnois tout, fors que moy-mesme.
Œuvres complètes de
François Villon,
Texte établi par éd. préparée par La Monnoye, mise à jour, avec notes et
glossaire par M. Pierre Jannet, A. Lemerre éd., 1876 (p. 117-118) <https://fr.wikisource.org/wiki/Ballade_des_Menus_Propos>
[traduções]
BALADA DAS COISAS SEM IMPORTÂNCIA
Conheço
a mosca em leite branco,
Conheço
o homem pela veste,
Conheço
o tempo mau e o brando,
Conheço
o ramo e o cipreste,
Conheço
a fruta onde se colga,
Conheço
quando tudo é o mesmo,
Conheço
quem trabalha ou folga,
Conheço
bem, fora a mim mesmo.
Conheço
o gibão no colete,
Conheço
no hábito o monge,
Conheço
o patrão no valete,
Conheço
pelos véus a monja,
Conheço
o engano e a lisonja,
Conheço
o louco solto a esmo,
Conheço
o vinho bom de longe,
Conheço
bem, fora a mim mesmo.
Conheço
o jegue e o ginete,
Conheço
a carga que os assoma,
Conheço
Bia e Elizabete,
Conheço
a ficha que faz soma,
Conheço
a visão e o sonho,
Conheço
os hereges Boêmios,
Conheço
os poderes de Roma,
Conheço
bem, fora a mim mesmo.
Príncipe,
bem conheço, em suma:
Conheço
os bons e os enfermos,
Conheço
a morte e o que se esfuma,
Conheço
bem, fora a mim mesmo.
Villon, François. Poesia,
trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: EdUSP, 2000, p. 316-9
BALADA DAS COISAS SEM IMPORTÂNCIA
Conheço
se há moscas no leite,
Conheço
pela roupa o homem,
Conheço
o tédio e o deleite,
Conheço
a fartura e a fome,
Conheço
a mulher pelo enfeite,
Conheço
o princípio e o fim,
Conheço
pela chama o azeite,
Conheço
tudo, menos a mim.
Conheço
o gibão pela gola,
Conheço
o rico pelo anel,
Conheço
o fiel pela sacola,
Conheço
a monja pelo véu,
Conheço
o porco pela tripa,
Conheço
o irmão pelo latim,
Conheço
o vinho pela pipa,
Conheço
tudo, menos a mim.
Conheço
a mula e o cavalo,
Conheço
o carro e a carreta,
Conheço
a galinha e o galo,
Conheço
o sino e a sineta,
Conheço
a flor pelo talo
Conheço
Abel e Caim,
Conheço
o pote e o gargalo,
Conheço
tudo, menos a mim.
Ofertório
Príncipe,
conheço tudo em suma,
Conheço
o branco e o carmim,
E
a morte que o fim consuma.
Conheço
tudo, menos a mim.
Tradução de Reynaldo
Ferreira, http://www.arteculturanews.com/poesia51.htm,
20/6/2005
BALADA DAS COISAS DESIMPORTANTES
Conheço
bem moscas no leite;
Conheço
o homem pela roupa;
Conheço
o bom tempo e o mau;
Conheço
a maçã pela macieira;
Conheço
a árvore ao ver a goma;
Conheço
quando tudo é assim mesmo;
Conheço
quem trabalha ou folga;
Conheço
tudo, menos a mim mesmo.
Conheço
o gibão pelo colarinho;
Conheço
o monge pelo hábito;
Conheço
o mestre pelo criado;
Conheço
pelo véu a freira;
Conheço
quando trapaceiro deita fala;
Conheço
loucos nutridos de cremes;
Conheço
o vinho pelo tonel;
Conheço
tudo, menos a mim mesmo.
Conheço
cavalo e mulo,
Conheço
seu encargo e sua carga;
Conheço
Beatriz e Belinha;
Conheço
ficha que conta e soma;
Conheço
a vigília e o sono;
Conheço
a falta dos Boêmios;
Conheço
o poder de Roma.
Conheço
tudo, menos a mim mesmo.
Príncipe,
eu conheço tudo, em suma.
Conheço
corados e pálidos;
Conheço
a morte, que nos consome;
Conheço
tudo, menos a mim mesmo.
wilson a. ribeiro jr., https://warj.med.br/memo/villon.asp,
30.09.2021
François Villon (Grand Testament de Maistre François Villon, 1489) |
FRANÇOIS VILLON, CRIMINOSO E POETA
Falámos na
semana passada, de um príncipe francês e de um nobre de Espanha: Charles
d'Orléans e o Marquês de Santillana. Hoje iremos falar de um pobre plebeu de
Paris, de quem os azares da existência e as vicissitudes de um temperamento
irrequieto fizeram um vagabundo e até um criminoso de direito comum. Mas na
balança dos valores poéticos este plebeu pesa sem dúvida muito mais que esses
dois nobres, ainda seus contemporâneos; e no tribunal da crítica de poesia este
criminoso ver-se-á inteiramente ilibado de culpas. Com efeito, a sua obra (e
apenas a sua obra é que temos ele julgar) não apresenta nenhum daqueles
pequenos delitos - ele maneirismo, de preciosismo, de artificialidade - que
mancham um pouco, aqui e ali, as obras ele Charles d'Orléans e do Marquês ele
Santillana. Por outro lado, há em toda essa obra um tal vigor e um tal sabor de
genuína raiz popular que a sentimos incomparavelmente mais perto de nós. Enfim,
por outras palavras (e isto não tem absolutamente nada a ver com a condição
social destes três poetas do século xv), tanto Charles d'Orléans como o Marquês
de Santillana, ambos poetas ele primeira categoria, tinham, indubitavelmente,
muitíssimo talento; mas François Villon, além do talento - também tinha génio.
E não falta mesmo quem o considere o vulto mais genial de toda a poesia
francesa.
Essa
genialidade manifesta-se logo no domínio da expressão: François Villon possuía,
por instinto, o dom da palavra exata, da construção certeira, da imagem que
acerta no alvo - e logo nos faz estremecer da cabeça aos pés, porque o alvo é
afinal o nosso próprio coração. Um poeta alemão do século xx - Gottfried Benn -
escreveu um dia o seguinte a este respeito: "A relação que se tem com a
palavra é primária, não pode aprender-se. Pode-se aprender o equilibrismo, a corda
bamba, os jogos do trapézio, a marcha em cima dos pregos, mas colocar a palavra
para que ela exerça a sua fascinação, isso, ou se sabe fazer ou não se
sabe." Ora isto mesmo sabia-o François Villon, e no mais alto grau. Mas
saber isto mesmo no mais alto grau também apresenta os seus inconvenientes: os
poetas que assim o sabem são praticamente intraduzíveis. E devo confessar,
desde já, que, sob este aspeto, poucos poetas até agora me deram tantas dores
de cabeça como François Villon. Deixaremos, contudo, este ponto para mais
tarde.
De
momento, ou eu me engano muito ou há por aí algumas pessoas que estarão
interessadas em saber como é que François Villon se tornou um vagabundo e quais
os crimes de que veio a ser acusado. A curiosidade acerca deste género de
coisas continua ainda a ser muito forte em muita gente. Pois bem: vamos lá a um
sucinto relato biográfico.
François
Villon - cujo verdadeiro nome era François de Montcorbier (e também conhecido
por François des Loges) - nasceu em Paris, provavelmente em 19 de abril de
1432. Paris teria então o aspeto que se vislumbra na zona de fundo deste
quadro, com as duas torres da abadia de Saint-Germain-des-Prés ali à esquerda,
o vulto do Louvre (do Louvre de então) mesmo no meio e, lá para cima, a Butte
Montmartre, o outeiro de Montmartre ... Aqui temos agora, vista também da Rive
Gauche, outra perspectiva do Louvre; tratemos de não prestar atenção à figura
da direita, em grande plano, e atentemos, sobretudo, naqueles três figurantes,
do lado direito, indolentemente encostados ao parapeito sobre o Sena... Serão
porventura contemporâneos de François Villon e algum deles, porventura, também
estudante como ele foi; e quem sabe também se mais assíduo frequentador, como o
próprio Villon, de lugares como estes - a que se chamavam “casas de banhos”,
mas eram antes “tabernas” de características muito especiais - do que
propriamente das aulas da Universidade... Seja como for, e não obstante os atrativos
ele outra ordem que a vida estudantil apresentaria, Villon acaba por
licenciar-se pela Faculdade das Artes. Mas, poucos anos depois, as más
companhias - tanto masculinas como femininas - arrastam-no para situações altamente
comprometedoras. Apesar de tudo, as companhias femininas ainda serão as menos
graves - e Villon, mais tarde, certamente se recordará de todas elas, numa
saborosa “Balada das Damas de Paris”, em que celebra (já no século xv!), sobre
todas as demais mulheres, a tagarelice, o poder de argumentação, a lábia, em
suma, elas parisienses:
Se bem que sejam bem-falantes
venezianas, florentinas;
se bem que a nós digam bastante
ainda outras mais antigas;
e que as de Roma ou Lombardia
falem que nem um chafariz
(mais as de Génova ou de Pisa)
- finas de boca, só em Paris!
Falam de papo geralmente
- ao que se diz - napolitanas;
e são também eloquentes
as alemãs e as prussianas.
Mas sejam gregas ou troianas
ou de qualquer outro país,
húngaras mesmo ou castelhanas
- finas de boca, só em Paris!
Sejam bretãs, sejam suíças,
ou de Tolosa, ou da Gasconha,
ao pé de duas parisinas
perdem o pio mais a ronha.
De inglesas digo a mesma cousa.
(Faltou citar algum país?)
Em parte alguma isto se encontra:
- finas de boca, só em Paris!
Príncipe, dá a estas damas
justo valor, como um juiz.
Por mais que as outras tenham
fama
- finas de boca, só em Paris!
Desde já
previno os interessados que aquilo que acabaram de ouvir foi mais uma “adaptação”
que propriamente uma "tradução": por maior cuidado que se ponha nesta
tarefa, o tal poder de François Villon para colocar a palavra no lugar exacto “para
que ela exerça a sua fascinação” torna praticamente intraduzíveis quase todas
as suas poesias. A esta dificuldade acrescente-se ainda o emprego constante do
"calão" - reflexo dos “meios” boémios frequentados por Villon - e
ter-se-á uma ideia de quanto são espinhosas ele obter as necessárias
correspondências. Darei só um exemplo: no refrão, quando Villon diz “Il n 'est
bon bec que de Paris" - o que daria, quase à letra, "Não há línguas
afiadas como as de Paris" - , vi-me obrigado a traduzir, até por
exigências ele ritmo, "Lábia a valer, só em Paris!". E fui forçado
também a omitir referências a outras não-parisienses, tais como: piemontesas,
egípcias, lorenas, picardas... Mas creio que se conservou o sentido geral da
poesia.
Posto
isto, voltemos ao "romance" da vida de Villon. Com efeito, é de um autêntico
"romance" que se trata. Envolvido no assassínio de um padre e no assalto
ao cofre do Colégio de Navarra, Villon vê-se compelido por mais de uma vez a
ausentar-se de Paris e acaba por ser preso, em 1461, em Meung-sur-Loire, nas
prisões do bispo de Orléans. Nessa altura o que o salva é a passagem do rei Luís
XI por esta cidade e a amnistia de que, por esse motivo, ele se vê beneficiado.
É, no entanto, sol de pouca dura: dois anos depois, implicado em nova rixa,
ei-lo condenado à forca. Escreve então um dos seus melhores poemas: um epitáfio
em forma de balada, em que pede clemência para si e para os companheiros igualmente
condenados. Esse é o texto que vamos agora apresentar numa versão de Herculano
de Carvalho, incluída no livro Musa de Quatro Idiomas, aonde já temos
ido buscar outros empréstimos; e creio poder assegurar que seria impossível
traduzir melhor uma poesia como esta:
Homens irmãos que mais que nós
viveis,
Não deixeis vosso peito empedernido,
Pois que, se compaixão de nós
haveis,
Bem será Deus de vós compadecido.
Aqui somos atados cinco, seis.
Quanto à carne, demais por nós
nutrida,
É gasta, devorada, corrompida
E nós, ossos, cinza e pó vamos
ser.
Que ninguém de nós ria nesta
vida;
Rogai a Deus que nos queira
absolver!
Se clamamos, irmãos, vós não
deveis
Ter desdém, por termos sido
feridos
Pela justiça. Pois vós sabereis
Que nem todos têm certos os
sentidos;
Intercedei por nós assim
transidos
junto do Filho da Virgem Maria,
Que não seja, da graça, a alma
vazia,
Pra do fogo infernal nos
proteger.
Somos mortos, nada nos arrelia;
Rogai a Deus que nos queira
absolver!
Pela chuva lavados e polidos,
Pelo sol ressequidos e tostados,
Os olhos pelos corvos engolidos,
A barba e os cabelos arrancados.
Nunca jamais estamos assentados;
Pra cá, pra lá, como o vento
varia;
Para onde quer, sem parar, nos
envia.
Bicadas: mil, até dedais parecer.
Não sejais, pois, da nossa
confraria;
Rogai a Deus que nos queira
absolver!
Senhor Jesus, de todos senhoria,
Poupai-nos do Inferno a tirania:
Nada temos com ele a resolver.
Homens, aqui não cabe a zombaria;
Rogai a Deus que nos queira
absolver!
A perspetiva
da morte iminente, a perspetiva do próprio Inferno, são bem patentes nestes versos,
sem dúvida elos mais impressionantes e patéticos de toda a poesia europeia, já
pela consciência do mal e pelo sentimento de arrependimento que exprimem, já
pela situação extrema em que de facto se inscrevem. E a situação é tão
desesperada que só na clemência divina é que François Villon coloca as suas
últimas esperanças; só para ela recorre, só dela espera uma derradeira absolvição.
Mas a justiça dos homens, por esta vez, intervém a tempo: um decreto do
Parlamento vem anular a sentença; e Villon, em lugar da pena ele morte, vê-se
tão-só banido de Paris pelo espaço de dez anos. Depois disto, perde-se
inteiramente o rasto de François Villon; mas o rasto ela sua poesia, esse, nunca
mais se perdeu: e em 1489, menos de trinta anos depois destes acontecimentos, menos
ele quarenta anos depois ela invenção da imprensa, um dos primeiros livros de
versos que sai dos prelos franceses é justamente o que reúne as obras ele
François Villon.
David Mourão-Ferreira,
"O 'Outono da Idade Média' V - François Villon, criminoso e
poeta", Colóquio/Letras, n.º 166/167,
Jan. 2004, p. 441-445.
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gostar de ler:
DA COSTA, D. Testamento do Vilão – Invenção e recepção da poesia de François
Villon. 2013. f. 304. Tese – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas. Departamento de Letras Modernas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2013.
DA
COSTA, Daniel. “Autor e personagem - François Villon e a nova crítica na França”,
in Revista Criação
& Crítica n.º 12, 2014. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v0i12p76-87
DA
COSTA, Daniel. “Clément Marot: o principal editor antigo do corpus atribuído a
François Villon”, in Revista Criação & Crítica, dezembro 2015. DOI:10.11606/issn.1984-1124.v0i15p41-54. Project: Invenção e recepção das obras atribuídas a François Villon
BASTOS, Gustavo. “François Villon, o primeiro dos poetas malditos” - parte I (16/07/2016 | Atualizado 08/03/2020) e parte II (23/07/2016 | Atualizado
CARREIRO, José. “François
Villon, criminoso e poeta”. Portugal, Folha de Poesia, 17-08-2022. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/08/francois-villon-criminoso-e-poeta.html
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