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quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Data: Tempo de solidão e de incerteza, Sophia Andresen

 


DATA

 

(à maneira d’Eustache Deschamps)

 

Tempo de solidão e de incerteza

Tempo de medo e tempo de traição

Tempo de injustiça e de vileza

Tempo de negação

 

Tempo de covardia e tempo de ira

Tempo de mascarada e de mentira

Tempo que mata quem o denuncia

Tempo de escravidão

 

Tempo dos coniventes sem cadastro

Tempo de silêncio e de mordaça

Tempo onde o sangue não tem rastro

Tempo de ameaça

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

LIVRO SEXTO, 1.ª ed., 1962, Lisboa, Livraria Morais Editora • 2.ª ed., 1964, Lisboa, Livraria Morais Editora • 3.ª ed., 1966, Lisboa, Livraria Morais Editora • 4.ª ed., 1972, Lisboa, Moraes Editores • 5.ª ed., 1976, Lisboa, Moraes Editores • 6.ª ed., 1985, Lisboa, Edições Salamandra • 7.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 8.ª ed., revista, 2006, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (9.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gustavo Rubim.

 

 


 

Na década das maiores convulsões colonialistas, Sophia publica em Livro Sexto (1962) o mais representativo poema sobre o tempo político, "Data".

A metáfora do tempo é aqui baseada na técnica da substituição e da identidade: "tempo" é sempre uma palavra de código para substituir a proibida palavra "Regime" (subjugador e fascista), código que era reconhecido e utilizado por todos os poetas da época. Esta metáfora - que obedece a um esquema simples de construção: A = B, em que A = tempo e B = Regime - permite outras associações preposicionais, dando preferência a conceitos abstratos, o que só serve para reforçar a subtileza da metáfora: solidão, incerteza, medo, traição, injustiça, vileza, negação, covardia, ira, mascarada, mentira, escravidão, conivência, silêncio, ameaça. O tempo de tudo isto pretende ser aquilo a que Ovídio chamava Tempus edax rerum (Metamorphoses, 15, 234), o tempo devorador de todas as coisas, com a particularidade de o tempo político de Sophia apenas querer devorar as coisas que são coercitivas da liberdade individual dos cidadãos.

 

Carlos Ceia, “As Fracturas do Tempo Délfico na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen”, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas n.º 11. Lisboa, Edições Colibri, 1998

 

***

 

Vejamos o caso do poema “Data”. Seu título é, contraditoriamente, “Data” sem data, tempo indeterminado pairante sobre os homens. Sua presença quase fantasmagórica desse modo coloca em cena uma universalização da “Data” que intitula o poema: é uma data qualquer e é toda data que, no mundo contemporâneo, submete os homens aos desígnios da temporalidade assombrosa do “país ocupado”. Não se consegue precisá-la porque o tempo em que ocorre persegue os homens.

Eis um poema com três quartetos que obedecem rigidamente a um esquema de três decassílabos iniciais seguidos de um hexassílabo final. Os versos todos usam a anáfora inicial “Tempo de” ou “Tempo que”. Esse padrão rítmico e de conteúdo estabelece uma circularidade interna aos versos e que atravessa todo o poema. Constrói-se um tempo inescapável que justifica a perseguição assinalada anteriormente: o tempo do agora condiciona os homens aos horrores elencados através dos versos e, mesmo se houver horrores não listados, o poema termina com os potenciais horrores em aberto: “Tempo de ameaça”.

Ao contrário dos versos finais das estrofes anteriores, perfeitos hexassílabos, o último verso se baseia numa construção mais peculiar. Ele só será hexassílabo se separarmos “de” e o “a-” de “ameaça”, o que infringe a escansão mais estabelecida tradicionalmente. Assim, ou o lemos como pentassílabo (afrontando o padrão que o poema todo obedece), ou o lemos como hexassílabo (exigindo uma pausa mais longa e inusual em um momento chave do poema). A retração métrica do verso final ou a pausa entre sílabas fundíveis induzem em todo caso a um estranhamento que não é outra coisa senão, metaforicamente, a própria ameaça que o verso anuncia. Contribui para essa leitura as aliterações da consoante fricativa alveolar [s] em toda a última quadra, gerando ainda mais tensão.

Por fim, “à maneira de Eustache Deschamps”, na epígrafe, deslinda sutilmente no poema sua intencionalidade de teor testemunhal. Deschamps foi um poeta francês da Baixa Idade Média responsável por estabelecer algumas formas tradicionais do cancioneiro medieval. Faz sentido citá-lo em um poema cuja musicalidade tem marcadamente tom medieval, seja pelas repetições, seja pela métrica padronizada. Indo além dessa leitura, é preciso considerar que a produção lírica de Deschamps “testemunhava” os acontecimentos históricos que o escritor vivia (DRUCIAK, 2018). Citá-lo significa, para Andresen, reconhecer sua idêntica posição de testemunha perante os fatos que se desenrolavam, porém, tal qual Deschamps, testemunha ativa e partícipe em seu tempo, já que nossa poeta não se esquiva da política concreta nem de elementos políticos em sua escrita.

 

Samuel Pereira, O testemunho na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen: aproximações entre ética e estética. Goiânia, UFG-FL, 2022

 

***

 

O “tempo em que os homens renunciam” é marcado pela solidão, pela incerteza, pelo medo, pela opressão, pela violência e por diversos valores que podem ser reunidos em torno da ideia de injustiça. Assim como os chacais do poema anterior, temos a ameaça novamente neste poema, mas de forma clara e direta. A vileza se traduz nesse tempo por meio da traição, da violência, da falsidade, da escravidão. A opressão e o cerceamento do indivíduo aparecem pela imagem da mordaça, que cala a voz que deseja romper esse cenário e irromper esses dias de escuridão.

Os substantivos são listados quase em oposição às palavras que usamos para definir o projeto poético andreseniano. A busca pela verdade, clareza, justiça, inteireza e harmonia das coisas e do mundo aparece no poema pelo contraste apresentado pela voz poética na definição de seu tempo. A verdade arrefece entre a falsidade, as máscaras e a traição. A justiça não encontra pares na escravidão, no medo e na vileza. E a inteireza não se constitui na desarmonia da ameaça, da solidão e da incerteza. Esse tempo cantado pela voz poética é aquele em que o homem tira do homem sua humanidade.

O poema se constitui com frases simples, há apenas três orações em todo o poema: “Tempo que mata quem o denuncia” e “Tempo onde o sangue não tem rasto”. Mas os verbos não são necessários para que compreenda toda a imagem da repressão e ameaça, para que se entenda como o tempo se constitui de modo que a injustiça impera. E, onde há império, não há igualdade nem harmonia. A enumeração de substantivos aparece em gradação e eles são “repartidos por variados campos semânticos cujo denominador comum é a negação, o processo lento de aniquilamento” (SANTOS, H., 1982, p. 174). Assim: «a anáfora, sugestivamente encenada e gradativa, enumera de forma exaustiva uma longa lista de conceitos abstratos e poderosamente negativos para culminar de forma inequívoca na guerra, no aniquilamento e na morte» (MALHEIRO, H., 2008, p. 84).

Nesse sentido, o ritmo de gradação da enumeração pode ser visto do sentido passivo ao ativo, isto é, daquele que recebe a ação e daquele que a pratica. Como dissemos, não há quase verbos de ação no poema, mas as imagens trazidas dependem da ação humana e dessa ideia é possível depreender um aspeto passivo ou ativo. Na primeira estrofe, por exemplo, temos mais substantivos de caráter passivo, como a solidão, incerteza e medo. A partir da segunda estrofe, as imagens oferecem um sentido mais ativo, pois há a “ira”, a “mascarada”, a “mentira”, além do período composto por duas orações. Por fim, na terceira estrofe, chegamos àqueles que se silenciam, que são coniventes, que não deixam rastro. É o tempo da ameaça, isto é, aquele que consegue impor-se pela tensão e pelo medo.

O título “Data” reforça a ideia de que há uma relação com o tempo atual da voz poética, uma vez que o termo se configura como período de tempo definido. Por extensão de sentido, a palavra também se refere a “época”, como a época em que se vive. Esse significado encontra lugar no contexto em que Sophia Andresen publica Livro Sexto, pois a ditadura do Estado Novo estava já no poder há cerca de 35 anos. Essa perspetiva é intensificada pelo tempo verbal das três orações que se encontram no poema – “mata”, “denuncia”, “tem” –, o presente com aspeto durativo, ou seja, indica a continuidade da ação.

O tempo de ameaça citado no verso que finaliza o poema “Data” suscita também a ideia da censura, muito forte no período do Estado Novo. A ação da PIDE, a polícia política do governo salazarista, parece ser tematizada nos textos que trazem a ameaça como imagem do contexto de que fala a voz poética. Além de “Data”, temos no poema “Pranto pelo dia de hoje”, também extraído de Livro Sexto, uma voz poética que fala o pesar de assistir a criação e a luta serem impedidas e cerceadas […].

 

Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015

 

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Data: Tempo de solidão e de incerteza, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-06. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/data-tempo-de-solidao-e-de-incerteza.html


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