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sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal, Sophia Andresen

 


 

MEDITAÇÃO DO DUQUE DE GANDIA

SOBRE A MORTE DE ISABEL DE PORTUGAL

 

Nunca mais

A tua face será pura limpa e viva

Nem o teu andar como onda fugitiva

Se poderá nos passos do tempo tecer.

E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

 

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

A luz da tarde mostra-me os destroços

Do teu ser. Em breve a podridão

Beberá os teus olhos e os teus ossos

Tomando a tua mão na sua mão.

 

Nunca mais amarei quem não possa viver

Sempre,

Porque eu amei como se fossem eternos

A glória, a luz e o brilho do teu ser,

Amei-te em verdade e transparência

E nem sequer me resta a tua ausência,

És um rosto de nojo e negação

E eu fecho os olhos para não te ver.

 

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

MAR NOVO, 1.ª ed., 1958, Lisboa, Guimarães Editores; 2.ª ed., 1985, in No Tempo Dividido e Mar Novo, Lisboa, Edições Salamandra, ilustração de Arpad Szenes; 3.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Fernando J.B. Martinho.

 




Textos de apoio

Este poema lembra um acontecimento histórico: Isabel de Portugal, rainha de Espanha e Imperatriz do Sacro Império Romano-Germânico, casada com o Imperador Carlos V, faleceu em 1 de maio de 1539, ainda nova, deixando o imperador mergulhado em profundo desgosto. Era mulher de extraordinária beleza.

«Com a sua morte está ligado o célebre episódio do marquês de Lombay, futuro duque de Gandía e futuro S. Francisco de Borja, que acompanhou o seu corpo de Toledo a Granada e terá exclamado, ante a horrível decomposição de cadáver desfigurado: 'Nunca mas, nunca mas servir a Senor que se me pueda morir!'. Verdadeira ou lendária, a exclamação continua a dar a medida da beleza da imperatriz e já vem implícita em Sandoval, que escreve antes de Ribadeneyra e de Cienfuegos […].

O pungente poema de Sofia de Mello Breyner Andresen, "Meditação do Duque de Gandía sobre a morte de Isabel de Portugal", em Mar Novo, não assenta em base histórica quanto à relação sentimental que deixa entrever entre Francisco de Borja e a imperatriz.» (Vasco Graça Moura, "Retratos de Isabel- Imagens de uma Imperatriz", Oceanos, n.º 3, março de 1990, p. 36. O ensaio foi recolhido com muito ligeiras alterações e agora com notas de rodapé no volume Retratos de Isabel e outras tentativas, Lisboa, Quetzal, 1994, pp. 147-180).

Retratos de Isabel e outras tentativas


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«A Lenda, sempre mais indiscreta, mas muitas vezes mais humana do que a História […] encarregou-se de romancear a memória da […] Isabel, outra Imperatriz e filha de D. Manuel, cuja formosura, num só dia, cadavericamente decomposta em ascorosa podridão, transformou um Duque de Gandia em asceta e santo […]» (Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas Damas (ed. fac-similada), Lisboa, Biblioteca Nacional, 1994, p. 69).

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«Ora, a ser assim, o verso-chave "E nunca mais darei ao tempo a minha vida" torna-se uma afirmação da revolta existencial que introduz a visão de um outro tempo do mundo e do ser humano nele, o lado de cá do tempo, o olhar do século XX sobre aquilo que ressoa na deixa que a lenda e a tradição fixaram, nas palavras onde ficou um pouco de experiência humana daquele momento em que a mundividência maneirista apontava já os abismos do barroco. Este outro olhar, ao fazer suas essas palavras, junta-lhes inevitavelmente alguma coisa que nem o pendor sentimental da visão romântica continha nem a visão religiosa esgota, mas que talvez se ligue ao que de mais radical o romantismo essencial legou à modernidade a partir dele gerada: a insubordinada recusa das evidências, dos limites, da pequenez dos pacatos equilíbrios. A voz que recusa a morte na "Meditação" pode muito bem ser, afinal, a mesma que, no poema "Biografia", sem máscara para o seu sujeito, afirma: “Odiei o que era fácil / Procurei-me na luz, no mar, no vento”.

Lida desta maneira, a "Meditação" torna-se uma das mais veementes manifestações daquele alto magistério que Sena leu, logo em 1958, na poesia de Sophia de Mello Breyner: “Entendamos, por sob a música dos seus versos, um apelo generoso, uma comunhão humana, um calor de vida, uma franqueza rude no amor, um clamor irredutível de liberdade - aos quais, como o poeta ensina, devemos erguer-nos sem compromissos nem vacilações." (Jorge de Sena, "Alguns poetas de 1958" in Estudos de Literatura Portuguesa II, Lisboa, Edições 70, 1988).

O "clamor irredutível de liberdade" de um Prometeu humano liberto, mais do que da lei da morte, da passiva aceitação da sua inevitabilidade. Um ser rebelde com causa justa, porque em torno de si o universo aí está, "na luz, no mar, no vento" a falar de um território em que deuses e homens se confundem, onde até "o tempo encontra a própria liberdade". Escravos da finitude e da morte, diz o poema, só o seremos se não fizermos do limite a nossa própria escolha, subvertendo o sentido do tempo no desafio de um nunca-sempre em que a vontade se afirma. A vontade de uma existência em estado puro, ideia ou deus ou tudo, sem princípio nem fim: “Nunca mais amarei quem não possa viver / Sempre.”

Por isso, quando o poema "Nunca mais" fala de "tempo puro", fala inevitavelmente de seres que não se confinam a uma só natureza: “Pois o tempo já não regressa a ti / E assim eu não regresso e não procuro / O deus que sem esperança te pedi.”

Este "deus" poderia não ser - e não era com certeza - o "senhor" que Francisco de Borja, Duque de Gandía, havia de servir ao longo dos anos que lhe coube viver depois daquele dia em que gravou em tempo as palavras que o poema de Sophia tornou nossas também.»

Ler mais em: «Senhores que podem morrer (meditação acerca de um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen)», Fátima Freitas Morna. In: Estudos em Homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen, Conselho Directivo da FLUP, Conselho Científico da FLUP (org.), Porto, Faculdade de Letras, 2005, pp. 9-30.

 




Questionário sobre o poema "Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal", de Sophia de Mello Breyner Andresen. 

1. Explicita o modo como o sujeito poético reafirma a decisão de mudar o curso da sua vida, referindo o recurso expressivo que ele utiliza para vincar bem essa decisão.

2. Identifica os versos nos quais o sujeito poético recorda a beleza de Isabel de Portugal.

2.1 Indica os dois recursos expressivos presentes nesses versos e explica a sua expressividade literária.

3. Atenta na segunda estrofe. Mostra como a morte («a podridão», verso 8) está personificada.

4. O sujeito poético decide servir, isto é, amar, alguém com características invulgares.

4.1 Identifica, justificando, esse alguém.

4.2 Explica o processo usado pelo sujeito poético para intensificar essa decisão.

5. Atenta na quarta estrofe. Justifica a ocorrência de um verso constituído por uma só palavra.

 

Entre Palavras 9 - Português 9.º Ano - Livro prático do professor, António Vilas-Boas e Manuel Vieira. Lisboa: Sebenta, 2013, pp. 101, 111

 

Respostas esperadas

1. O sujeito poético reafirma a decisão de mudar o curso da sua vida através da repetição anafórica “Nunca mais” presente na segunda estrofe, na terceira e na quarta.

2. Os versos nos quais o sujeito poético recorda a beleza de Isabel de Portugal são: “A tua face será pura, limpa e viva / Nem teu andar como onda fugitiva / Se poderá nos passos do tempo tecer.”, (vv. 2 a 4).

2.1 Estes versos apresentam muitos recursos expressivos. Assim, no v. 3 ocorre uma comparação entre o “andar” e uma “onda fugitiva” que sugere a elegância do “andar” e a rapidez com que desapareceu, morreu; no v. 4 ocorre a personificação do “tempo” e a metáfora “tecer”. A metáfora liga-se a “andar”: “tecer” é a metáfora do movimento, daqui em diante impossível de ocorrer no “tempo”.

3. A personificação da morte ocorre quando o poema diz que a morte tomará na sua mão a mão da morta.

4.1 Quem o sujeito poético decide amar é Deus, porque o poema diz que o sujeito poético só poderá amar no futuro alguém que não pode morrer: Deus é imortal.

4.2 O processo usado pelo sujeito poético para intensificar essa decisão é a repetição da ideia de que só amará quem nunca possa morrer (vv. 6, 11, 12 e 19).

5. Trata-se do v. 12 “Sempre”: ao isolar esta palavra / este advérbio num verso, o sujeito poético aponta para a imortalidade, a perenidade de Deus.

 



 

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Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-07. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/meditacao-do-duque-de-gandia-sobre.html


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