Sophia e Francisco no jardim do Campo Alegre <https://purl.pt/19841/1/1960/1960-3.html> |
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ESTA
GENTE
Esta
gente cujo rosto Às
vezes luminoso E
outras vezes tosco
Ora
me lembra escravos Ora
me lembra reis
Faz
renascer meu gosto De
luta e de combate Contra
o abutre e a cobra O
porco e o milhafre
Pois
a gente que tem O
rosto desenhado Por
paciência e fome É
a gente em quem Um
país ocupado Escreve
o seu nome
E
em frente desta gente Ignorada
e pisada Como
a pedra do chão E
mais do que a pedra Humilhada
e calcada
Meu
canto se renova E
recomeço a busca De
um país liberto De
uma vida limpa E
de um tempo justo |
Sophia
de Mello Breyner Andresen
GEOGRAFIA, 1.ª ed., 1967, Lisboa, Edições Ática • 2.ª ed., 1972, Lisboa,
Edições Ática • 3.ª ed., 1990, Lisboa, Edições Salamandra, ilustrações de
Xavier Sousa Tavares • 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª
edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Frederico
Lourenço
Texto
de apoio
Sophia Andresen cria em Grades essa
união entre sua poesia e sua visão política. Isso ocorre, por exemplo, no poema
“Esta Gente”, extraído do livro Geografia, no qual a voz poética
relata e se posiciona sobre o alheamento e a manipulação do povo português.
A expressão “esta gente” faz uma
referência a um povo, o qual pode ser lido como o povo português em razão do
contexto de publicação da coletânea. Esse povo aparece descrito novamente pelo
seu rosto, como vimos em “Regresso”, por meio de uma antítese entre os
adjetivos luminoso e tosco, algo bruto, rústico. Da antítese, a voz poética
parte para um quase paradoxo ao definir o povo ora como escravo, ora como rei.
Ao “escravo”, podemos relacionar a
ideia de manipulação e de alienação política dessa gente, tornando-a escrava de
um regime que se impõe pela força ideológica e física. É importante ressaltar
que as ditaduras modernas “tendem sempre a apresentar-se como expressão
legítima dos interesses e das necessidades do povo” (BOBBIO, 1998, p. 374), com
o objetivo de manter o controle necessário para a manutenção da ordem e do
poder. Assim, “o povo é forçado a manifestar uma completa adesão à orientação
política do ditador a fim de que este possa proclamar que sua ação apoia-se na
vontade popular” (Ibidem), pois o salazarismo «tentou, também ele, ‘resgatar as
almas’ dos portugueses, integrá-los, sob a orientação unívoca de organismos
estatais de orientação ideológica, ‘no pensamento moral que dirige a Nação’,
‘educar politicamente o povo português’ num contexto de rigorosa unicidade
ideológica e política definida e aplicada pelos aparelhos de propaganda e
inculcação do regime e de acordo com o ideário da revolução nacional. Neste
contexto, sustenta-se a ideia de que o Estado Novo, à semelhança de outros
regimes fascistas ou fascizantes da Europa, alimentou e procurou executar, a
partir de órgãos do Estado especialmente criados para o efeito, um projeto
totalizante de reeducação dos ‘espíritos’, de criação de um novo tipo de
portuguesas e de portugueses regenerados pelo ideário genuinamente nacional de
que o regime se considerava portador» (ROSAS, 2001, p. 1032). Desse modo, temos
um povo controlado e submisso, por isso a imagem da escravidão.
Essa descrição acontece por meio de
orações e construções alternativas, ora assumindo uma característica, ora
outra, o que sugere, por um lado, um caráter mais instável dessas pessoas, e,
por outro, qualidades opostas que, de certa forma, complementam-se, criando uma
população que se caracteriza por suas fraquezas e suas virtudes. Esse caráter
mais cindido do povo suscita na voz poética a vontade de lutar e resistir
contra um Estado que tira da sua própria gente a liberdade e os direitos de
construir sua pátria por meio da participação política.
Essa gente inspira o combate porque é
moldada pela luta diária pela sobrevivência, seus rostos são desenhados “por
paciência e fome”. Paciência de esperar que as condições de pobreza que
Portugal apresentava na época em que se instaurou a ditadura do Estado Novo
fosse modificada, como vimos no capítulo 1 deste trabalho. E a fome que talha o
rosto desse povo como um escultor molda a madeira, esculpindo os detalhes do
sofrimento e da miséria nas curvas da face.
É sobre esse povo que o poder se
instaura e se impõe, e a imagem que a voz poética apresenta é novamente o país
ocupado, o qual “escreve seu nome” à custa do controle da população. A noção de
“escrever”, aqui, pode ser lida como a presentificação da ocupação. Tal ideia
aproxima-se à de Sophia Andresen de escrever os poemas que escuta, tornando-os,
assim, realidade. Assim como dizer, escrever seu nome é uma maneira de se
tornar presente. O país ocupado, então, é real na medida em que escreve seu
nome nos rostos, talhando-os pela miséria e pela alienação (palavra “alienação”
é usada no trecho com o sentido de alheamento, controle e distanciamento
daquilo que lhe é próprio, nesse caso, as liberdades e os direitos do cidadão).
Nesse país ocupado, a gente é “ignorada
e pisada”, e essa ocupação lembra uma invasão de tropas estrangeiras que
subjuga o povo e viola seus direitos, à maneira de um estado de sítio. A voz
poética reifica o povo ao mostrar que o Estado o trata como um objeto,
comparando-o a uma pedra, “E mais do que a pedra / Humilhada e calcada”. A
coisificação do homem é um mecanismo pelo qual Sophia Andresen pode indicar o
quanto a humanidade de seu povo é esmagada pelo Estado Novo, tanto pelo
controle ideológico como pelo cerceamento das liberdades individuais. Essa
ideia se reforça se considerarmos as condições de pobreza que grande parte da
população portuguesa enfrentava.
A última estrofe rompe a denúncia do
povo reificado pelo sofrimento e pelo poder do Estado e traz um aspeto positivo
de esperança. É pelo povo que o canto da voz poética se renova e a busca pela
liberdade da nação se reinicia. É interessante considerarmos esse reinício sob
o viés temático do eixo 2, trabalhado anteriormente. Neste, havia poemas de
denúncia, de um tempo dividido em que a nação aparecia ocupada e seu povo
limitado. No eixo atual, ainda que haja essa denúncia, ela aparece inserida num
projeto poético mais amplo do que a denúncia política sobre o contexto de
Portugal. Assim, conseguimos observar de uma forma mais clara em “Esta Gente” o
projeto poético que contempla o político, e não o político que aparece de forma
preponderante.
A liberdade, por exemplo, aparece como
um elemento importante na obra de Sophia Andresen, ao lado da clareza e da
presença das coisas. A busca pela justiça também une-se à procura pela
liberdade. No poema “Esta Gente”, observamos de forma explícita esse aspecto, e
não por meio de seus valores opostos, como acontece nos poemas do grupo
anterior. A voz poética deseja um “país liberto”, um país que deixe de ser
ocupado por homens que não acreditam nesse direito. Salazar, em um discurso
feito à imprensa em 1932, afirma que “autoridade e liberdade são dois conceitos
incompatíveis... Onde existe uma não pode existir a outra” (SILVA, P., 2013, p.
1928). A voz poética, por sua vez, exibe ao leitor seu projeto: busca da
liberdade, da clareza e de um tempo justo.
Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia
de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015
Questionário
sobre o poema “Esta gente”, de Sophia Andresen:
1. O
sujeito poético fala de um povo a partir da
descrição do rosto.
1.1. Identifique a relação semântica que se estabelece
entre as palavras “gente” e “rosto”.
1.2. Refira o recurso expressivo em que assenta essa
relação de palavras.
2. Identifique o recurso expressivo comum aos versos 2 e 3, comentando a relação existente
entre ambos.
3. Demonstre
que entre os versos 2-3 e 4-5 se estabelece um quiasmo e comente a sua
expressividade.
4. O caráter mais cindido do povo suscita
no sujeito poético primeiro uma manifestação de vontade e depois uma
transfiguração criativa e empenhada.
Refira
em que estrofes se verifica essa manifestação e transformação, explicitando o
seu conteúdo.
5. Decifre o simbolismo do bestiário
enumerado nos versos 8 e 9.
6. Caracterize essa “gente” a partir da
leitura da quarta e quinta estrofes.
Sugestões de
correção do questionário sobre a leitura do poema “Esta gente”:
1.1. Há uma relação de inclusão
que se estabelece entre a palavra “gente” que designa o todo (holónimo) e
“rosto” que designa uma parte desse todo (merónimo).
1.2. O recurso expressivo que
exprime a parte (“rosto”) pelo todo (“gente”) é a sinédoque (trata-se de um
recurso expressivo de natureza metonímica).
2. O recurso expressivo comum
aos versos 2 e 3 é a antítese, em que se estabelece uma relação de oposição
entre os antónimos “luminoso” e “tosco” que faz destacar uma alternância entre a clareza da luz e o caráter
rústico do tosco.
3. Há um paralelo ou uma
dupla antítese cujos termos se cruzam, em que “luminoso” está para “reis”,
assim como “tosco” está para “escravos”.
«A partir do termo “escravo”, podemos pensar na ideia
de manipulação e alienação política desse povo, o qual se torna escravo de um
governo autoritário que se impõe física e ideologicamente. […]
O outro lado da alternância sugere que essas pessoas
são como “reis”, o que pode ser lido no viés das virtudes dessa gente descrita.
A “realeza” dessas pessoas pode, aliás, indicar que eles são quem, de facto,
devem ter o poder, devem ser os governantes, em oposição à centralização de
poder pelo Estado.»
Portanto, na
condição de escravos essa “gente” afigura-se com um rosto “tosco” do qual só se
libertando e sendo senhora de si mesma poderá revelar-se luminosa.
4. «O caráter mais
cindido do povo suscita na voz poética, como mostra o início da terceira
estrofe, a vontade de lutar e resistir contra um Estado que tira da sua própria
gente a liberdade e os direitos de construir sua pátria por meio da
participação política.»
«É nessa impossibilidade que surge o canto da voz
poética e dela retira sua força, expondo ao leitor seus ideais: a busca pela
liberdade, pela clareza e por um tempo justo.» Por isso, na última estrofe o
sujeito poético afirma que o seu canto se renova.
5. «As referências
àqueles que estão no poder são feitas a partir de animais que têm, no
imaginário popular, algumas características vistas como pejorativas.
O abutre é um ser que se alimenta de carnes em
decomposição e dejetos, ou seja, ele busca a podridão. Ele pode ser lido como
uma analogia ao próprio governante Salazar, uma vez que é uma imagem
reincidente na obra andreseniana. No poema “O Velho Abutre”, publicado em Livro
Sexto, já temos uma relação metafórica entre essa ave e o ditador: “O velho
abutre é sábio e alisa suas penas / A podridão lhe agrada e seus discursos /
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas” (Andresen 2011, 439). Assim, a
autora retoma tal figura no presente poema, mostrando que o povo a instiga a
lutar e a combater o abutre, isto é, o próprio Salazar.
A cobra simboliza a traição no imaginário
popular, pelo seu caráter venenoso. Assim, por extensão de sentido, esse animal
representa as pessoas que são falsas, que estão à espreita “para dar o bote”.
O porco também suscita a ideia da sujeira, dada
a situação como ele é comumente criado.
E, por último, surge o milhafre, uma ave da família do gavião e da águia que representa a astúcia, a perspicácia, por ser um pássaro que vive no alto calculando maneiras de “roubar” sua caça. O caráter de caçador astucioso relaciona-se negativamente àqueles ligados à corrupção, que estão sempre a raciocinar meios e modos de obter o que desejam, como se caçassem sua presa.»
6. «A voz poética, então,
relata a condição desse povo: à mercê de governantes ligados à imundície, à
ameaça e à podridão. Essa gente, além disso, tem “O rosto desenhado / Por paciência
e fome”. […]
É pela fome e pela paciência que o país, o qual é
“ocupado”, “escreve seu nome”. A noção de “país ocupado” aparece também em
outros poemas mais políticos de Sophia de Mello Breyner e fazem clara
referência àqueles que governam em situação de autoritarismo, que tomam o poder
para si, controlando o povo e cerceando-lhe a liberdade e a vida digna. É sobre
justamente essa gente que a ditadura se consolida, se torna real – por isso a
ideia de escrever o nome. Pela escrita, a voz poética faz uma alusão à
presentificação do poder e da ocupação desse governo. O “país ocupado”, então,
é real na medida em que escreve seu nome nos rostos, talhando-os pela miséria e
pela alienação.
A penúltima estrofe reforça a condição em que essa gente vive, “Ignorada e pisada / Como a pedra do chão”. A comparação entre o povo e a pedra mostra o processo de reificação dessa gente, tratada como objeto, privada de direitos básicos e controlada ideologicamente. A “coisificação” do povo indica de forma mais intensa o modo como essa população é tratada, sendo “humilhada e calcada” – termo esse que significa literalmente aquilo em que se pisou com força, que se comprimiu Nesse verso, os dois particípios, na condição de adjetivos, mostram uma situação abstrata de sentimento (a humilhação) e uma ação concreta (ser pisado com força), o que sugere esse caráter ambivalente do povo, visto ora como gente, ora como coisa.»
Adaptado de: “Poema-resistência: a denúncia e o
combate às mazelas sociais na poesia de Carlos de Oliveira e Sophia de Mello
Breyner Andresen”, Nathália Macri
Nahas. EOLLES Identités et Cultures n.º 9, 2018
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“Esta
gente, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-01. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/esta-gente-sophia-andresen.html
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