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segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Retrato: No teu rosto começa a madrugada. (Eugénio de Andrade)



RETRATO

 

No teu rosto começa a madrugada.

Luz abrindo,

de rosa em rosa,

transparente e molhada.

 

Melodia

distante mas segura;

irrompendo da terra,

quente, redonda, madura.

 

Mar imenso,

praia deserta, horizontal e calma.

Sabor agreste.

Rosto da minha alma.

 

Eugénio de Andrade, Os amantes sem dinheiro, 1950 (1.ª ed.)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

Linhas de leitura do poema “Retrato”, de Eugénio de Andrade

Note que o poema diz o «rosto», mas se chama «Retrato», marcando assim a mediação entre o tempo em que se vive e o tempo em que se escreve.

É a fixação do rosto na moldura, o retrato, portanto, que torna o passado irremediavelmente perdido.

O «rosto» é metaforicamente representado nos elementos, numa harmonia cósmica de «luz», «melodia», «mar», «praia», «sabor», ou seja, um somatório complexo ligado aos elementos água e terra, a uma paisagem arcaica, infantil, ao «elemental», como diz Oscar Lopes.

O «rosto» é ainda o começo da «madrugada», predecessor do dia, plenitude a atingir. O «teu rosto» é, pois, o «rosto da minha alma», é, afinal, o retrato do próprio Eu – o que implica um não distinguir do Eu e do Tu

Eugénio de Andrade é um poeta apolíneo, da luz, da claridade e da transparência, em que o límpido apelo dos sentidos deixa perceber essa celebração dos momentos de plenitude, por efémeros que possam ser.

Em todo poema, observa-se o campo semântico da transparência, quer nas imagens da "madrugada", de "luz", de "transparente" ou no "mar imenso", quer na "melodia" e em toda a sua franqueza.

Note-se a aproximação do rosto do ser amado» que se abre de "rosa em rosa" ao estímulo que vem da terra "cálida e madura", e se torna "mar imenso" a indicar essa transparência e a inspirar a possível fecundidade, mas sobretudo a vida natural.

Recorde-se que a água é um referente eufórico na poesia de Eugénio de Andrade. Associa-se à imagem materna, pura e acolhedora, sugerindo o líquido amniótico que alimenta e mantém o feto seguro.

«Luz», «melodia», «mar» e «praia» são metáforas do corpo que cresce e se desenvolve; a «melodia» é dita explicitamente «irrompendo da terra», ou seja, como tendo origem na terra-mãe, «quente, redonda», como o ventre da mãe prestes a dar à luz («madura»).

Observe-se ainda, o rosto como "sabor agreste" insinuando o fruto, vindo da Natureza. Percorre todo o poema uma verdadeira metáfora da relação amorosa onde a sensualidade se revela diáfana, provocando um privilegiado momento eufórico.

 

(Adaptado de: Poemas de E. de A., Paula Morão, Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, p. 75; Português A e B: acesso ao ensino superior 2000, Vasco Moreira, Hilário Pimenta. Porto, Porto Editora, 2000. Coleção: Acesso ao ensino superior: preparação para a prova de exame nacional - 12º ano)

  

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“Retrato: No teu rosto começa a madrugada. (Eugénio de Andrade)”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-14. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/retrato-no-teu-rosto-comeca-madrugada.html



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