No
teu rosto começa a madrugada.
Luz
abrindo,
de
rosa em rosa,
transparente
e molhada.
Melodia
distante
mas segura;
irrompendo
da terra,
quente,
redonda, madura.
Mar
imenso,
praia
deserta, horizontal e calma.
Sabor
agreste.
Rosto
da minha alma.
Eugénio de Andrade, Os
amantes sem dinheiro, 1950 (1.ª ed.)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017
Linhas de
leitura do poema “Retrato”, de Eugénio de Andrade
Note que o poema diz o «rosto»,
mas se chama «Retrato», marcando assim a mediação entre o tempo em que se vive
e o tempo em que se escreve.
É a fixação do rosto na moldura,
o retrato, portanto, que torna o passado irremediavelmente perdido.
O «rosto» é metaforicamente representado
nos elementos, numa harmonia cósmica de «luz», «melodia», «mar», «praia»,
«sabor», ou seja, um somatório complexo ligado aos elementos água e terra, a
uma paisagem arcaica, infantil, ao «elemental», como diz Oscar Lopes.
O «rosto» é ainda o começo da «madrugada»,
predecessor do dia, plenitude a atingir. O «teu rosto» é, pois, o «rosto da
minha alma», é, afinal, o retrato do próprio Eu – o que implica um não
distinguir do Eu e do Tu
Eugénio de Andrade é um poeta
apolíneo, da luz, da claridade e da transparência, em que o límpido apelo dos
sentidos deixa perceber essa celebração dos momentos de plenitude, por efémeros
que possam ser.
Em
todo poema, observa-se o campo semântico da transparência, quer nas imagens da
"madrugada", de "luz", de "transparente" ou no
"mar imenso", quer na "melodia" e em toda a sua franqueza.
Note-se a aproximação do rosto do ser
amado» que se abre de "rosa em rosa" ao estímulo que vem da terra
"cálida e madura", e se torna "mar imenso" a indicar essa
transparência e a inspirar a possível fecundidade, mas sobretudo a vida
natural.
Recorde-se que a água é um referente
eufórico na poesia de Eugénio de Andrade. Associa-se à imagem materna, pura e
acolhedora, sugerindo o líquido amniótico que alimenta e mantém o feto seguro.
«Luz», «melodia», «mar» e «praia»
são metáforas do corpo que cresce e se desenvolve; a «melodia» é dita explicitamente
«irrompendo da terra», ou seja, como tendo origem na terra-mãe, «quente,
redonda», como o ventre da mãe prestes a dar à luz («madura»).
Observe-se ainda, o rosto como "sabor
agreste" insinuando o fruto, vindo da Natureza. Percorre todo o poema uma
verdadeira metáfora da relação amorosa onde a sensualidade se revela diáfana,
provocando um privilegiado momento eufórico.
(Adaptado de: Poemas de E. de A., Paula Morão,
Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, p. 75; Português A
e B: acesso ao ensino superior 2000, Vasco Moreira, Hilário
Pimenta. Porto, Porto Editora, 2000. Coleção: Acesso ao ensino superior:
preparação para a prova de exame nacional - 12º ano)
Poderá também gostar de:
“Retrato:
No teu rosto começa a madrugada. (Eugénio de Andrade)”, José Carreiro. Folha
de Poesia, 2022-11-14. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/retrato-no-teu-rosto-comeca-madrugada.html
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