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terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Prece: Senhor, a noite veio e a alma é vil. (Mensagem, Fernando Pessoa)

Mensagem, Fernando Pessoa

Segunda Parte - Mar Português

 



 

XII

PRECE

 






5





10


Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!

 

Fernando Pessoa, Mensagem. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).  - 73. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/92

 

__________
Glossário:
remoça (verso 10) – rejuvenesce.
vil (verso 1) – desprezível, indigna.

  

Texto de apoio:

«Prece» é o título do poema com que a Segunda Parte da obra termina. O tom de súplica, que o atravessa, em consonância, aliás, com o próprio título, exprime a dor da incerteza em relação ao futuro de Portugal. Um Portugal caracterizado como «alma vil», «silêncio hostil», em suma, como o país decadente que o último poema da obra – «Nevoeiro» – há de pincelar com tintas ainda mais negras. Um Portugal indolente que contrasta com a «tormenta e a vontade» que foi o Portugal das Descobertas.

O empenhamento colectivo precisa do estímulo que a «desgraça» ou a «ânsia» da alma insatisfeita representam; precisa dessa perdida febre de navegar, dessa «busca de quem somos. Na distância / De nós», de que o poema «Noite» (Terceira Parte da Mensagem) faz a apologia.

Não resulta, por isso, indiferente que este poema de 12 versos seja o 12.° e último da Segunda Parte. Ao apelo à mobilização coletiva que o percorre não é alheio o ciclo completo (simbologia do número Doze) que se cumpriu com o mar, e que se apresenta como «a lição do ter sido». Falta-nos cumprir o poder vir a ser que essa lição do passado profeticamente anuncia, como fica explícito logo no primeiro dos poemas desta parte da obra: «Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. / Senhor, falta cumprir-se Portugal!» (Mensagem, «O Infante»)

Os versos que terminam o poema «Prece», numa esotérica circularidade do tempo e do espaço, reenviam-nos precisamente para a necessidade de cumprir esse futuro adivinhado do passado, que foi a posse dos mares: «E outra vez conquistemos a Distância – / Do mar ou outra, mas que seja nossa!»

(Dicionário da Mensagem, Artur Veríssimo, Porto, Areal Ed., 2000, pp. 113-114)





I - Questionário sobre o poema “Prece”, de Fernando Pessoa:

1. Enquadre o poema na estrutura da obra a que pertence.

2. Apresente marcas discursivas e lexicais que justifiquem o título do poema.

3. A quem dirige o sujeito poético (indiferenciado num nós) a sua prece?

4. Esclareça o sentido e o objetivo da prece.

5. Tendo em conta a sua significação no universo deste poema e da Mensagem, classifique, como disfóricas ou eufóricas, as palavras relevadas no seguinte levantamento: «noite»; «vil»; «tormenta»; «silêncio»; «hostil»; «mar universal»; «saudade»; «chama»; «vida»; «frio morto»; «cinzas»; «a mão do vento»; «erguê-la»; «sopro»; «aragem»; «esforço»; «remoça»; «Distância»; «mar».

6. Interprete o simbolismo de cada uma das duas linhas de força que as palavras relevadas na questão anterior desenvolvem.

7. Destaque, no poema, três momentos:

- o momento em que a «Prece» é confissão;

- o momento em que a «Prece» é esperança;

- o momento em que a «Prece» é apelo.

8. Identifique a tonalidade dada ao sentido pelo aspeto verbal (observe o modo e a pessoa) de «conquistemos».

9. Localize no poema duas conexões adversativas e clarifique a mudança que elas introduzem no desenvolvimento do tema.

10. Releve do poema uma palavra que exprime uma atitude típica finissecular, cultivada como postura ideológica e sentimental tipicamente portuguesa.

11. Selecione momentos em que se exprime dúvida.

12. Comente as seguintes imagens:

a) «O frio morto em cinzas a ocultou» (v.7)

b) «A mão do vento pode erguê-la ainda»

c) «O sopro, a aragem [...]/ Com que a chama do esforço se remoça»

 

 

Resolução do questionário:

1. Enquadramento do poema na estrutura da Mensagem:

Este poema constitui o desenvolvimento do tema que está nos dois últimos versos do 1.º poema («O Infante») da Segunda Parte (ciclo que se cumpriu) e faz a ligação à 3.ª parte (pressente a vinda do Encoberto).

2. Apresentação das marcas discursivas e lexicais que justificam o título do poema:

Apóstrofe inicial “Senhor”; noite, alma, vil (v.1), tormenta, vontade (2), chama (10), sopro, desgraça, ânsia (9).

3. O sujeito poético dirige a sua súplica ao «Senhor», cujo vocativo abre o poema e o seu sentido permanece ambíguo. Refere-se a Deus? ao Encoberto, que «o frio morto em cinzas ocultou»? (7)

4. Esclarecimento do sentido e do objetivo da prece:

O tom de súplica, em consonância com o título, exprime a dor da incerteza em relação ao futuro de Portugal. Por isso, o sujeito poético pede para que devolva à Pátria a chama oculta debaixo das cinzas, isto é, a glória.

5. Disforia: «noite»; «vil»; «tormenta»; «silêncio»; «hostil»; «saudade»; «frio morto»; «cinzas»

Euforia: «mar universal»; «chama»; «vida»; «a mão do vento»; «erguê-la»; «sopro»; «aragem»; «esforço»; «remoça»; «Distância»; «mar».

6. Interpretação do simbolismo de cada uma das duas linhas de força que as palavras relevadas na questão anterior desenvolvem:

O campo lexical disfórico aponta para a tristeza e nostalgia de um bem passado e para um estado de decadência do país.

O campo lexical eufórico aponta para a ressurreição (ressurgimento), um novo período áureo (de glória).

7. O poema pode ser dividido em três momentos:

(1) o momento em que a «Prece» é confissão: vv. 1-3

(2) o momento em que a «Prece» é esperança: vv. 4-8

(3) o momento em que a «Prece» é apelo: vv. 9-12

8. A forma verbal «conquistemos» está no presente do conjuntivo e tem valor imperativo, exprimindo desejo, incitação, persuasão.

9. Localização no poema de duas conexões adversativas e clarificação da mudança que ambas introduzem no desenvolvimento do tema:

- «Mas», v. 5: opõe um estado disfórico a um eufórico, um estado desalento a outro de esperança.

«mas», v. 12: inicia uma oração que vinca uma tomada de posição activa no sentido - de uma apropriação colectiva de um propósito - reforça o propósito coletivo.

10. Palavra do poema que exprime uma atitude típica finissecular, cultivada como postura ideológica e sentimental tipicamente portuguesa: «Saudade»

11. Momentos em que se exprime dúvida:

- v. 6: «Se ainda há vida ainda não é finda»;

- v. 9: ««ou desgraça ou ânsia».

12. Comentário das imagens contidas nos versos transcritos:

- v. 7, «O frio morto em cinzas a ocultou»: as cinzas simbolizam o estado de decadência do país, perpetuada desde o desaparecimento de D. Sebastião, de modo que está oculta a verdadeira vida, esperando o momento certo para o seu ressurgimento. É o Encoberto à espera do seu momento de desocultação.

- v. 8, «A mão do vento pode erguê-la ainda»: a expressão «mão do vento» faz lembrar uma outra: «mão de Deus», indicando que está nos desígnios do Alto o ressurgimento da vida pátria, havendo, portanto, ainda esperança para o caso português.

- «O sopro, a aragem [...]/ Com que a chama do esforço se remoça»: o sopro tem o sentido de princípio de vida. O espírito de Deus que paira sobre as águas primordiais do Génesis é o sopro. No homem o sopro de vida dado por Deus não é perecível. Na iconografia cristã podem ver-se cenas da criação pelo sopro de Deus, capaz de curar a doença ou expulsar a morte, insuflando a vida.

Note-se o impressionismo da imagem dado apenas com dois substantivos («chama do esforço»).

 

(Adaptado de: Para uma leitura de MENSAGEM de Fernando Pessoa, Maria Almira Soares. Lisboa, Editorial Presença, 2000, pp. 58-59)

  


***

 

II – Outro questionário sobre o poema “Prece”, de Fernando Pessoa:

Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Caracterize o momento presente tal como é representado na primeira estrofe.

2. Explicite os efeitos de sentido produzidos pela exclamação «Tanta foi a tormenta e a vontade!» (verso 2).

3. Relacione a referência à «chama, que a vida em nós criou» (verso 5) com o sentimento sugerido no verso 8.

4. Interprete o sentido da última estrofe, tendo em conta o título e a apóstrofe presente no primeiro verso do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. A resposta pode contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

Na primeira estrofe, o momento presente caracteriza-se pela frustração, pela saudade e pelo desalento evidenciados:

– pelas metáforas da «noite» e do «silêncio», que significam uma morte espiritual, bem como pelo sentido disfórico da associação de «alma» ao adjetivo «vil» e de «silêncio» ao adjetivo «hostil»;

– pela evocação de um passado glorioso, associado ao orgulho da conquista de um «mar universal».

2. A resposta pode contemplar os aspetos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

A exclamação presente no verso 2 exprime:

– o orgulho relativamente a um passado heroico que implicou sofrimento, mas em que os portugueses se moveram por um inabalável desejo de grandeza;

– a noção de um presente marcado pelo desânimo e pela falta de ambição.

3. A resposta pode contemplar os aspetos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

A «chama» que impulsionou os portugueses para a concretização de feitos gloriosos e que não se encontra morta, mas escondida no «frio morto em cinzas» (v. 7), alimenta o sentimento de esperança implícito no verso 8 e a possibilidade de Portugal voltar a erguer «a chama, que a vida em nós criou» (v. 5).

4. A resposta pode contemplar os aspetos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

Na última estrofe (através do recurso ao imperativo), o sujeito poético concretiza a súplica referida no título, pedindo ao «Senhor» (v. 1) que conceda ao povo português (identificado pelo uso da primeira pessoa do plural) «o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —» (v. 9) que permitam:

– reavivar a «chama do esforço» (v. 10);

– reconquistar a «Distância» (v. 11), ou seja, construir um novo Portugal.

Nota – Não é obrigatório o recurso a citações, ainda que estas figurem, a título ilustrativo, no cenário de resposta.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Governo de Portugal, Ministério da Educação e Ciência / GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2013, 1.ª Fase - Data Especial

 


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Prece: Senhor, a noite veio e a alma é vil. (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 27-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/prece-senhor-noite-veio-e-alma-e-vil.html



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