Páginas

sábado, 10 de dezembro de 2022

Ulisses: O mito é o nada que é tudo (Mensagem, Fernando Pessoa)

 

Mensagem, de Fernando Pessoa

Primeira Parte - Brasão

II - Os Castelos

 

 

Odisseu e seus marinheiros em um mosaico romano

 

Primeiro

ULISSES

 






















5





10





15

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda
1 se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

s.d.

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/1274

______

1 O termo “lenda” surge no poema com o sentido de “mito”.

 

Leitura orientada do poema “Ulisses”, de Fernando Pessoa:

Ulisses, protagonista da Odisseia de Homero, não é um herói histórico. A sua única ligação a Portugal está na lenda que o promove a fundador de Lisboa e ao primitivo nome desta cidade. Vejam-se os versos de Camões em Os Lusíadas (III, 57, 1-4):

 

E tu, nobre Lisboa, que no mundo

Facilmente das outras és princesa,

Que edificada foste do facundo

Por cujo engano foi Dardânia acesa;

Tu, nobre Lisboa, que

foste edificada pelo facundo (Ulisses)

por cujo engano (=cavalo de Tróia)

Dardânia (Tróia) foi acesa (=queimada).

 

«Ulisses é uma referência clássica, humanista, colocada aqui nas insígnias históricas de Portugal. Evocando Ulisses para o primeiro castelo e sendo que a sucessão dos castelos é uma sucessão de figuras carismáticas da nossa História, Fernando Pessoa não deixa dúvidas sobre o seu pensamento universalista sobre Portugal. Portugal é algo que já está no caminho dos deuses antigos. [] Daí a Europa, daí Ulisses, antes dos poemas sobre figuras definidoras do país.» (Soares:2000,34)

 

O desenvolvimento do texto faz-se em três momentos:

1.º momento:

A primeira estrofe, em que se apresenta a definição de mito numa pequenina frase que viria a ficar axiomática e até emblemática: «O mito é o nada que é tudo». Como tentativa de definição, as formas verbais encontram-se, naturalmente, no presente do indicativo. Este juízo contraditório (oxímoro) é, ao mesmo tempo, o começo do poema e a síntese da sua mensagem. O mito é nada porque não pertence ao mundo visível, mas sim ao mundo oculto; é tudo porque manifesta as suas capacidades criadoras quando desvendado (é tudo porque dele brotam as forças ocultas que projectam os povos para as grandes façanhas). (“Tudo” – a partir do momento em que inspira os povos).

 

Esta definição é confirmada, ou melhor, concretizada por meio de duas metáforas – imagens: «O mesmo sol [] É um mito brilhante e mudo» e «O corpo morto de Deus vivo e desnudo». O mito é um sol brilhante que «abre» (v. 2), isto é, revela os céus, mas é «mudo». É o «corpo morto de Deus» tornado vivo e revelado (perífrase de Cristo crucificado – mito que liberta energia redentora). O mito é luz que abre caminho para o Todo, mas é ao homem que compete a caminhada.

 

O mito surge assim como um sol brilhante que nos abre os céus, v.2, (atente-se no sentido conotativo de «céus» que aponta para perspectivas brilhantes, ideias de heroicidade) e como um Deus que, parecendo morto, se revela às vezes aos homens como vivo. Nas duas expressões metafóricas citadas manifestam-se os dois elementos fundamentais e contraditórios do mito: a sua irrealidade («mudo», «corpo morto») e o seu dinamismo («vivo e desnudo», «abre os céus»). (Borregana:1995, 20-21; Cabral:[1997], 89)

 

Note-se que «mito brilhante e mudo» é apresentado como equivalente a «O corpo morto de Deus / Vivo e desnudo» (perífrase de Cristo crucificado). Assim, a Paixão de Cristo é aqui apresentada não como um evento histórico, mas como um mito que, tal como o anterior, liberta energia redentora. Uma ideia que o Sol também simboliza, sendo mesmo, nalgumas correntes esotéricas símbolo de Cristo.

 

O que «Ulisses» significa é que a redenção (salvação) patriótica só se fará na vivência do mito e na energia criadora que ele liberta. (Veríssimo:2000, 140-141) (ie, se acreditarmos em certas crenças/lendas/mitos que servirão de inspiração para agirmos).

 

Na gradação esotérica, como reza a Tábua de Esmeralda, "o que está em cima é como o que está em baixo." Em baixo está o "corpo morto de Deus", a realidade. Em cima está o mito, o Sol, o corpo de Deus vivo e desnudo, a lenda. (Soares: 2000, 33).

 

2.º momento:

A segunda parte do poema (2ª estrofe) inicia-se por um deíctico -Este - que se refere a Ulisses, presente no título; ao iniciar-se por um deíctico, a estrofe passa a ser uma tentativa de concretização da definição da 1ªestrofe. Ulisses, figura do passado ( verbos no pretérito - aportou- foi-nos bastou- foi vindo- criou), não existiu, de facto - mas bastou-nos como lenda («Sem existir nos bastou - e nos criou», 8, 10) – lenda portadora de força vivificante (criadora). (Pais: 2001, 123)

 

As formas perifrásticas «foi existindo» e «foi vindo» caracterizam o processo gradual da criação dos mitos e da sua acção.

 

A sintaxe é inovadora, ao serviço de significações originais: «Foi por não se existindo»; «Por não ter vindo foi vindo». O jogo é feito com verbos e sobretudo extraindo novas potencialidades de infinitivos e gerúndios para construir novas funcionalidades e sentidos originais. FP joga com os verbos para gerar a universalidade, a intemporalidade, neste caso, do mito.

 

É do jogo da afirmativa/negativa, do sim e do não, do movimento dos diferentes, que tudo nasce:

 

nada/tudo (1)

morto/vivo (4-5)

não ser/existindo (7)

sem/bastou (8)

não ter vindo/foi vindo (9)

 

É do sacrifício, da negação, da abdicação que salvificamente nasce a vida. (Soares: 2000, 33-34).

 

3.º momento:

A terceira parte (3ª estrofe), como revela a conclusiva «assim», constitui a conclusão de toda a mensagem poética, ocorrendo a passagem do nada ao tudo: a lenda (o mito), sendo uma força obscura (oculta), vem («escorre», v.11) de cima, dos confins dos tempos; ao «entrar na realidade» (v. 12) presente, fecunda-a (enriquece-a) – fazendo o milagre de tornar irrelevante a vida cá de baixo, dita do mundo real objectivo: «Em baixo, a vida, metade / De nada, morre», 14-15. Só readquire vida aquilo que o mito/nada fecunda e o processo não é do passado, agora, mas intemporal – de onde os tempos verbais de presente (cf. Pais: 2001, 123) (as formas verbais «escorre», «decorre», no seu aspecto durativo, traduzem a acção duradoura e persistente do mito).

 

A expressão adverbial «Em baixo» estabelece uma contraposição com o que o poeta, servindo-se de uma personificação, afirma atrás a respeito da dinâmica do mito: «O mito abre os céus, é um deus vivo», isto é, vem do alto. Mas a expressão «Em baixo» refere-se à vida desligada do mito, que, sendo «menos que nada», morre. (Borregana: 1995, 21)

 

A lenda morre na realidade. A insistência no jogo verbal para exprimir esta ideia torna-se preciosa na figura: «metade de nada», que, no entanto, acrescenta alguma ideia à expressão poética: o sim no não; o ser no não ser; o fermento e a incompletude do real sem mito, a procura da perfeição criadora, o vazio que a lenda vai preencher, a vida latente que o mito vai fecundar. Há aqui uma concepção transcendental em que o corpo e a vida de Portugal são inseridos. [] Um Portugal predestinado. Portugal, uma terra à espera do toque divino de Ulisses para se tornar uma nação com sentido. Portugal uma metade de nada à espera da seiva dos deuses para se tornar um tudo, uma transcendência, uma presença divina que tem de continuar a dar testemunho, que deve inverter o sentido de um «Portugal a entristecer».

 

[A lenda é essencial à realidade, é o cerne da continuidade. Toda a grandeza vem do nada que é tudo, do mito.]

 

«E nos criou.»

Este é o nosso génesis; este é, na Mensagem, o poema genesíaco de Portugal em que o real se separou do nada por virtude do mito.

 

«a lenda se escorre»

A importância do «se» reflexo: a lenda se faz escorrer a si mesma, se faz manar, se vaza sobre a vida, sobre a terra, sobre o real, como se a lenda fosse uma entidade que assiste e preside e às vezes confirma o nada em tudo. A lenda, ou Deus, ou o Sol, tudo é criador, é genesíaco e se funde numa visão transcendental da vida e do homem. (Soares: 2000, 34-35)

 

Vejamos de que forma a caracterização do herói acompanha, paradoxalmente, o mito como «o nada que é tudo»:

 

 

o nada

que é

tudo

 

[Em cima]

 

Este que aqui aportou

e nos criou

Foi por não ser

existindo

Sem existir

nos bastou

Por não ter vindo

foi vindo

 

O mito

fecunda a realidade

[Em baixo]

 

A vida metade de nada

     →

          morre

 

 

 

Do esquema se depreende que a «morte» tem, no texto, uma figuração positiva, pois se trata da morte iniciática, com tudo o que ela significa de libertação de energia redentora. (Lembremo-nos que Fernando Pessoa dizia que estávamos «tão desnacionalizados que só podíamos estar a renascer») (Veríssimo: 2000, 140)

 

É irrelevante, parece dizer Pessoa desde este poema, que as figuras de que vai ocupar-se, os heróis fundadores, tenham tido ou não existência histórica - o que importa é que todos eles tenham funcionado com a força do mito, que, não existindo, é tudo. Por isso, todos os heróis que se seguem são heróis mitificados, ainda que com existência histórica, feita de sucessos ou fracassos, não importa.

 

 

Poderá também gostar de:


  • Visualizar o Módulo de Português do 12.º Ano que inicia com a explicitação do conceito de “mito”, na Mensagem de Fernando Pessoa:





In: Projeto #ESTUDOEMCASA,. Mensagem, de Fernando Pessoa: os poemas "D. Tareja" e "D. Dinis".| Aula 20| 29 min| 27 Jan. 2021. Disponível em: https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e520354/portugues-12-ano


Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. 





Ulisses: O mito é o nada que é tudo (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 10-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/ulisses-o-mito-e-o-nada-que-e-tudo.html



Sem comentários:

Enviar um comentário