Páginas

domingo, 11 de dezembro de 2022

Viriato, teu ser é como aquela fria luz que precede a madrugada (Mensagem, Fernando Pessoa)

 

Mensagem, de Fernando Pessoa

Primeira Parte - Brasão

II - Os Castelos

 

Viriato (181 a.C.-139 a.C.). 
Museo del Prado, em Zamora, Espanha. 
No pedestal pode ler-se TERROR ROMANORUM.

 

Segundo

VIRIATO 

 






5





10


Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instinto[1] teu.

Nação porque reencarnaste,
Povo porque ressuscitou
ou tu, ou o de que eras a haste -
Assim se Portugal formou.

Teu ser é como aquela fria
Luz que precede a madrugada,
E é já o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada.

 

22-1-1934

Fernando Pessoa, Mensagem. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934


 


Linhas de leitura do poema “Viriato”, de Fernando Pessoa:

Viriato é o melhor exemplo para mostrar que na Mensagem não há constrangimento histórico. Entre Viriato e D. Afonso Henriques distam mil anos. Viriato é uma espécie de filho adoptivo. É um mito excepcional. Ele é o mito da resistência ao exterior; daí a actualidade dele.

 

Por que foi Pessoa buscar a figura de Viriato? Porque os espanhóis ainda não o tinham aproveitado. Assim, de uma História idêntica tentou-se buscar algo que diferenciasse do país vizinho.

 

1ª estrofe:

Do chefe militar que resistiu à invasão romana, do pastor mítico que se notabilizou como grande estratego, Pessoa nada nos diz. Basta ler a 1ª estrofe para se ter a certeza da absoluta irrelevância de tudo isso diante de um espaço interior, indelevelmente marcado por palavras-conceito como «alma», «raça», «memória» ou «instinto». Viriato é, nestes termos, a vaguidade de uma Pátria longínqua.

 

Uma só palavra caracteriza Viriato na 1ª estrofe: «instinto».

 

O texto não escapa, assim, à teoria da reminiscência platónica, marca do esoterismo na Mensagem: Viriato é reminiscência e seiva[2], «memória em nós» (memória coletiva) do instinto patriótico que é preciso despertar; é a eterna Pátria do dia antes, a reserva da nacionalidade, que a alma recorda para (se) conhecer.

 

Por isso, contra a História e a cronologia que o desmentem, a Nação é, na verdade do mito, uma reencarnação desse Viriato-essência que em nós permanece como potencialidade pura, ou como «passado de um futuro a abrir», para usarmos a palavra poética de Pessoa em «À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais».

 

2ª estrofe:

Viriato é visto como a «haste» de um ideal que depois aconteceu: a formação de Portugal. A haste aponta para a ideia de bandeira, pendão entregue por Deus.

 

3ª estrofe:

Compara-se Viriato à antemanhã (12). Símbolo de todas as possibilidades, prenúncio de todas as promessas, a antemanhã encerra a ideia de começo do mundo. Símbolo de luz é também a expressão da plenitude entendida como possível e, por isso mesmo, ligada à ideia de esperança, de redenção e de vitória. A passagem das trevas à luz representa, igualmente/simbolicamente, a passagem do esquecimento e da ignorância ao conhecimento ou da decadência à possibilidade de redenção (salvação) para que a obra de Pessoa recorrentemente nos reenvia.

 

É, pois, como Castelo da alma colectiva que Viriato habita palidamente a «fria luz» (9-10) da antemanhã, entendida como «confuso nada»[3] (12), que é o «tudo» do mito.

 

A antemanhã é o ainda não do Ser português (ou o não-Ser), expresso pelo «confuso nada» e, ao mesmo tempo, o no entanto já que deixa pressentir o futuro (ou o Ser-em-promessa), como se depreende do penúltimo verso, que encerra, também as ideias de revelação próxima e de esperança.

Artur Veríssimo, Dicionário da Mensagem. Porto, Areal Editores, 2000, pp. 144-145

 


[1] Age por instrução divina.

[2] alento, energia, força.

[3] Caos = princípio da ordem.


 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. 

 



Viriato, teu ser é como aquela fria luz que precede a madrugada (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 11-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/viriato-teu-ser-e-como-aquela-fria-luz.html


1 comentário:

  1. Acredito que há uma grande consternação do autor, principalmente na segunda estrofe, na primeira estrofe é alusivo aos tempos de ouro, onde Portugal, era referência no Velho Mundo, uma remanescente lembrança instintiva, quase que nem mais racional. No segundo há uma resposta inicial a tais vestígios e, em seguida uma dívida da sua identidade, "ou tu, ou de quem eras a haste, ou apoio, e ou ainda, o suporte de quem dali subsistiu", possivelmente espoliando, já que, não era a própria Nação - uma vez que ele cita na estrofe, claramente, nação e povo que voltastes a vida, que se levantara da cova, fazendo em seguida a diferenciação: ou tu, ou o de que eras a haste(duas personalidades distintas). Na terceira e última estrofe, as referidas silhuetas, aspecto também presente no Mito da Caverna de Platão, consterna, enfim, a incerteza do futuro na impossibilidade de luz copiosa. Lembro ainda, que se trata de Orfismo, metempsicose , não somente neste poema, mas até aqui, em todos os poemas da obra, sendo isto, externado pelo autor no prefácio do livro, "A Mensagem". Inclusive, impressionando muito, não apenas pela a
    genialidade, mas, também, pela coragem do autor, considerando a sociedade religiosa e conservadora da época, por outro lado, esclarece o porquê de Fernando Pessoa ter sido excluído socialmente. Seguiu o mesmo destino de Platão, Dante, Nietzsche, Gramsci entre outros, história adentro.

    ResponderEliminar