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segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Uns, com os olhos postos no passado, Ricardo Reis

 


Uns, com os olhos postos no passado,

Veem o que não veem; outros, fitos

Os mesmos olhos no futuro, veem

O que não pode ver-se.

 

Porque tão longe ir pôr o que está perto —

A segurança nossa? Este é o dia,

Esta é a hora, este o momento, isto

É quem somos, e é tudo.

 

Perene flui a interminável hora

Que nos confessa nulos. No mesmo hausto

Em que vivemos, morreremos. Colhe

O dia, porque és ele.

 

28-8-1933

Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).  - 154.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2695

__________ 

1 hausto: sorvo, aspiração (neste contexto, metáfora de valor temporal).


 Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

· relação do sujeito poético com "uns" e "outros";

· importância do tema do tempo;

· proposta de uma filosofia de vida;

· recursos estilísticos relevantes;

· traços da poética de Ricardo Reis e sua integração no contexto da heteronímia pessoana. 


 

Explicitação de cenários de resposta:

· Relação do sujeito poético com "uns" e "outros"

O sujeito poético marca a sua singularidade e a sua diferença perante o mundo ("Uns" e "outros"). Assim, do seu ponto de vista, quem olha para o passado vê o simulacro da realidade vivida, porquanto esta não existe no presente ("Uns, com os olhos postos no passado. / Veem o que não veem" - vv.1-2), apesar de atualizada pela memória. A limitações semelhantes estão sujeitos os "outros" que fitam o futuro, pois eles "veem / O que não pode ver-se" (vv. 3-4) e imaginam apenas o que ainda não existe.

A existência radicada em perceções ilusórias é alvo de apreciação crítica do sujeito poético, recusando este o que está "longe" do "momento" atual (o passado e o futuro).

 

· Importância do tema do tempo

Ao demonstrar a não fiabilidade da visão orientada para o passado ou para o futuro, o sujeito poético defende o presente como tempo de realização do Homem: "Porque tão longe ir pôr o que está perto - / A segurança nossa? Este é o dia" (vv. 5-6).

Através da apresentação antitética do tempo - "longe"/"perto" - o Eu procede à valorização do presente ("Este é o dia") como temporalidade segura, porque se encontra ao alcance do Homem.

O relevo conferido ao momento presente é bem visível no poema. Assim, veja-se:

- a predominância dos verbos no presente do indicativo em todas as estrofes ("veem", "pode", "está", "é", "somos", "flui", "confessa", "vivemos", "és");

- a delimitação de unidades temporais, cada vez mais restritas, relativas ao tempo que passa ("o dia", "a hora", "o momento");

- a utilização insistente de demonstrativos sublinhando a importância de viver o instante presente ("Este é o dia / esta é a hora, este o momento" - vv. 6-7)

- a homologia estabelecida entre o tempo presente e o Ser; ou seja, o Homem é o próprio tempo que se escoa ("este o momento, isto / É quem somos, e é tudo" - vv. 7-8; "Colhe/o dia, porque és ele." - vv. 11-12).

 

· Proposta de uma filosofia de vida

O sujeito poético faz a apologia do presente considerando um logro a construção da existência a partir de um passado morto ou de um futuro incerto ("Veem o que não veem", " veem / O que não pode ver-se" vv. 2, 3-4).

Apesar da brevidade do presente ("dia", "hora", "momento"), o Eu defende que é nele, em cada instante vivido, que o Homem se realiza ("Colhe / o dia, porque és ele." - v. 11-12) e conquista a felicidade possível ("A segurança nossa"). Desta forma procura superar a angústia causada pela consciência da nulidade do Ser, ameaçado pelo tempo destruidor ("Perene flui a interminável hora / Que nos confessa nulos" - vv. 9-10).

Consciente da efemeridade da vida e da inevitabilidade da morte ("No mesmo hausto / Em que vivemos, morreremos." - vv. 10-11), o sujeito postula uma filosofia de vida estoico-epicurista que, influenciado pela sabedoria horaciana, aponta com regra de vida a função do dia, do instante que passa "Colhe / O dia" (vv. 11-12).

 

· Recursos estilísticos evidentes

O poema é marcado por recursos estilísticos característicos da poética de Reis, tais como:

- o paradoxo ("Veem o que não veem", "veem / O que não pode ver-se") que realça o engano em que assenta a inconsistência desses modos de visão;

- o hipérbato que, na 2.a estrofe (vv. 5-6), destaca o movimento interrogativo ("Porque") e a expressão que sintetiza a procura de estabilidade existencial ("A Segurança nossa") e que, na 3.a estrofe ("Perene flui a interminável hora / Que nos confessa nulos" - vv. 9-10), sublinha o contraste entre a perenidade do movimento do tempo e a efemeridade da vida humana;

- as antíteses evidentes na 2.a estrofe ("longe"/"perto" - v. 5) e na 3.a estrofe ("vivemos, morreremos" - v. 11) a primeira salienta a relação entre uma temporalidade distante, enganadora, e aquela que se pode alcançar; a segunda destaca a problemática central do poema, a da existência condenada a perecer;

- gradação descendente ("o dia", "a hora", "o momento"), acentuando o carácter breve, fugaz, instantâneo do tempo em que se vive;

- a imagem " Colhe / O dia, porque és ele." (vv. 11-12) evidencia metaforicamente uma lição de vida - o Homem é um ser de tempo e existe na precariedade do instante;

- vocabulário erudito, latinizante ("Perene", "hausto"), confirmador da formação clássica de Reis;

- ...

 

· Traços da poética de Ricardo Reis e sua posição no contexto da heteronímia pessoana

O poema evidência alguns dos traços representativos da poética de Ricardo Reis.

Exemplificando:

- a preferência pelo presente precário e a afirmação de uma arte de viver, assente na fruição do instante;

- o gozo do presente e a aceitação da morte, indiciando uma filosofia de vida que concilia o Epicurismo com o Estoicismo;

- a influência de Horácio através do tema do carpe diem;

- uma arte poética assente no rigor, revelando um estilo neoclássico elevado, o que decorre da sua formação latinista e helenista;

- ...

 

No contexto da heteronímia pessoana - criação máxima do Modernismo português - salienta-se, a respeito de Ricardo Reis, que:

- se integra na heteronímia como discípulo do Alberto Caeiro;

- é o heterónimo que representa a tradição literária clássica e as regras formais por oposição ao modernista Álvaro de Campos;

- …

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 1998, 1.ª fase, 2.ª chamada)

 

Ricardo Reis. Pormenor do mural de Almada Negreiros, 1958, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 



Uns, com os olhos postos no passado, Ricardo Reis” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 05-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/uns-com-os-olhos-postos-no-passado.html


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