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sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

O poeta é um fingidor (Autopsicografia, de Fernando Pessoa)


 

AUTOPSICOGRAFIA 

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  - 235.

1.ª publ. in Presença , nº 36. Coimbra: Nov. 1932.

Disponível em: http://multipessoa.net/labirinto/fernando-pessoa/1

 

 

Texto de apoio

Deve dividir-se em três partes o pensamento contido nesta poesia.

Cada uma das suas quadras encerra um conceito. Na primeira, está, todavia, a premissa do pensamento extremamente importante implícito nas três estrofes. Sendo um “fingidor”, o poeta não finge, em verdade, a dor que não sentiu, mas, sim, a dor de que teve experiência direta. E com isto se afasta qualquer possibilidade de interpretação do conceito de “fingimento” inerente à génese poética de Fernando Pessoa numa base de integral simulação de uma dor ou de uma experiência emocional que não teve. O reconhecimento da dor – experiência emocional – como base imprescindível da criação poética está patente, de forma clara, nesta primeira quadra. Mas – e isso se me afigura a essência da estética alquímica de Pessoa – a dor que o poeta realmente sente não é a dor que comparece, ou deve comparecer, na sua poesia. Adverso por natureza a toda a espontaneidade […], Fernando Pessoa […] não podia, de forma alguma, considerar poesia a passagem imediata da experiência à arte, a vivência à sua decantação, do impuro emocional ao puro intelectual. Por isso, sobre a dor experimentada, exigia a criação de uma dor fingida.

Na mesma ordem de ideias um ator que interpreta o papel de Otelo não deve traduzir, na expressão interpretativa da figura que recria, os sentimentos que porventura experimentou fora do palco, suscetíveis de se integrarem na ordem de reações de que a personagem de Shakespeare é vítima, pois representar – a palavra o está a dizer – é tornar objetiva, materializando-a, a paixão que desenha a psicologia da figura que se encarna em cena. Assim, o próprio poeta, desde que se propõe escrever sobre uma dor sentida, deve procurar representar, materializando-a, essa dor, não nas linhas espontâneas em que ela se lhe desenhou na sensibilidade, mas no contorno imaginado que lhe dá, volvendo-se para si mesmo e vendo-se a si mesmo como tendo tido certa dor. É, aliás, o processo preconizado pelo escritor clássico, o qual entende que a arte é a inteligibilização do sensível.

[…] “Finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente” – escreve Fernando Pessoa. E o sentido é claro – fingida a dor em imagens sobre o modelo da dor originária, tão perfeitamente a finge que o fingimento se lhe torna mais real que a dor fingida. De tal sorte que a dor fingida – de fingimento que era se lhe converte em nova dor, dor imaginária cuja potencialidade de comunicação absorve por completo o que de latente existia de dor que nela se metamorfoseou. E, transmutação do plano vivido ao plano imaginado – a objetivação alquímica da escória emocional no ouro puro da representação mental – prepara a fruição impessoal das dores que a poesia proporciona ao leitor.

E, assim, nos encontramos na segunda parte do pensamento contido em “Autopsicografia”. O leitor de um poema não entra em contacto com qualquer das duas dores que porventura o poeta exprima. A dor real, essa ficou na sua carne – na carne do poeta – não chegou à poesia. Quanto à dor representada – é óbvio que o leitor a não absorve já como dor, pois dor ela não é, uma vez que a dor é do mundo dos sentidos e a poesia é da esfera do espírito. A dor que a poesia exprime é exatamente aquela que os leitores não têm – “Mas só a que eles não têm”- pois ninguém tem, em verdade, o que a ninguém pertence, pura representação abstrata de uma dor mentalizada. Finalmente, a última parte do pensamento implícito na poesia em discussão: sendo, como é, poesia, pelo menos na conceção de Fernando Pessoa, representação mental, o coração, “esse comboio de corda” centro dos afetos tão desdenhados pelo poeta, que sempre considerou a sinceridade emocional falha de sinceridade, o coração não passa de um entretenimento da razão, girando, mecânico, pelas “calhas” fixas que é o mundo do convencionalismo emocional onde decorre a existência ordinária. […] 

João Gaspar Simões, “Uma explicação da obra de Fernando Pessoa”, in Heteropsicografia de Fernando Pessoa, Porto, Ed. Inova, 1973

 



Comentário de texto

Faça um comentário global do poema “Autopsicografia”, sem nunca perder de vista a sua contextualização na obra.

Deve, entre outros aspetos pertinentes como os níveis fónico, morfossintático, semântico e estilístico, desenvolver, de forma integrada, os seguintes:

- divisão do poema em partes e assunto de cada parte;

- sentido do fingimento;

- imagens tripartidas (tipos de dor; explicação do título);

- simbologia do número três;

- recursos estético-estilísticos;

- o conceito de poema para Fernando Pessoa ortónimo.

 

Chave de correção:

Divisão do poema em duas partes

- estrofes 1 e 2 - caracterização do poeta como fingidor, que codifica o poema, enquanto o recetor o descodifica à sua maneira;

- estrofe 3 - explicitação da subordinação do sentimento à razão, através de imagens.

 

Sentido do fingimento

- o ato poético apenas pode comunicar uma dor fingida, pois a dor real (sentida) continua no sujeito, que, por palavras e imagens, tenta uma representação;

- fingir é inventar, elaborar mentalmente conceitos que exprimem as emoções ou o que quer comunicar.

 

Imagens tripartidas

- três tipos de dor: a real ("que deveras sente"), a fingida e a "dor lida";

- construção do título: auto/psico/grafia, ou seja, autorretrato, da mente ou da alma ("psiqué"), através da expressão gráfica do poema;

- a dialética das três estrofes: na 1.a, surge a produção poética; na 2. a, dá-se a receção; na 3. a, procura-se a reconstrução pela conciliação da oposição razão/sentimento;

- razão - coração - elaboração estética;

- o real - o mentalizado - a arte. (O poeta parte da realidade, mas distancia-se, graças à interação entre a razão e a sensibilidade, para elaborar mentalmente a obra de arte).

 

Simbologia do número 3

- o 3 é o número da criação: 3 estrofes; 3 tipos de dor; título com 3 conceitos - auto/psico/grafia; 3 termos do fingimento - "fingidor", "finge", "fingir";

3 componentes da criação - razão, sentimento, fingimento (que permite a elaboração estética ao exprimir intelectualmente as emoções);

- o 3 é o símbolo da síntese espiritual, que soluciona o conflito gerado pelo dualismo do mundo da razão e do mundo do sentimento. Cada uma das 3 estrofes possui quatro versos; o 4 é o símbolo da condição humana com os seus limites naturais; mas o 4 é controlado ao encerrar-se nas 3 estrofes. Note-se que na última estrofe há uma certa angústia, com o coração "a entreter a razão" num movimento circular nas "calhas da roda";

- o 3 traduz a ideia da progressão cíclica que surge, evolui e se fecha. É símbolo da circularidade, presente também na imagem da roda (verso 9, múltiplo de 3) que procura disciplinar o coração ("comboio de corda") para que a obra de arte se construa. Como o próprio Pessoa afirma, em Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literária, "a arte é o resultado da colaboração entre o sentir e o pensar".

 

Recursos estético-estilísticos

- metáforas (vv. 1, 3);

- imagem (na combinação das metáforas da última quadra);

- perífrase (1.° verso da segunda estrofe);

- hipérbato (na inversão sintática na última quadra).

 

O conceito de poema para Fernando Pessoa Ortónimo

Para Fernando Pessoa ortónimo, o poema surge como um ato de fingimento, de pura elaboração estética. A criação artística implica a conceção de novas relações significativas, graças à distanciação que faz do real, o que pode ser entendido como ato de fingimento ou de mentira.

Disponível em: http://www.esa.esaportugues.com/programa/Pessoa/textosFP.htm (consultado em 18-01-2003)

 

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