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sábado, 14 de janeiro de 2023

O fingimento poético como nova expressão de arte - leitura orientada do poema “Isto”, de Fernando Pessoa

 

ISTO

 

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

 

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  - 236. 1ª publ. in Presença, n.º 38. Coimbra: abril de 1933. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/4250

 

Linhas de leitura do poema “Isto”, de Fernando Pessoa

Assunto: teoria da criação poética.

 

Quanto à forma do poema (aspectos fónicos) repare-se no facto de o poeta usar o verso curto (seis sílabas) num poema de fundo pesado, em que se expõe uma teoria da criação poética. Para que o discurso lógico, apesar disso, decorra mais livremente, aparecem os casos de transporte: vv. 1.º e 2.º, 3.º e 4.º, 7.º e 8.º, 8.º e 9.º, 11.º e 12.º.

 

O poema surge na sequência do «Autopsicografia» e parece uma resposta a possíveis más interpretações daquele.

 

1.ª estrofe

Notar o tom depreciativo do início do poema e o tom de convicção total com o uso do advérbio «Não», seguido de ponto final. Assim, o verso «Dizem que finjo ou minto» tem aqui o sentido que lhe atribuem os que dizem que o poeta finge, isto é, «não sincero», «falta à verdade», como se depreende da própria disjuntiva «finjo ou minto». Este sentido é depreciativo e corresponde ao uso popular verificável, por exemplo, na expressão «pessoa fingida», isto é, falha de verdade. Por isso, o poeta se apressa a negar esse sentido ao seu fingimento: «Eu simplesmente sinto com a imaginação, / Não uso o coração».

 

Os versos 3-5 são como que a «tese» deste poema: o fingimento poético é a síntese da sensação com a imaginação, destacando-se esta, porque intelectual.

 

Notar a subjectividade manifestada pelo uso da 1º pessoa verbal, ausente de «Autopsicografia». (Talvez se deva a que aqui Pessoa se apresente como o poeta intelectual por excelência.)

 

2.ª estrofe

Esta parte constitui uma confirmação do conteúdo da 1ª estrofe, baseada na experiência vivida do poeta.

 

A 2.ª estrofe apresenta a fundamentação do uso da imaginação: a realidade onde mergulha o poeta é apenas a aparência ou o terraço (fronteira) que encobre outra coisa: as ideias, a obra poética; volta a acentuar-se o processo do fingimento poético, mas neste texto a sensação e imaginação processam-se num único momento – Enquanto na «Autopsicografia» o poeta distinguia dois momentos (o da sensação e o da imaginação), aqui tudo se processa num só momento: as realidades (belas) subjacentes ao «terraço» (aparências) são vistas por ele, poeta-Pessoa, automática e simultaneamente.

 

É evidente que paira aqui a doutrina platónica da reminiscência: olhar para as aparências (as coisas deste mundo) e ver (pressentir, intuir) imediatamente as realidades puras de um mundo mais alto (profundo).

 

Conceito oculto

Ou mesmo platónico de que

«Essa coisa é que é linda»

(mundo[1] que fascina o poeta)

 

--->

o mundo real[2] («terraço»)

é reflexo de

um mundo ideal
(«sobre outra coisa»)



[1] Mundo das ideias.

[2] Mundo sensível.


Constata-se aqui também a grande emoção (de natureza intelectual) que o poeta punha naquilo que ele considerava o fulcro, o âmago da poesia: «Essa coisa é que é linda».

 

A comparação que engloba os três primeiros versos constitui o cerne do poema, pois é o momento em que o autor define o universo em que se move, para, logo de seguida, ficarmos a saber o que procura:

 

Tudo o que sonho ou passo

O que me falha ou finda (1.º termo)

É como que (partícula comparativa) um terraço (2.º termo)

 

A comparação centrada em «terraço» é admiravelmente expressiva da fronteira, difícil de ultrapassar, entre o mundo sensível e o mundo intelectual. O verdadeiro poeta (neste caso, Pessoa) é o privilegiado que é capaz de ultrapassar essa fronteira, para usufruir da beleza que se encontra para além dela.

 

Os dois primeiros versos da 2.ª estrofe referem-se às contingências da vida do poeta; contingências, porque nenhum dos quatro verbos empregues pelo poeta («sonho», «passo», «falha», «finda»), é propriamente activo, ficando-nos a impressão de que o que sucede ao poeta é marcado pelo destino. Esta ideia é sugerida sobretudo pelo verso «o que me falha ou finda», em que o poeta não figura como sujeito das acções, mas como destinatário marcado pelo destino (o que se vê claramente na forma pronominal «me»). O mesmo sugere a forma verbal «passo», que o poeta poderia substituir por «faço», mas intencionalmente não quis. É que, enquanto «faço» apontaria par algo realizado pelo poeta, a forma «passo» aponta para algo que lhe sucede por fatalidade. Quer isto dizer que o poeta só por contingência se achava entre as coisas contingentes deste mundo (no mundo das aparências), pois o seu lugar, como poeta, situa-se para lá dessas coisas, para lá do «terraço».

 

Recuperação para a poesia de uma palavra tão prosaica como «coisa», utilizada em versos consecutivos, para designar algo que está muito para além do universo sensível a que, normalmente, se refere. Fê-la, assim, expressiva daquilo que é indefinível, que fica para além do «terraço», na região onde se gera a poesia.

 

3ª estrofe

O poeta, a jeito de conclusão («Por isso...»), afirma que escreve «em meio do que não está ao pé». O que está ao pé são as sensações, é o mundo das aparências; o «que não está ao pé» é o mundo da inteligência, o mundo das realidades puras, da imaginação que transforma, que eleva as sensações ao nível da literatura, ao nível da poesia. A arte poética nasce da abstracção do mundo sensível. Só quando o poeta é «livre do seu enleio» (do mundo sensível, do coração) é que pode dar-se o milagre da poesia. Só com os super-poetas, como ele, Fernando Pessoa, é que o milagre se realiza plenamente, porque não usa o coração, porque está «livre do seu enleio» e «sério do que não é» (entenda-se «sério» por liberto, isto é, livre do mundo sensível, das aparências). O verso «Sério do que não é» está aqui para reiterar a ideia do anterior, «livre do meu enleio». O poeta considera «sério» quem, como ele, é capaz de abstrair do acidental (do mundo sensível), para se concentrar no mundo das essências (no mundo intelectual).

 

O poeta fecha o poema com uma interrogação retórica e uma exclamação de sentido irónico-depreciativo: «Sentir?»

 

Note-se como esta interrogação, em conjunto com a exclamação «Sinta quem lê!» é uma resposta irónica ao «Dizem que finjo ou minto» do princípio do poema.

 

Devemos notar a diferença de significado entre o verbo sentir: na 1.ª estrofe («sinto») refere-se à emoção intelectual e não às sensações; na última estrofe («sentir», «sinta») há uma conotação pejorativa que não existe na 1ª estrofe, isto é, refere-se, agora, às sensações, próprias das pessoas que dizem que ele finge ou mente.

 

Bibliografia: Fernando Pessoa e heterónimos – o texto em análise, A. A. Borregana, Cacém, Texto Ed., 1995; Aula Viva Português 12.º Ano, João Guerra e José Vieira, Porto Ed., 1999; Introdução à Leitura de Fernando Pessoa e heterónimos, Avelino Soares Cabral, Sebenta Editora.

 


 

Comentário de texto

Faça um comentário global do poema “Isto”, sem nunca perder de vista a sua contextualização na obra.

Deve, entre outros aspetos pertinentes como os níveis fónico, morfossintático, semântico e estilístico, desenvolver, de forma integrada, os seguintes:

- assunto;

- divisão do poema em partes e assunto de cada parte;

- sentido da primeira estrofe;

- explicação da comparação da segunda estrofe;

- situação a que chega o poeta;

- estrutura formal.

 

Chave de correção:

Assunto

O fingimento e a criação artística; a racionalização dos sentimentos (sentir com a imaginação, não usando o coração).

 

Divisão do poema

- As duas primeiras quintilhas: negação de que finge ou mente; justificação de que o que faz é a racionalização dos sentimentos na busca de algo mais belo mas inacessível;

- A última quintilha: argumentação de que ao escrever se distancia da realidade, intelectualizando os sentimentos e elaborando uma nova realidade - a arte.

 

Sentido da 1.a estrofe

- Reconhecimento de que dizem e negação de que finge ou mente.

- "Sinto com a imaginação/Não uso o coração." - expressão da intelectualização do sentimento.

 

Base estrutural da 2.a estrofe

- Comparação: "Tudo o que sonho ou passo / O que me falha ou finda." (1.° termo da comparação) " (...) um terraço / sobre outra coisa ainda (2.° termo), ou seja, o mundo real ("terraço") é reflexo de ("sobre outra coisa ainda") um mundo ideal ("essa coisa é que é linda" - conceito oculto ou platónico, mundo que fascina o poeta).

 

Situação a que chega o poeta

- "livre do meu enleio" (desligado do tema) - há um ato de fingimento de pura elaboração estética e o leitor que sinta o que ele comunica apesar de não sentir ("Sentir? Sinta quem lê").

 

Estrutura formal

- Três quintilhas hexassilábicas, isomórficas e isométricas, obedecendo ao esquema rimático ababb. 

Disponível em: http://www.esa.esaportugues.com/programa/Pessoa/textosFP.htm (consultado em: 18-01-2003)

 


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