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quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Ó Portugal, hoje és nevoeiro... (Mensagem, Fernando Pessoa)

Mensagem, Fernando Pessoa

Terceira Parte - O Encoberto

Pax in excelsis

III – Os Tempos

 

 


“Nevoeiro”, de Fernando Pessoa. Portugal, Produções Fictícias, 2005. 
Disponível e.: https://ensina.rtp.pt/artigo/nevoeiro-de-fernando-pessoa/ 

 

Quinto

NEVOEIRO

 





5





10







Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer -
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quere.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!

 

Valete, Frates.

10-12-1928

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).  - 104. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2293

  

 

A Mensagem de Fernando Pessoa, anotada e comentada

 

Análise estilística do poema “Nevoeiro”, de Fernando Pessoa

Métrica: 1 Sextilha, 1 sétima e 1 verso isolado. Versos octossilábicos, com exceção do verso isolado que tem apenas 3 sílabas.

Esquema rímico: Rima em esquemas ababba (sextilha) e abbcddd (sétima). O verso isolado rima com o quarto verso da sétima.

Observações: Uso de antropomorfização; uso de metáforas (por ex. “fulgor baço”) e símiles (“Como o que o fogo-fátuo…”), reforçando o sentimento de dispersão; uso de negatividade; divisão do poema em duas partes (1.ª estrofe fala da pessoa coletiva, a 2.ª da individual); uso de anáforas e antíteses (por ex. “nem”); uso de paradoxos (por ex. a frase entre parêntesis na 2.ª estrofe); uso de apóstrofe (“Valete Fratres”).

 

Análise do título

Fernando Pessoa termina a Mensagem com o poema “Nevoeiro”, quinto poema dos “Tempos”. Catorze versos como as catorze estações da cruz.

Na simbologia por nós proposta, de cinco “Tempos” – cinco Impérios, será este poema, o que representa o Quinto Império, o Império Espiritual.

António Quadros diz-nos que este poema “define a atualidade portuguesa como decadência, dispersão e névoa (fazendo lembrar a camoniana «austera, apagada e vil tristeza»)” (António Quadros, Poesia…, pág. 121. Cf. também António Cirurgião, Op. cit., nota 42, pág. 264).

Do último poema, esperar-se-ia um volutuoso e majestoso finale, porque afinal Pessoa exalta o poder do futuro ainda por acontecer, exorta à ação e à esperança. Mas na realidade não podíamos estar mais longe de uma tal apoteose.

Coerente, como sempre, o poeta não deixa para as últimas palavras nada que não seja dito em todas as páginas anteriores. Mensagem fecha-se sobre si própria e quando no seu fim, parece relembrar a vontade de novo início. Sobretudo deixa a sensação de todo, de projeto global, que é dividido em partes, mas sem que essas partes só existam quando ligadas entre si.

“Nevoeiro” é assim um poema velado, triste mesmo quando imperativo, como o próprio Fernando Pessoa. Não é momento de lirismo simples, nem de evocação linear do passado. É um poema de conclusão, que emana tristeza e sentido de missão, bem como uma ponte para o futuro, para uma hora marcada para o nascer do Novo Sol (que destruir| o “Nevoeiro”).

 

Análise linha a linha da primeira estrofe:

     Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Nem governante nem leis, nem tempos de paz ou de conflito.

     Define com perfil e ser
Podem definir a verdade emanação essência.

     Este fulgor baço da terra
No que no presente é de um fulgor triste.

     Que é Portugal a entristecer
Portugal, país pobre, sem esperança e entristecido.

     Brilho sem luz e sem arder,
Vida exterior sem luz intensa, sem fogo de paixão e vontade.

     Como o que o fogo-fátuo encerra.
Como as luzes do fogo-fátuo (que surge dos materiais em decomposição).

 

Análise contextual da primeira estrofe:

Pessoa começa numa análise macroscópica por caracterizar o momento do país. E vê-o tão desesperado que “nem rei nem lei, nem paz nem guerra” o “definem com perfil e ser”. Ou seja, o país está tão sem alma, sem originalidade, que nenhum governante, nenhuma mudança pela força, o poderá regenerar verdadeiramente. Continuará a ser “fulgor baço da terra”, um “Portugal a entristecer”.

Há vida, certamente. Há quotidiano, quem enriqueça, quem faça uma vida, cresça, tenha família e morra. Mas toda a vida sem sentido é como “brilho sem luz e sem arder”. É mais ainda, é pior, é “como o que o fogo-fátuo encerra”, ou seja, é aparência de brilho (vida exterior), mas sem luz interior (vida interior). Quem vive assim, não vive, sobrevive ambiciona, procria e morre. Para Pessoa é claro que o brilho de uma vida assim é como o fogo-fátuo, que é um brilho que sai dos cemitérios e dos pântanos, brilho artificial e podre, apagado, próprio dos corpos mortos e decompostos.

É um triste quadro o que nos pinta Pessoa e, de certa maneira, um quadro intemporal para um país que sempre se queixa das mesmas maleitas. Não é de estranhar que Pessoa, levado pela sua imaginação, talento e cultura, queira desenhar uma saída deste marasmo social e intelectual. Mas uma saída sem “rei nem lei, nem paz nem guerra”, ou seja, uma solução de infinito, de eternidade, que não seja transitória. Será o seu início o modernismo, como corrente literária, mas não só.


 

Análise linha a linha da segunda estrofe:

     Ninguém sabe que coisa quere.
Os portugueses não sabem o que verdadeiramente querem.

     Ninguém conhece que alma tem,
Não conhecem a sua alma o seu Destino.

     Nem o que é mal nem o que é bem.
Nem para o bem, nem para o mal.

      (Que ânsia distante perto chora?)

Adivinha-se, no entanto, uma ânsia neles, uma ânsia de querer.

     Tudo é incerto e derradeiro.
Mas tudo é incerto, difuso, morte.

     Tudo é disperso, nada é inteiro.
Tudo em Portugal é parcial, não há vontade de erguer, nada.

     Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
Portugal é no presente como o nevoeiro.

 

Análise contextual da segunda estrofe:

Segue-se uma análise microscópica, de pormenor. Depois de ver o “Nevoeiro” como um todo, Pessoa analisa-o partícula a partícula.

Mas é esta uma exortação ou uma elegia? Pessoa não se limita, fala a fundo dos males que sente serem os males de um país. É uma visão de alguém que, sendo português de nascimento, traz também uma perspetiva de estrangeiro. Mal se faça a comparação, novamente deve o poeta chamar a atenção para o corpo morto de Portugal, para que esse corpo se possa erguer, conhecer a razão mais alta do seu sofrimento.

É um país perdido. Onde “ninguém sabe que coisa quere”, onde “ninguém conhece que alma tem”, sem noção nem do que “é mal nem o que é bem”. Uma sociedade amoral, desligada dos mais altos valores, da nacionalidade, do espírito de unidade religiosa, sobretudo da irmandade. No entanto, uma esperança ténue: “ânsia distante” que “perto chora”. Será que no íntimo de cada um reside um desejo distante de mudança?

Mas é tudo tão “incerto e derradeiro”, “disperso”. “Nada é inteiro”. Tal o desespero na análise que Pessoa deixa-se finalmente a uma interjeição dolorosa: “Ó Portugal, hoje és nevoeiro…”.


 

Análise linha a linha da terceira estrofe:

     É a Hora!

É o momento de surgir o Quinto Império, a Nova Vida.

 

Análise contextual da terceira estrofe:

Depois de duas estrofes mortas, soturnas, Pessoa faz a sua última exortação, gritando de peito cheio de ar, ao infinito: “É a Hora!” (ver a segunda estrofe do poema “sem título” em os “Avisos”).

A “Hora” é o fim da Obra que se vem descrevendo. Não se percebe porque é em rigor ainda um mistério que hora será, se hora humana ou hora divina, mas certamente é uma hora certa, inevitável.

Esta “Hora” de Pessoa é também uma realidade por consumar. Isto porque Pessoa clama por um momento que em verdade será impossível de acontecer sem que ele o anuncie eis o paradoxo. Por isso a “Hora” é também o momento em que Pessoa é lido até ao fim, quando se conclui a leitura da Mensagem, do plano de Pessoa para regenerar Portugal.

Com esta frase final, Pessoa foi-se, como o mostrengo servo, deixando-nos a nós a tarefa imaterial de revelar em cada um de nós os mistérios que ele anunciou. Para que em cada um de nós brilhe aquele relâmpago, faísca divina, que nos tira da vil noite na direção do Novo Dia.

A mensagem da Mensagem é essa: procurar no íntimo a razão que ilumina a vida que vale a pena ser vivida. Incrivelmente ou talvez não é uma mensagem positiva, otimista.

Uma derradeira pista, como um eco que se distancia, é deixada: um Valete Fratres!, um Adeus Irmãos!, sincero como um forte aperto de mão, um abraço quente.

(É um adeus, mas também um até já. Veja-se que Pessoa se despede com uma nova elocução em latim, retirada de um ritual maçónico, e por isso com significado hermético. Pessoa pretende comunicar que se despede de todos aqueles iniciados, seus irmãos templários e rosa cruzes (mesmo que só em espírito), que compreendem o significado das suas palavras e vão agir através delas no futuro de Portugal. É, portanto, um adeus no presente, lançado para o futuro. Quanto desse adeus é também amargura, e quanta da nova pátria que Pessoa deseja será o impossível retorno ao seu passado de criança (a uma pátria pura, com pai e mãe atenciosos e dedicados, sem solidão) isso podemos apenas conjeturar.)

 

Nuno Hipólito, As Mensagens da Mensagem: O Desvendar dos Mistérios: edição anotada e comentada. Lisboa, Parceria A. M. Pereira Livraria Editora, Lda, 2007. Ed. impressa e em CD-ROM. ISBN: 978-972-8645-38-0

 



 

Linhas de leitura do poema “Nevoeiro” de Fernando Pessoa

 

Levantamento de palavras ou expressões do campo lexical de «nevoeiro»:

baço (v. 3), brilhos em luz (v. 5), incerto (v. 11), disperso (v. 12), nada é inteiro (v. 12).

 

Levantamento de palavras ou expressões do campo lexical de negatividade:

- «nem» (quatro vezes no 1.º verso e duas no 9.º, repetida com outras palavras de permeio, e contribuindo decisivamente para caracterizar, logo no início, uma situação de inércia e marasmo);

- «ninguém» (duas vezes e a constituir uma anáfora, no princípio dos versos 7-8);

- «sem», repetida no 5.º verso contribuindo para adensar o sentido dum verso paradoxal, em que o oxímoro desempenha, como em todo o texto, um papel fundamental: «Brilho, sem luz e sem arder»;

- «nada» (v. 12) em antítese com «tudo»;

- palavras ou expressões antitéticas: «guerra» (v. 1), «fulgor baço» (v. 3), «encerra» (v. 3), «entristecer» (v. 4), «fogo fátuo» (v. 6), «Que ânsia distante perto chora?» (v. 10), «incerto e derradeiro» (v. 11), «disperso» (v. 12), «nevoeiro».

 

O sentido expresso por «nevoeiro» é duplo: escuridão, indefinição, estado intervalar, por um lado, e, por outro, a esperança ligada à lenda da vinda de D. Sebastião.

Pascoaes define Nevoeiro como «queda-esperança». É apenas a condição negativa donde surge a redenção. Nevoeiro como própria imagem do Portugal tão decadente que só pode estar a renascer. Nevoeiro como uma nuvem bíblica é a prova do regresso.

 

Levantamento de palavras ou expressões que reenviam para a ideia de crise:

- política: «Nem rei, nem lei, nem paz, nem guerra» (repare-se na sucessão do advérbio de negação nem);

- de identidade: «este fulgor baço da terra /Que é Portugal e entristecer. / Brilho sem luz e sem arder /Como o que o fogo-fátuo encerra». (note-se o vocabulário e imagística disfórica: fulgor baço- Portugal a entristecer - brilho sem luz e sem arder – novo oxímoro reforçado pela preposição, marca de ausência, sem) (vv. 5-6, 11-13);

- de valores morais, da alma: «Ninguém sabe que coisa quer, / Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal, nem o que é bem», [de novo as palavras que marcam a negação- os pronomes indefinidos ninguém, o advérbio nem];

- de unidade «Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro.» (vv. 11-12).

 

Comparação da realidade aludida em «Nevoeiro» com a referida em «Mar Português»:

A situação, em síntese, é de incerteza, de indefinição: «Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro./ Ó Portugal, hoje és nevoeiro...»

As queixas (o pranto) das personagens invocadas em “Mar Português”, que não conseguem ver o significado maior para o sofrimento que estão a passar, corresponde ao tom geral do poema “Nevoeiro”.

 

O sentido da interrogação na 2.ª estrofe - «(Que ânsia distante perto chora?)»:

Esta frase parentética refere-se ao próprio Pessoa, à voz que fala. No meio do nevoeiro que é Portugal a entristecer há uma voz que se ergue – Fernando Pessoa.

A abertura à esperança está contida no verso entre parêntesis (o parênteses é uma separação) e afirmada triunfalmente no último verso.

Algo ficou consubstanciado na «ânsia distante» que «perto chora» –, e justamente porque Portugal hoje é nevoeiro, «É (também) a Hora! » - [teremos que ter em conta que, segundo a lenda sebastianista, o Rei redentor regressaria numa manhã de nevoeiro]. A Hora, maiusculada, mas de quê?

Pessoa não o diz, mas todo o livro o significa: a Hora de partir, de novamente conquistarmos a «Distância / Do mar ou outra, mas que seja nossa!»- [ como se dizia no poema da 2.ª parte, Prece ], - de assumirmos o sonho, cumprindo o nosso destino de sagrados por Deus e portadores do seu gládio, do seu sinal - assim a Obra nascerá de novo, como em Mar Português - e poderemos «viver a verdade / que morreu D. Sebastião.»

Assim sendo, temos que ler Mensagem justamente como a epopeia da era que há de vir, a do sonho feito realização, a da loucura, divina, porque assumida conscientemente, e interrompida de D. Sebastião, de D. Fernando, do Infante e dos outros heróis expectantes evocados por Pessoa. (cf. Pais: 2001, 145-146)

A expressão latina «Valete, Frates» era a despedida normal dos membros de certas sociedades secretas (Maçonaria...) e dos frades de ordens religiosas. É um grito de felicidade e um apelo para que todos lutem por um Novo Portugal.

 

Inserção do poema na estrutura interna da obra:

Último poema de Mensagem, pertencente, portanto, à parte designada “O Encoberto”, em que se fecha o ciclo da vida da Pátria, mas em que se pressente o gérmen (embrião) sebastianista, o anúncio de um novo ciclo e a recuperação de energias latentes para a constituição próxima de um Quinto Império, um “reino de liberdade de espírito e de redenção”.

 

Características sebastianistas do poema:

- o desânimo nacional (o sebastianismo manifesta-se sempre numa crise, degradação, vazio de sentido);

- uma ânsia instintiva da vinda de um salvador: “É a Hora!” – exclama o poeta, é o momento de uma nova Índia, que se abre no horizonte do povo português; é o Quinto Império, é o super-Portugal de que Fernando Pessoa seria o super-Poeta;

- o salvador e a sua vinda revestem-se de mistério (“nevoeiro”), de algo transcendente (“Hora”; “Valete, Frates” – despedida normal dos membros de certas sociedades secretas e dos frades das ordens religiosas. Se bem que esta expressão não seja aqui como fecho do poema, mas como fecho da obra, vem insinuar ainda mais o sentido sebastianista, mesmo esotérico, do poema).

 

(Proposta de resolução das linhas de apoio à leitura metódica sugeridas em Ser em Português 12.º Ano, coord. Artur Veríssimo. Porto, Areal Editores, 1999)

 

Aula sobre o poema “Nevoeiro” e o sebastianismo na Mensagem, de Fernando Pessoa

 

Sugestão: visiona o Módulo de Português do 12.º Ano respeitante à análise e interpretação do poema “Nevoeiro”, de Fernando Pessoa:

 




 

In: Projeto #EstudoEmCasa. O sebastianismo na Mensagem. Os poemas "O Quinto Império" e "Nevoeiro" -Aula 23 de Português do 12.º Ano, 08-02-2021. Disponível em: https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e522879/portugues-12-ano (inicia no minuto 17’ 52’’)

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.

 


“Ó Portugal, hoje és nevoeiro... (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 04-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/o-portugal-hoje-es-nevoeiro-mensagem.html


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