Páginas

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo. (Álvaro de Campos)

 



Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo.
São – tictac visível – quatro horas de tardar o dia.
Abro a janela diretamente, no desespero da insónia.
E, de repente, humano,
O quadrado com cruz de uma janela iluminada!
Fraternidade na noite!

Fraternidade involuntária, incógnita, na noite!
Estamos ambos despertos e a humanidade é alheia.
Dorme. Nós temos luz.

Quem serás? Doente, moedeiro falso1, insone2 simples como eu?
Não importa. A noite eterna, informe, infinita,
Só tem, neste lugar, a humanidade das nossas duas janelas,
O coração latente das nossas duas luzes,
Neste momento e lugar, ignorando-nos, somos toda a vida.

Sobre o parapeito da janela da traseira da casa,
Sentindo húmida da noite a madeira onde agarro,
Debruço-me para o infinito e, um pouco, para mim.

Nem galos gritando ainda no silêncio definitivo!
Que fazes, camarada, da janela com luz?

Sonho, falta de sono, vida?
Tom amarelo cheio da tua janela incógnita…
Tem graça: não tens luz elétrica.
Ó candeeiros de petróleo da minha infância perdida!

 

Álvaro de Campos, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002

____________

1 moedeiro falso: pessoa que falsifica moeda.

2 insone: pessoa que tem insónias.

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Identifique os sentimentos do «eu» expressos nas três primeiras estrofes.

2. Refira as sensações representadas no poema, transcrevendo os elementos do texto em que se fundamenta.

3. Apresente uma interpretação possível para o seguinte verso: «O coração latente das nossas duas luzes» (v. 13).

4. Comente o sentido da apóstrofe do último verso, tendo em conta a globalidade do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta.

1. Os sentimentos do «eu» expressos nas três primeiras estrofes são, nomeadamente, os seguintes:

– «desespero» pela «insónia» que o afeta, em plena noite;

– surpresa e júbilo, quando abre a janela e depara com luz na janela de uma casa, sinalizando a presença de outro ser humano acordado àquela hora;

– interesse pelo desconhecido também em vigília noturna;

– «Fraternidade» face a esse outro ser, também acordado àquela hora da noite.

2. No poema, encontram-se representadas sensações visuais, auditivas e tácteis, nomeadamente, através dos seguintes elementos do texto:

– «O quadrado com cruz de uma janela iluminada!» (v. 5), «Tom amarelo cheio da tua janela» (v. 21), «luz» (v. 9), «nossas duas luzes» (v. 13), «janela com luz» (v. 19), elementos relativos a sensações visuais;

– «no silêncio todo» (v. 1), «tictac visível» (v. 2), «Nem galos gritando ainda no silêncio definitivo!» (v. 18), elementos relativos a sensações auditivas;

– «Sobre o parapeito da janela da traseira da casa, / Sentindo húmida da noite a madeira onde agarro» (vv. 15-16), elementos relativos a sensações tácteis.

3. O verso referido pode ser interpretado nos seguintes termos:

– a perceção das «duas luzes» e do seu tremeluzir convoca a ideia de um «coração» que pulsa, unindo aqueles dois seres, na solidão da noite;

– as «duas luzes» assinalam a presença do humano na noite «eterna, informe, infinita» e apelam a um sentimento de partilha de «humanidade» entre os dois únicos seres acordados;

– as «duas luzes» são sinal da presença de duas consciências despertas na noite «informe»;

– ...

4. A apóstrofe «Ó candeeiros de petróleo da minha infância perdida!» faz intervir, no final do poema, a nostalgia da infância e a consciência da sua perda, por parte do «eu». Este facto pode ter, entre outras, as interpretações seguintes:

– o texto encerra, tal como se inicia, com a representação de uma atitude interior negativa (ou disfórica) do sujeito poético. Deste modo, a apóstrofe do último verso instaura (ou reinstaura), no final do poema, a angústia do «eu» como o eixo central dos sentidos expressos no texto;

– o verso final traz a lembrança, ou a saudade, da infância como novo sentimento despertado pela sensação visual da luz ao longe, pois essa luz é, tal como na infância do sujeito poético, produzida por um candeeiro a petróleo. A apóstrofe é, assim, a irrupção dessa recordação nostálgica num ambiente marcado por sensações e por considerações sobre o presente;

– ... 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto – Programas novos e Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Português / Português B - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2007, 1.ª Fase

 



Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.


Sem comentários:

Enviar um comentário