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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Ah a frescura na face de não cumprir um dever! (Álvaro de Campos)


 


 

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

 

Faltar é positivamente estar no campo!

 

Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!

 

Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros.

5

Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,

 

Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha.

 

Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.

 

Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.

 

É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,

10

Deliberadamente à mesma hora ...

 

Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.

 

É tão engraçada esta parte assistente da vida!

 

Até não consigo acender o cigarro seguinte ... Se é um gesto,

 

Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

 Álvaro de Campos, Poesias, Lisboa, Ática, 1993

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Indique as relações de sentido que se estabelecem entre os quatro primeiros versos.

2. Explique como se concretiza a atitude de «deliberação do desleixo» (v. 5).

3. Explicite dois valores expressivos da antítese «vestida» / «nu» (vv. 7 e 8).

4. Caracterize os lugares representados pelos advérbios «lá» (v. 6) e «aqui» (v. 11).

5. Comente a importância dos dois últimos versos no contexto global do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta.

1. A satisfação de «não cumprir um dever», expressa no primeiro verso, é reiterada em cada um dos três versos seguintes, com diferentes modulações.

Esse sentimento de satisfação, que a interjeição e a tonalidade exclamativa sublinham, é traduzido, no primeiro verso, pelo evocar de uma sensação física agradável, «a frescura na face», que é amplificada na imagem do segundo verso - «estar no campo» -, e em cada um dos dois versos seguintes: «refúgio», «Respiro melhor».

O não cumprimento de «um dever», referido no primeiro verso como causa de autocomprazimento ou de agrado, é, sucessivamente, concretizado no acto de «Faltar» (v. 2), realçado na sua consequência - «não se poder ter confiança em nós» (v. 3) - e identificado, por fim, com o facto de o «eu» ter falhado encontros - «agora que passaram as horas dos encontros» (v. 4).

2. A atitude de «deliberação do desleixo» concretiza-se através dos seguintes atos do sujeito poético:

- faltar deliberadamente a todos os encontros marcados, deixando passar as «horas» combinadas e fingindo estar a aguardar o que «saberia» ser impossível: «a vontade de ir para lá»;

- marcar deliberadamente para a mesma hora encontros em dois locais diferentes (cf. vv. 9 e 10), inviabilizando, à partida, a sua comparência;

- …

3. A antítese «vestida» / «nu», marcando a oposição entre a «sociedade organizada e vestida» e o estar «nu» do sujeito poético, evoca, entre outros valores expressivos, a tensão entre:

- aparência / verdade;

- prisão (conveniências, regras exteriores) / liberdade (interior);

- organização / devaneio;

- sociedade / indivíduo;

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de dois valores expressivos.

4. O advérbio «lá» refere o lugar dos «encontros», da «sociedade», das regras, das conveniências, do exterior, dos «outros».

O advérbio «aqui» representa o lugar do «eu» que é «assistente da vida», do «eu» sonhador, do «eu» como sujeito da imaginação, do «eu» poeta, criador, livre, descomprometido.

O contraste entre «lá» e «aqui» é homólogo da oposição entre o longe (aquilo de que o sujeito se quer afastado) e o perto (aquilo que ele define como o mundo interior da imaginação poética e do sonho - «ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico»).

5. Os dois últimos versos desenvolvem até ao absurdo a recusa do «eu» em sair do seu lugar de «assistente da vida», em se comprometer com a ação exterior, prescindindo até do gesto de «acender o cigarro seguinte», porque este, como gesto que é, participa da exterioridade e da ação, pertence ao mundo da «sociedade organizada e vestida», dos «outros» que esperam o «eu» nos «encontros» sempre falhados. A ausência de tal gesto é uma imagem que conota (para além da suspensão no tempo) a recusa de participação na vida social balizada pelo «dever».

O comentário «Se é um gesto, / Fique com os outros», apresentando, em registo irónico, tal «gesto» recusado como um símbolo do «desencontro que é a vida», constitui uma opção (aparentemente definitiva) pela vida de devaneio, de imobilidade e de solidão, apesar de o sujeito poético saber que terá de regressar ao «desencontro».

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2003, 1.ª fase, 1.ª chamada

 

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