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sexta-feira, 3 de março de 2023

Bocas roxas de vinho, Ricardo Reis

  

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Bocas roxas de vinho,
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa:

Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.

Antes isto que a vida
Como os homens a vivem,
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.

Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.

 

Ricardo Reis, Poesia. Lisboa, Assírio & Alvim. 2000

 

Proposta de comentário textual

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- oposição homens / deuses;

- relevância das formas verbais escolhidas;

- recursos estilísticos mais importantes;

- integração no universo poético de Ricardo Reis.

 

Explicitação de cenários de resposta

Oposição homens/deuses

Os homens vivem a vida «Cheia da negra poeira» (v. 11) na sucessão dos dias, ao passo que os deuses têm a eternidade como característica própria. A esta oposição entre temporalidade e intemporalidade liga-se outra, a que se estabelece entre a agitação dos homens e a imobilidade dos deuses.

Por outro lado, o «exemplo» (v. 14) dos deuses funciona, em relação aos homens, como um ideal de vida feliz, procurando estes «ir no rio das coisas» (v. 16), como se esperassem conseguir uma síntese entre o movimento da vida e a imobilidade eterna.

Em suma, é sobre a oposição homens / deuses que se constrói o fundamental do sentido do poema, como se os deuses não fossem senão homens perfeitos e os homens tendessem para assumir eles próprios a qualidade de deuses, num processo que aproxima uns e outros e os torna semelhantes.

 

Relevância das formas verbais escolhidas

Há a presença de um verbo em forma nominal na primeira quadra, «Deixados», o que tem a ver com o seu descritivismo. Depois, o «quadro» descrito é dado a ver na segunda quadra, por intermédio de duas formas do presente do conjuntivo, como uma imagem capaz de simbolizar aquela vida perfeita a que se deve aspirar. O presente do indicativo, que é usado nas restantes duas quadras, aponta para aspetos que justificam o preceito moral que o «quadro» inicialmente apresentado sugere.

 

Recursos estilísticos mais importantes

A primeira quadra constitui uma imagem (ou hipotipose, ou quadro) que assenta na harmonização das cores, o roxo e o branco, que, por sua vez, se opõem ao negro da imagem da terceira quadra. A segunda quadra, por uma oposição simétrica àquela que ocorre entre a primeira e a terceira, vai relacionar-se com a quarta quadra - sendo os deuses, o pólo comum a ambas, testemunhas da quietude feliz (segunda quadra) e mestres do «ir no rio das coisas» (quarta quadra) - numa antítese imobilidade / movimento.

Destacam-se, ainda, os seguintes recursos estilísticos:

- a adjetivação anteposta ao nome, dupla («Nus, brancos antebraços», v. 3) ou simples («negra poeira», v. 11);

- a metáfora («negra poeira», v. 11; «rio das coisas», v. 16);

- a comparação («Antes isto que a vida/ Como os homens a vivem», vv. 9-10);

- …

 

Integração no universo poético de Ricardo Reis

A conceção dos deuses como um ideal do humano é uma das marcas gerais da poesia de Ricardo Reis; outras serão a referência à filosofia epicurista e ao seu mote essencial, carpe diem, e a referência à filosofia estoica e à sua ideia de ataraxia, um tipo de tranquilidade (imobilidade e mudez, neste poema) que consiste na moderação com que se vive o prazer; o tempo é também um tema fulcral, entendido como o ritmo das coisas naturais - e, portanto, um tempo cíclico, o «ir no rio das coisas» - mas também como o instante perfeito que é preciso sentir na sua singularidade frágil e preciosa. De acordo com o seu credo classicista, Ricardo Reis aspira sempre à elevação e à harmonia, quer do ponto de vista estilístico, quer do ponto de vista moral.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 134. 12.º Ano de Escolaridade - Via de Ensino (4.º curso). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, 2002, 1.ª fase, 2.ª chamada

 

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Outra proposta de comentário textual

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- relação entre «nós» (sujeito poético e Lídia) e «os homens»;

- papel desempenhado pelos «deuses»;

- aspetos formais e recursos estilísticos relevantes;

- presença de traços da poética de Ricardo Reis.

 

Observação:

Relativamente ao terceiro tópico, são exigidos dois aspetos formais e dois recursos estilísticos.

 

Comentário escrito de um texto literário - explicitação dos critérios de classificação

O comentário de um texto literário orientado por tópicos de análise visa avaliar as competências de compreensão e de expressão escritas.

Ao classificar o comentário elaborado pelo examinando, o professor deverá observar o domínio das seguintes capacidades:

- compreensão do sentido global do texto;

- interpretação do texto através da identificação e da relacionação dos elementos textuais produtores de sentido, na base de informação explícita e de inferências;

- seleção diversificada de elementos textuais pertinentes e adequados ao desenvolvimento dos tópicos enunciados;

- identificação de processos retóricos/estilísticos e de aspetos formais, com avaliação dos efeitos de sentido produzidos;

- relacionação do objeto em análise com o seu contexto;

- construção de um texto estruturado, a partir da articulação dos vários aspetos analisados;

- produção de um discurso correto nos planos lexical, morfológico, sintático e ortográfico.

 

Explicitação de cenários de resposta

Relação entre «nós» (sujeito poético e Lídia) e «Os homenu

Existe uma relação de oposição na medida em que o «nós» é representado:

- com uma atitude de torpor, de ausência de movimento («antebraços/ Deixados sobre a mesa», «Tal seja, Lídia, o quadro/ Em que fiquemos» - vv. 3-4 e 5-6), que contrasta com «a vida/ Como os homens a vivem» (vv. 9-10);

- com tonalidades coloridas («roxas», «brancas», «rosas» - vv. 1-2), que se opõem à imagem cromática associada aos «homens»: o negro da «poeira / Que erguem das estradas» (vv. 11-12);

- com atitudes de imobilidade, de contemplação, de mutismo, de quietude tranquila e até de abandono, que, aproximando o «nós» dos «deuses», o afastam do movimento da vida dos «homens», da dor provocada pela agitação e pelo conflito («Cheia da negra poeira/ Que erguem das estradas» -vv. 11-12);

- …

 

Papel desempenhado pelos «deuses»

Tendo como características específicas a eternidade e a intemporalidade, os «deuses» funcionam como um «exemplo», um ideal para os homens. Porém, as divindades apenas ajudam {«Só [...] socorrem») «aqueles» cuja quietude feliz testemunharam e que, cautelosos, <<nada mais pretendem» que fruir o instante, deixando-se «Ir no rio das coisas», ou seja. aceitando calmamente o Fatum. Assim, «aqueles» vivem serenamente, de forma similar à dos deuses - seguindo o seu «exemplo» -, pelo que ficam «Eternamente inscritos/ Na [sua] consciência» (vv.7-8).

 

Aspetos formais e recursos estilísticos relevantes

De entre os recursos estilísticos, destacam-se os seguintes:

- a adjetivação simples, por posposição ao nome («Bocas roxas», «Testas brancas» - vv. 1-2), e a adjetivação dupla e simples, por anteposição ao nome («Nus, brancos antebraços», «negra poeira» - vv. 3 e 11 ), contribuindo para a descrição dos elementos que compõem o «quadro»;

- a imagem (ou hipotipose, ou «quadro», como é sintetizado no verso 5) presente na primeira quadra, representando o «nós» num ambiente belo e harmonioso nas cores;

- a comparação («Antes isto que a vida/ Como os homens a vivem» - vv. 9-10), estabelecendo a oposição entre «nós» e «os homens» quanto ao modo de viver;

- as metáforas («a vida [...] Cheia da negra poeira», «rio das coisas» - vv. 9, 11 e 16), evidenciando o carácter negativo da existência e o fluir inevitável do tempo;

- as formas verbais no presente do conjuntivo (segunda quadra), modo de representação do desejo e do hipotético, indicando a vida perfeita a que se deve aspirar; no presente do indicativo (terceira e quarta quadras), modo de expressão do real, salientando traços da existência humana e da atitude divina que fundamentam a opção tomada anteriormente pelo sujeito poético (primeira quadra);

- o recurso aos dois pontos no fim da primeira quadra, sublinhando uma intenção explicativa;

- o hipérbato (cf. vv. 13-16), que marca a relação de identificação entre os «deuses» e «aqueles»;

- …

Quanto aos aspetos formais, temos:

- esquema estrófico regular, constituído por quatro quadras;

- ausência de rima;

- presença de encavalgamentos (enjambements)-w. 3-4, 7-8; 11-12, 14-15-16;

- …

Nota - Para a atribuição da cotação referente ao conteúdo deste tópico, é considerada suficiente a apresentação de quatro elementos, sendo obrigatoriamente indicados dois recursos estilísticos e dois aspetos formais. […]

 

Presença de traços da poética de Ricardo Reis

O poema evidencia alguns traços representativos da poética de Ricardo Reis. Assim:

- a defesa de uma filosofia estoico-epicurista, postuladora de tranquilidade e de ataraxia, do gozo moderado do prazer, tendo como mote o carpe diem; Reis evita o sofrimento que decorre do excesso das emoções, contentando-se em fruir o instante, gozando assim a margem de felicidade passivei (cf. vv. 1-8);

- a recusa da dor inerente à luta do homem contra as limitações próprias da condição humana e terrena (cf. vv. 9-12) e a aceitação do carácter inexorável do tempo (cf. v. 16);

- a conceção dos deuses como um ideal do humano, apontando o caminho da elevação e da harmonia estética e moral (cf. vv. 13-16);

- …

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 138. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral - Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A. Portugal, GAVE – Gabinete de Avaliação Educacional, 2005, 1.ª fase


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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.

Questionário sobre o poema “Bocas roxas de vinho”, de Ricardo Reis.

1. Caracterize a relação que o sujeito poético estabelece com o destinatário do poema, Lídia. Comprove as suas afirmações com citações.

2. Explicite o valor simbólico da referência à “negra poeira” que os homens “erguem das estradas”.

3. Indique os versos que apontam para a relação do sujeito poético com o tempo e defina-a.

4. Refira o valor semântico do vocabulário empregue nas duas primeiras quadras, relacionando as expressões “bocas roxas”, “Testas brancas”, “Nus, brancos antebraços” com as formas verbais “deixados” e “fiquemos”.

5. Sintetize a filosofia de vida expressa no poema.

 

Chave de correção:

1. Lídia, a companheira de “viagem” de Reis, é a destinatária deste poema, a quem o sujeito poético ensina a conter qualquer atitude emotiva (“fiquemos, mudos”). Assim, a relação que Reis estabelece com Lídia é marcada pela contenção, pela aceitação do destino inexorável (“Eternamente inscritos/Na consciência dos deuses.”), deixando-se “ir no rio das coisas”, ou seja, demitindo-se de (recusando) qualquer esforço para alterar o curso natural da vida (passividade). Reis preconiza uma vivência horaciana, próxima do “carpe diem” expressa em toda a primeira estrofe, num quadro que ele pinta com as “tintas” dos deuses.

2. A metáfora “negra poeira” encerra um sentido duplamente negativo: “negra”, enquanto dolorosa, e “poeira”, enquanto resíduo inútil. Deste modo, a “negra poeira” que os homens “erguem das estradas” simboliza a inutilidade de qualquer esforço humano no seu percurso existencial.

3. Na poética de Reis, a relação com o tempo é definida pela consciência da precariedade e fugacidade da vida, o que o leva a deixar-se “ir no rio das coisas.” (v. 16) (passividade), sem nada mais exigir, seguindo o exemplo de “aqueles/Que nada mais pretendem” (vv. 14-15).

4. O vocabulário empregue nessas duas quadras apela claramente às sensações — “bocas roxas”, “Testas brancas”, “Nus, brancos antebraços” — num convite a viver o momento como um “quadro” mudo, em que ambos se abandonam ao prazer comedido (contido); esta ideia de abandono e contenção é expressa pelas formas verbais “deixados”e “fiquemos”.

5. Retomando tudo o que anteriormente foi referido, este poema é exemplo de uma filosofia de vida epicurista eivada de estoicismo: Reis convida Lídia a gozar suavemente o presente — o Momento — sem nada mais exigir que a sua fruição.

 

Fonte: Testes de Avaliação, Português 12.ºAno, Livro do Professor – Abordagens, Zaida Braga, Auxília Ramos, Elvira Pardinhas. Porto Editora, 2005, pp. 10 e 24


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