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sábado, 4 de março de 2023

Mestre, são plácidas todas as horas que nós perdemos, Ricardo Reis


 

 





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Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas 
Nem alegrias
Na nossa vida. 
Assim saibamos,
Sábios incautos1,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza…

À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.

O Tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quasi2
Maliciosos,

Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre3.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido

Ricardo Reis, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000

___________

1 incautos: sem cautelas, sem preocupações.

2 quasí: forma arcaizante de quase.

3 deus atroz / Que os próprios filhos / Devora sempre: referência ao deus grego Cronos, cujo nome significa em português Tempo; este deus devorava os filhos ao nascer.


Saturno devorando um filho, Goya, 1818-1823



Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Caracterize a relação entre «nós» e o «Tempo».

2. Explicite um dos efeitos de sentido produzidos pelas formas verbais «saibamos» (vv. 10 e 28), («Colhamos» (v. 37) e «Molhemos» (v. 38).

3. Interprete o valor simbólico das referências às «flores» (vv. 6 e 37), aos «Girassóis» (v. 43), aos «rios» (v. 40).

4. Refira a importância, no texto, do vocabulário relativo à ideia de calma.

5. Sintetize a filosofia de vida expressa no poema.

 


Explicitação de cenários de resposta

1. O sentido da relação entre «nós» e o «Tempo» está simbolizado na referência à figura mitológica de Cronos, o deus que devora os filhos: o «Tempo» é assim definido como o pai e, simultaneamente, o devorador, o aniquilador de «nós».

A consciência do carácter inelutável desse facto exige a aprendizagem da sua total aceitação por parte do «nós», de modo a saber conformar-se às leis do tempo (ao devir da vida, à inscrição do tempo em «nós» - «Envelhecemos.»).

2. O uso das formas verbais «saibamos» (w. 10 e 28), «Colhamos» (v. 37) e «Molhemos» (v. 38) – na 1.ª pessoa do plural do modo conjuntivo, com valor imperativo/optativo - produz, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:

- constrói um sentido exortativo, dirigido a um «nós»;

- contribui para a formulação de máximas que encerram ensinamentos de vida;

- confere ao texto o estatuto de proposta de uma filosofia geral de vida;

- …

3. Os elementos «flores», «Girassóis» e «rios» presentificam a «Natureza» como a realidade com que o «nós» se identifica, convocando ainda cada um deles valores simbólicos próprios. Assim, as «flores» representam a beleza perecível; os «Girassóis» (que mudam de orientação, acompanhando o movimento do Sol), a vida iluminada e regida pera luz do Sol; os «rios», a passagem das «horas», do «Tempo».

4. Os adjetivos «plácidas» (v. 1), «Tranquilos» (vv. 14 e 46), «plácidos» (v. 14), «calmos» (v. 40) e os nomes «Calma» (v. 42) e «descanso» (v. 23) tornam recorrente no poema a ideia de calma e de serenidade. Contribuem, assim, para afirmar a centralidade do tema do sossego absoluto, sem qualquer perturbação, entendido como o ideal a atingir na vivência do «Tempo».

5. A filosofia de vida expressa no poema é a defesa da arte de viver sem envolvimento emocional com o presente e sem expectativas de futuro, por forma a chegar à morte sem sobressalto e com o mínimo de sofrimento («Não a viver» - v. 12; «tendo / Nem o remorso / De ter vivido» - vv. 46-48). O sujeito poético aspira a «decorrê-la» [à vida], isto é, a atingir a sensação elementar de existir, aceitando voluntariamente o seu destino, aprendendo a viver em conformidade com as leis da «Natureza», aceitando, com calma lucidez, a relatividade e a fugacidade de todas as coisas, recusando «tristezas» e «alegrias», na busca da indiferença à dor, ao desprazer, a qualquer sentimento extremo.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2002, 2.ª fase

 



 

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