Receita de Ano Novo
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummond de Andrade, Discursos de Primavera e
Algumas Sombras. São Paulo, Companhia das Letras, 1977
"Receita de Ano Novo" - ilustração de Sónia Oliveira (in Letras & Companhia 9, 2013) |
Pode causar estranheza ao leitor porque a
receita é um texto de caráter utilitário, normalmente utilizado para orientação
de quem cozinha, e o título em causa pertence a um poema, que é um texto
literário. Além disso, indica como se pode obter algo imaterial – um bom Ano
Novo.
De acordo com o sujeito poético, quatro
ingredientes um Ano Novo terá de ter para ser “belíssimo”: ter a cor do
arco-íris ou a cor da sua paz; ser incomparável com outros anos mal vividos ou
sem sentido; ser novo nas sementinhas e no coração, espontâneo; ser tão
perfeito no dia a dia que passe despercebido.
O poeta dirige-se a quem pretende “ganhar um
Ano Novo”, referindo, por exemplo, que não valerá a pena beber champanhe,
enviar ou receber mensagens ou acreditar que, a partir de janeiro, as coisas mudam.
O interlocutor, para o conseguir, terá de lutar por ele, de merecê-lo e de procurá-lo dentro de si.
Carla Marques e Inês Silva, Letras
& Companhia - Português 9.º Ano. Lisboa, Edições Asa, 2013
Boas
saídas e entradas
Ainda
ontem
Tentei
fazer uma crítica do que me aconteceu em 2023 como se estivesse a avaliar um
telemóvel. De um lado do caderno listei os prós e, do outro, os contras.
Os prós
esgotaram-se num instante e amaldiçoei a estrutura binária que dei à minha
avaliação, levando ao desperdício da primeira metade do caderno, quase todo
vazio.
E logo
ali aprendi uma primeira lição. Esta mania dos prós e contras, de dividir tudo
em dois, como se os positivos e negativos se equilibrassem e, pior ainda, como
se fossem importantes, esta mania só mostra uma coisa: que já estamos a ditar a
resposta que queremos (que é aquela que nos dá jeito, que dá pouco trabalho, e
se compreende facilmente), mesmo antes de fazermos a pergunta.
Schopenhauer,
condenado a ser lido quando estamos mais próximos dos vinte anos do que
qualquer ser humano merece estar, fazia questão de dizer que o prazer, num
mundo cheio de sofrimento, é apenas a ausência de sofrimento.
Mas que
ausência! Que gloriosa ausência, a demonstrar a ironia daquele “apenas”!
Quando
comecei a pôr nos “prós” os dias em que não acordei com dores, os dias em que
não pus em causa o sentido da vida, e as manhãs e tardes em que nenhuma
enxaqueca me visitou, o caderno encolheu de um momento para o outro.
É sempre
bom ler os pessimistas. Mas há um género de pessoa que abomino: aquele que lê
os pessimistas só para se sentir melhor. É o equivalente filosófico de começar
a ler o jornal pela necrologia e pelas tragédias.
Essas
pessoas não aguentam que haja quem seja menos miserável do que elas. Tendo os
pessimistas por companhia exclusiva, asseguram-se que são os pintainhos menos
deprimidos do curral.
Schopenhauer
era um grande escritor, cheio de ideias, que falava de tudo e de alguma coisa,
e que não tinha medo nenhum de se pronunciar sobre as grandes questões da vida.
Foi condenado a ser julgado sem ser lido: uma tragédia (para os não-leitores)
que nem o próprio Schopenhauer teria apreciado.
Boas
entradas!
Crónica de Miguel Esteves
Cardoso, jornal Público, 31-12-2023
Antes de
acabar o ano gostaria de deixar uma definição de poeta que pode ajudar a
enfrentar as agruras do próximo ano.
Poeta:
pessoa que consegue tornar o dia, por mais chato que este seja, numa aventura
cómica.
Obviamente
haverá outras definições e também serão boas. Conheço muita rapaziada para quem
poeta é quem está macambúzio, ou a vomitar as entranhas, de preferência à beira
de uma sarjeta no Bairro Alto. Feitios.
E
obviamente que ser poeta não nos protege de um tiro, uma conta da água, uma
perna partida, uma expulsão do apartamento, uma perda de emprego, uma doença má
tipo gripe, cancro ou joanetes.
Ainda
assim, não desajuda. E com uma depressão é um pequeno mecanismo mental (traduzo
para os mainovos: uma app) que pode fazer milagres, com a vantagem de não vir
em comprimido. E o lado bom é que, com o treino, vicia.
Repito,
até porque a repetição faz parte da poesia:
Poeta: pessoa que consegue tornar o dia, por mais chato que este seja, numa aventura. De preferência, cómica.
Rui Zink, https://www.facebook.com/rui.zink.7/posts/10160374955862968,
30-12-2023
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