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quinta-feira, 4 de julho de 2024

Canção dos rapazes da ilha, Aguinaldo Fonseca


 

CANÇÃO DOS RAPAZES DA ILHA

 

Eu sei que fico.
Mas o meu sonho irá
Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas.

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos frutos, nos colares
E nas fotografias da terra,
Comprados por turistas estrangeiros
Felizes e sorridentes.
Eu sei que fico mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Metido na garrafa bem rolhada
Que um dia hei de atirar ao mar.

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos veleiros que desenho na parede.

 

Aguinaldo Fonseca, Suplemento Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde: Boletim de Propaganda e Informação. Praia, publicação da Imprensa Nacional, outubro de 1958

 

Análise literária do poema

O poema "Canção dos rapazes da ilha" de Aguinaldo Fonseca, publicado no Suplemento Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde em outubro de 1958, aborda a realidade de jovens confinados à vida insular e os sonhos que transcendem essa limitação física. Através de uma estrutura repetitiva e um tom melancólico, o sujeito poético apresenta um contraste entre a imobilidade física e a liberdade do espírito e da imaginação.

O poema inicia com uma declaração contraditória: “Eu sei que fico. / Mas o meu sonho irá” (vv. 1-2). Estes versos contêm as duas certezas do sujeito poético: a realidade de permanecer fisicamente na ilha e a capacidade dos seus sonhos de transcender essa limitação. Esta contradição estabelece o tom para o resto do poema, em que o sujeito poético explora como os seus sonhos poderão viajar e alcançar lugares além da sua prisão insular.

O sonho do sujeito poético propaga-se de várias formas. Ele imagina o seu sonho voando pelo ar (“Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas”), manifestando-se em objetos vendidos a turistas (“Nos frutos, nos colares / E nas fotografias da terra”), encerrado numa garrafa atirada ao mar (“Metido na garrafa bem rolhada / Que um dia hei de atirar ao mar”), e nos desenhos dos veleiros na parede (“Nos veleiros que desenho na parede”). Cada uma destas imagens reforça a ideia de que, embora fisicamente confinado, o espírito e a imaginação do sujeito poético podem viajar e deixar uma marca.

A impossibilidade de o sujeito poético sair da ilha é sugerida pela sua condição socioeconómica e pela insularidade. A pobreza, implícita nas suas circunstâncias, e a realidade geográfica de viver numa ilha limitam as oportunidades de fuga física, acentuando a prisão física em contraste com a liberdade imaginativa.

O poema constrói-se sobre diversos contrastes que enriquecem a leitura:

Presente/Futuro: O presente é representado pela certeza de que o sujeito poético fica, enquanto o futuro é sugerido pelo sonho que irá.

Realidade/Fantasia: A realidade da permanência física contrasta com a fantasia do sonho viajante, capaz de se propagar pelo ar e pelos mares.

Pobreza/Riqueza: A pobreza é subentendida na condição de ficar, enquanto a riqueza é simbolizada pelos objetos que contêm os sonhos, vendidos a turistas estrangeiros.

Prisão/Liberdade: A prisão física de ficar é contraposta à liberdade do sonho que viaja.

Infelicidade/Felicidade: A infelicidade da imobilidade é contrastada com a felicidade imaginada e idealizada nos sonhos que se movem.

Estes contrastes são centralizados na estrutura do poema, particularmente na repetição dos versos "Eu sei que fico. / Mas o meu sonho irá", em que a conjunção adversativa “mas” enfatiza a diferença entre o presente aprisionado e a libertação futura.

O título "Canção dos rapazes da ilha" sugere que o poema não é apenas a expressão de um indivíduo, mas representa um sentimento coletivo de uma geração de jovens confinados a uma realidade insular. A "canção" simboliza a voz unificada destes rapazes que, apesar das suas limitações físicas, nutrem sonhos e esperanças de um futuro além das fronteiras da sua ilha. Este sentimento coletivo é emblemático da Geração do Suplemento Cultural, conhecida por sua postura de revolta e pelo desejo de transcender as limitações impostas pelo contexto colonial e geográfico.

 

Geração do Suplemento Cultural

A Geração do Suplemento Cultural, nascida em 1958, aparece como uma Geração muito identificada com uma verdadeira postura de revolta.

O Suplemento Cultural saiu apenas uma vez, pois o segundo foi impedido de sair às bancas pela censura colonial da época.

A situação de Cabo Verde na época levava a que este grupo de homens, reunido à volta desta Geração, questionasse politicamente as verdadeiras causas/razões de tal realidade comprometida, apelando, assim, à revolta humana

Desta forma, é amplamente reconhecido que este Suplemento Cultural marcou, definitivamente, uma atitude radicalmente diferente em relação às Gerações anteriores. Apesar de irem buscar a maturidade literária aos homens da Geração da Claridade (1936) e a maturidade político-social aos homens da Geração da Certeza (1944), os homens da Geração do Suplemento Cultural apresentam-se como homens da Geração da recusa (a favores específicos ao sistema colonial) que aposta na valorização da coletividade - cabo-verdiana, obviamente. O "eu" poético é, assim, um "eu coletivo", um "eu/nós", onde o poeta se apresenta como o porta-voz da dimensão cultural coletiva, identificando-se solidariamente com o seu povo.

Do ponto de vista político-social, a Geração do Suplemento Cultural assume uma postura de combate, de revolta e de alerta, abrindo caminho à mais pura vontade de independência.

Fala do homem que aposta na terra que é sua, negando tendências antigas (seculares, mesmo) de evasão, de fuga, desvalorizando o elemento "mar" para dar vida ao elemento "terra".

Os seus textos são rítmicos, repetitivos, exatamente porque são enfáticos, destinados a revelar claramente as realidades.

A sua principal missão era a de captar a fidelidade do homem cabo-verdiano à sua terra natal e, nas circunstâncias naturais e dimensões espirituais, levá-lo às últimas consequências, por forma a que resultasse na atitude de reconstrução do enraizamento da cultura intelectual em bases profundas e coerentes. A sua maior intenção era a de fazer da arte literária uma projeção intencionalmente combativa da problemática do ilhéu.

Consciencializar o homem cabo-verdiano de que este faz parte integrante de um processo histórico geral que o envolve, era, no momento, o trabalho mais ativo que esta Geração do Suplemento Cultural tinha de levar a cabo.

Porto Editora – Geração do Suplemento Cultural na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2024-07-01]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$geracao-do-suplemento-cultural

 


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