CANÇÃO DOS RAPAZES DA ILHA
Eu sei que fico.
Mas o meu sonho irá
Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas.
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos frutos, nos colares
E nas fotografias da terra,
Comprados por turistas estrangeiros
Felizes e sorridentes.
Eu sei que fico mas o meu sonho irá...
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Metido na garrafa bem rolhada
Que um dia hei de atirar ao mar.
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos veleiros que desenho na parede.
Aguinaldo
Fonseca, Suplemento Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde: Boletim de
Propaganda e Informação. Praia, publicação da Imprensa Nacional, outubro de
1958
Análise literária do poema
O poema
"Canção dos rapazes da ilha" de Aguinaldo Fonseca, publicado no Suplemento
Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde em outubro de 1958, aborda a
realidade de jovens confinados à vida insular e os sonhos que transcendem essa
limitação física. Através de uma estrutura repetitiva e um tom melancólico, o
sujeito poético apresenta um contraste entre a imobilidade física e a liberdade
do espírito e da imaginação.
O poema
inicia com uma declaração contraditória: “Eu sei que fico. / Mas o meu sonho
irá” (vv. 1-2). Estes versos contêm as duas certezas do sujeito poético: a
realidade de permanecer fisicamente na ilha e a capacidade dos seus sonhos de
transcender essa limitação. Esta contradição estabelece o tom para o resto do
poema, em que o sujeito poético explora como os seus sonhos poderão viajar e
alcançar lugares além da sua prisão insular.
O sonho
do sujeito poético propaga-se de várias formas. Ele imagina o seu sonho voando
pelo ar (“Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas”), manifestando-se em objetos
vendidos a turistas (“Nos frutos, nos colares / E nas fotografias da terra”),
encerrado numa garrafa atirada ao mar (“Metido na garrafa bem rolhada / Que um
dia hei de atirar ao mar”), e nos desenhos dos veleiros na parede (“Nos
veleiros que desenho na parede”). Cada uma destas imagens reforça a ideia de
que, embora fisicamente confinado, o espírito e a imaginação do sujeito poético
podem viajar e deixar uma marca.
A
impossibilidade de o sujeito poético sair da ilha é sugerida pela sua condição
socioeconómica e pela insularidade. A pobreza, implícita nas suas
circunstâncias, e a realidade geográfica de viver numa ilha limitam as
oportunidades de fuga física, acentuando a prisão física em contraste com a
liberdade imaginativa.
O poema
constrói-se sobre diversos contrastes que enriquecem a leitura:
Presente/Futuro:
O presente é representado pela certeza de que o sujeito poético fica, enquanto
o futuro é sugerido pelo sonho que irá.
Realidade/Fantasia:
A realidade da permanência física contrasta com a fantasia do sonho viajante,
capaz de se propagar pelo ar e pelos mares.
Pobreza/Riqueza:
A pobreza é subentendida na condição de ficar, enquanto a riqueza é simbolizada
pelos objetos que contêm os sonhos, vendidos a turistas estrangeiros.
Prisão/Liberdade:
A prisão física de ficar é contraposta à liberdade do sonho que viaja.
Infelicidade/Felicidade:
A infelicidade da imobilidade é contrastada com a felicidade imaginada e
idealizada nos sonhos que se movem.
Estes
contrastes são centralizados na estrutura do poema, particularmente na
repetição dos versos "Eu sei que fico. / Mas o meu sonho irá", em que
a conjunção adversativa “mas” enfatiza a diferença entre o presente aprisionado
e a libertação futura.
O título
"Canção dos rapazes da ilha" sugere que o poema não é apenas a
expressão de um indivíduo, mas representa um sentimento coletivo de uma geração
de jovens confinados a uma realidade insular. A "canção" simboliza a
voz unificada destes rapazes que, apesar das suas limitações físicas, nutrem
sonhos e esperanças de um futuro além das fronteiras da sua ilha. Este
sentimento coletivo é emblemático da Geração do Suplemento Cultural, conhecida
por sua postura de revolta e pelo desejo de transcender as limitações impostas
pelo contexto colonial e geográfico.
Geração do Suplemento Cultural
A Geração
do Suplemento Cultural, nascida em 1958, aparece como uma Geração muito
identificada com uma verdadeira postura de revolta.
O Suplemento
Cultural saiu apenas uma vez, pois o segundo foi impedido de sair às bancas
pela censura colonial da época.
A
situação de Cabo Verde na época levava a que este grupo de homens, reunido à
volta desta Geração, questionasse politicamente as verdadeiras causas/razões de
tal realidade comprometida, apelando, assim, à revolta humana
Desta
forma, é amplamente reconhecido que este Suplemento Cultural marcou,
definitivamente, uma atitude radicalmente diferente em relação às Gerações
anteriores. Apesar de irem buscar a maturidade literária aos homens da Geração
da Claridade (1936) e a maturidade político-social aos homens da Geração da
Certeza (1944), os homens da Geração do Suplemento Cultural apresentam-se como
homens da Geração da recusa (a favores específicos ao sistema colonial) que
aposta na valorização da coletividade - cabo-verdiana, obviamente. O
"eu" poético é, assim, um "eu coletivo", um
"eu/nós", onde o poeta se apresenta como o porta-voz da dimensão
cultural coletiva, identificando-se solidariamente com o seu povo.
Do ponto
de vista político-social, a Geração do Suplemento Cultural assume uma postura
de combate, de revolta e de alerta, abrindo caminho à mais pura vontade de
independência.
Fala do
homem que aposta na terra que é sua, negando tendências antigas (seculares,
mesmo) de evasão, de fuga, desvalorizando o elemento "mar" para dar
vida ao elemento "terra".
Os seus
textos são rítmicos, repetitivos, exatamente porque são enfáticos, destinados a
revelar claramente as realidades.
A sua
principal missão era a de captar a fidelidade do homem cabo-verdiano à sua
terra natal e, nas circunstâncias naturais e dimensões espirituais, levá-lo às
últimas consequências, por forma a que resultasse na atitude de reconstrução do
enraizamento da cultura intelectual em bases profundas e coerentes. A sua maior
intenção era a de fazer da arte literária uma projeção intencionalmente
combativa da problemática do ilhéu.
Consciencializar
o homem cabo-verdiano de que este faz parte integrante de um processo histórico
geral que o envolve, era, no momento, o trabalho mais ativo que esta Geração do
Suplemento Cultural tinha de levar a cabo.
Porto
Editora – Geração do Suplemento Cultural na Infopédia [em linha]. Porto:
Porto Editora. [consult. 2024-07-01]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$geracao-do-suplemento-cultural
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