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domingo, 29 de maio de 2016

Emanuel Jorge Botelho (entrevista)


Emanuel Jorge Botelho, Correio dos Açores, 2016-05-29

NOSSA GENTE (63)
Emanuel Jorge Botelho tem 65 anos e passou o dia da “Revolução dos Cravos” em Lisboa onde, nas redondezas era dos poucos que tinha televisão e viu a sua casa encher-se de gente, muitos até que não conhecia, para estarem a par das notícias. Confessa que foi “um dia inesquecível” e que quem o viveu “nunca mais dele se esquece”. É escritor e foi professor; ainda se lembra do tempo em que o professor era uma pessoa respeitada, quer pelos alunos quer pelos pais dos mesmos.

De onde é natural?
Sou natural da Matriz de Ponta Delgada. Tive uma vida muito normal. Fui para a escola primária ainda no tempo da escola primária no Campo de São Francisco, a Escola de São José. Depois acabei a primária na Escola da Vitória e fiz os exames de admissão como se fazia na altura ao liceu e à antiga Escola Industrial. Fiquei no Liceu durante 10 anos, por razões que não importa aqui pormenorizar, mas acabou por me sair caro porque quando foi para ir para a Universidade estava “tapado” e à mínima falha ia para a guerra.
Mas tinha um amor muito grande aqui, o amor da minha vida, e não queria deixar e queria acompanhá-la sempre.
Tive uma infância muito feliz, brinquei muito num sítio que adorava brincar que foi no Largo 2 de Março, que hoje em dia é um terreno vazio, triste e solitário. Mas era um sítio com uma alegria imensa na cidade, tinha uma vivacidade imensa, tinha comércio, era uma zona muito bonita da cidade. Hoje em dia já não.
Brincava-se na rua...
Brincava-se na rua. A rua era como se fosse a nossa casa, com um pão com manteiga dentro da algibeira. Brincava-se à vontade e não havia perigo nenhum. Creio que o meu filho, quando volto de Lisboa e passei a viver definitivamente na Avenida D. João III, ainda apanhou uns anos em que podia brincar na rua. Os vizinhos até tiravam o carro para os miúdos brincarem à bola.
Mas hoje em dia é tudo muito diferente. Já não há lugar para as crianças brincarem e também não sei se as crianças querem brincar na rua, por- que estão muito metidos com as electrónicas.

Ponta Delgada - Portas da Cidade e Igreja Matriz ao fundo, por Juliana Correa, 2022-10-15



Quanto tempo esteve em Lisboa?
Estudei em Lisboa durante cinco anos, licenciei-me em Ciências Político-Sociais, e penso que regressei em 1975 ou 1976, foi no ano em que comecei a ter a minha vida profissional. Comecei a ser professor naquele ano.
Depois do curso regressei à minha terra, que era o meu sonho. Mal desembarquei em Lisboa pensei logo que era preciso que chegasse depressa o dia de voltar para a minha terra. Lisboa tem uma luz muito bonita mas a minha luz é outra, é uma luz verde.
E o amor que não queria deixar?
O amor foi comigo. A minha mulher já trabalhava e estive pouco tempo lá sozinho. Entretanto casámos e ela foi lá ter comigo e vivemos lá quatro anos. Mas queria regressar e aqui estou e praticamente não saí daqui desde aquela altura.
O que leccionou?
Foi professor de Português e dei Estudos Sociais, uma disciplina que depois desapareceu, e passei a dar História de Portugal.
Viveu então o 25 de Abril em Lisboa?
Estava em Lisboa. Lembro-me de tudo, é indescritível. Saí de casa nesse dia várias vezes, fui para a baixa duas ou três vezes. Cheguei a ter gente em casa que até perguntava à minha mulher, que se chama Lorena, quem era o senhor que estava sentado na nossa salinha, porque vivíamos num T1. Tínhamos comprado uma televisão de- pois de eu fazer uma cadeira que me estava a apo- quentar muito e a prenda para mim próprio e para a casa foi uma televisão. Comprámos a televisão e ali à volta nem toda a gente tinha televisão e como sabiam que eu tinha, houve muita gente açorianos e não só, mas que arrastavam outros, assistir aos comunicados na minha casa. Foi um dia inesquecível. Quem viveu nunca mais dele se esquece. Foi lindíssimo. Foi um dia do grande grito, foi um dia de chorar a gritar.
Quando regressou notou diferenças em Ponta Delgada?
A cidade tem vindo sempre a modificar-se mas naquela altura não notei grandes diferenças porque, naquela altura, vinha cá muitas vezes. Tinha essa possibilidade de vir cá sempre nas férias. As coisas, mesmo que se modificassem, passava por elas e não notei grandes diferenças.
Quando foi para Lisboa foi de barco ou já de avião?
Fui para lá de barco para levar coisas que o meu querido pai nos tinha feito. O meu pai gostava muito de trabalhar a madeira e fazia tudo. Já naquele tempo, a nossa cama, a minha secretária, as mesinhas de cabeceira, a estante principal, estava tudo dentro de um caixote em madeira feito pelo meu pai. Levámos mais algumas coisas que podíamos precisar. Fomos de barco, creio que no “Funchal”.
Depois foi sempre de avião. Mas ainda apanhei aquelas célebres viagens de Santa Maria em que no regresso tínhamos de nos levantar às 4 horas da manhã para ir apanhar a SATA para ir para Santa Maria e depois apanhar a TAP para Lisboa. Era uma coisa épica.
Apanhou muitos sustos?
O maior susto que apanhei na minha vida foi das poucas viagens que fiz, porque viajei mui- to pouco ou nada, à relativamente pouco tempo quando fiz 60 anos. Nunca tive problemas em andar de avião. Era épico porque era muita gente. As pessoas tinham reserva feita mas a reserva não aparecia, havia muitas complicações.
As novas tecnologias vieram facilitar essas coisas...
Para quem sabe mexer nelas, que não é o meu caso. Deve facilitar algumas coisas porque tem muito lixo mas tem de ter inevitavelmente coisas boas e aproveitáveis.
Falou no Largo 2 de Março que está modificado e a cidade de Ponta Delgada está muito mudada?
A cidade hoje em dia é uma cidade muito mais viva e no Verão é muito mais alegre. Mas há coisas das quais sinto a falta e que tenho pena que tenham sido substituídas. Por exemplo, a Avenida Marginal a partir de finais de Julho até princípios de Setembro tinha centenas de pessoas a conversar, sentadas no muro da Avenida, para trás e para a frente numa conversa saudável. Era muito interessante.
Hoje em dia metem-se ali para baixo, ao escuro a beber cerveja. São preferências mas para mim é estranho. Tenho pena que a parte de cima da Avenida Marginal não tivesse mantido a alegria que tinha e a quantidade de gente que para ali vinha conviver, famílias inteiras.
Por baixo tem outras funções, mas para mim é um poço escuro.
Com o aumento de turistas também deve voltar a encher-se a Avenida...
Eu fiquei assustado quando começou esta vaga de turistas, tive medo que a cidade não tivesse o sossego que mantinha, apesar de tudo. Compreendo perfeitamente que é preciso vir para cá gente, que é preciso dinamizar o comércio. Mas quando saem do centro da cidade e vão para os trilhos e visitar as paisagens, creio que tem de haver uma regulamentação muito apertada e tem de ser tudo muito vigiado porque há quem venha para ver e há quem venha para sujar tudo. De resto penso que é muito bom para a economia da ilha, se for tudo bem regulamentado e vigiado.

Laurissilva da ilha de São Miguel fotografada por Hugo Correia, 2022



Ainda lecciona? Nota diferenças entre os alunos que teve quando iniciou a profissão e os de agora?
Infelizmente, com um ‘I’ muito grande, tive que deixar a minha vida profissional por razões muito graves de saúde. Tive de sair mais cedo. Não me lembro do ano em que me reformei mas já nesse ano senti diferença nos alunos, havia uma rebeldia diferente, uma postura diferente e havia coisas que não entendia. Por exemplo, numa turma de 22 alunos, 70% escrevia na ficha que lhes damos para fazerem a sua identificação, na parte da profissão do pai escreviam trabalha. Perguntava em que trabalhava o pai e diziam que não sabiam. Nunca percebi como é que numa casa não se sabe onde é que o pai trabalha. Isso é sintoma que havia qualquer coisa na família que não estava a funcionar bem e creio que isto piorou. Não sei como é que está agora porque não tenho tido esse contacto mas penso que piorou porque o ambiente agora creio que deve ser mais complicado.
Pelo que me contam, também me parece que os pais estão demasiadamente dentro da escola. A escola é para os professores e os pais têm de fazer o seu trabalho de casa. Os pais fazem o seu trabalho e os professores fazem o seu e da complementaridade dos dois nasce a educação dos filhos. O professor ensina mas também educa e os pais têm, fundamentalmente, educar.
Antigamente via-se mais essa educação que vinha de casa?
Acho que sim. A educação que vinha de casa era outra, quando comecei a trabalhar. Por outro lado o professor tinha um estatuto diferente, respeitava-se o professor, o professor era bem tratado. Não era uma pessoa importante, mas era o professor do meu filho ou da minha filha. Era no tempo em que o professor tinha sempre razão. Se eu chegasse a casa e a minha mãe me dissesse que aquilo era vermelho e se o meu professor me tivesse dito que era preto. Eu dizia que era preto porque o professor tinha sempre razão, até mais do que os pais às vezes.
Agora não. Há muita reivindicação dos pais na escola, é um exagero.
Também há reivindicações da parte dos professores. Acha que são incompreendidos?
Por exemplo, uma aula de 90 minutos é muito complicado. É terrível, é preciso ter um espírito inventivo imenso para ter 22 ou 23 crianças permanentemente motivadas à nossa frente durante 90 minutos. Os horários são pesados para as crianças e é tudo muito complicado para os professores porque, pelo que me dizem, têm tanta reunião que quase gastavam mais tempo em reuniões do que a dar aulas. Depois ficavam quase sem tempo para preparara aulas porque as pessoas esquecem-se que os professores não deixam a escola na escola, levam a escola para casa e às vezes estão até às 2 ou 3 da manhã a preparar aulas para dar no dia seguinte às 8h30. Julgam que os professores era quem tinha bela vida. Qual bela vida? Experimentem ir para uma sala de aula desde as 8h30 até às 12h30 dar aulas seguidas. É extenuante. Para um professor sério, que quer dar as suas au- las bem dadas, é extenuante. Até digo que é uma profissão de risco.
Sempre quis ser professor?
Vim para cá com o curso de Ciências Político-sociais, ligado à Sociologia e tinha pensado vir para cá dar algo ligado à Sociologia para começar a minha vida. Não sabia ainda para onde iria. A minha grande vocação tinha sido fazer trabalhos de campo, mas isso depois passou-me e apareceram vagas para professor e concorri. Gostei tanto do primeiro ano que resolvi ver como funcionava o segundo, que funcionou bem, o terceiro também funcionou bem e quando dei por mim estava a fazer estágio, depois a orientar estágios e quando dei por mim estava a gostar da minha vida e decidi que não tinha que escolher mais nada. Gosto de ser professor. Tinha e, digo-o com muito orgulho, uma grande empatia com os alunos e uma relação muito boa com eles. Ainda hoje me cruzo com muitos e vêm ter comigo o que é uma alegria imensa. Deixei-me ficar e quando saí, para mim, foi um tormento.
Agora que já não está dedicado a essa tarefa, como ocupa os seus tempos livres?
Eu tenho que fazer, obrigatoriamente, uma vida muito serena e pacata. Leio muito, mas com a pouca vista que me resta já não leio o que lia. Tenho que seleccionar muito e há autores que já não leio porque prefiro ler outros e tenho de fazer uma selecção. Escrevo um bocado, publico um ou outro livro de vez em quando, principalmente no continente. Tento ter sempre a minha vida a trabalhar.
Tenho três netas, por quem tenho um amor infinito, e vou ajudando no que posso principalmente a minha companheira que é quem faz a parte principal na tarefa, mas vou-a acompanhando na tarefa de “avozar” que é um verbo que gosto de usar.


Fala-se muito na literatura açoriana que é diferente dos restantes autores portugueses. Como caracteriza a sua escrita?
A questão da literatura açoriana não vou entrar por aí porque creio que não se justifica. Há boa literatura e há má literatura. Prefiro falar numa literatura universal.
Sou um homem que, a partir de determinada altura, por influência de um grande professor que tive, o Dr. João Bernardo de Oliveira Rodrigues, a quem mostrei uma vez um papelinho com uma coisa que tinha escrito no liceu. Ele olhou para aquilo e disse-me: “oh Botelho, o papel é um tris- te e infeliz, aceita tudo. Põe isso numa gaveta e lê mais tarde”. Realmente mais tarde, quando reli mais tarde achei que ainda bem que ele me tinha dito aquilo.
Eu sou de escrever muito lento, se trabalhasse num jornal seria um desastre. Para escrever um poema às vezes levo três semanas porque às vezes um poema que tinha 40 versos, ficam dois e acaba por ser um poema muito longo, passado para um poema muito pequenino. O que me interessa é que fiquem as palavras essenciais, que é preciso dizer e nada que tire a atenção do leitor daquilo que quero dizer. Não é da mensagem porque não gosto da palavra, acho que não há mensagens nenhumas, é aquilo que está ali dito.
Tenho um cuidado muito grande com as palavras e sou muito obsessivo com a escrita, nesse sentido. É tudo feito minuciosamente, nem uma palavra a mais nem uma a menos.
Não acredita na influência do mar nos escritores açorianos?
Há palavras que já me irritam como a bruma e essas coisas assim. É natural que quem vive ao pé do mar, sem dar por isso, inclua o mar no que escreve. Mas isso é aqui como em qualquer parte em que há mar ou um rio.
Agora, falar em literatura especificamente açoriana não me repugna, mas penso que não há necessidade. A literatura é universal, não é preciso estar a compartimentá-la. O que interessa é que seja grande literatura.


Perfil: “Escrever sem pressa de chegar às massas”
Com várias obras publicadas, Emanuel Jorge Botelho diz-se obsessivo com a escrita e todas as palavras são minuciosamente escolhidas para completar os seus poemas.
Escolhe sempre pequenas editoras, que optam geralmente por tiragens não muito grandes dos livros que imprimem, e Emanuel Jorge Botelho diz- se satisfeito assim. Confessa que por vezes leva três semanas a escrever um poema que inicialmente se apresentava com 40 versos mas que rapidamente os vai cortando e onde restam apenas dois. Mas “o que me interessa é que fiquem as palavras essenciais, que é preciso dizer e nada que tire a atenção do leitor daquilo que quero dizer”. Não da mensagem que quer passar, porque “não gosto da palavra”, mas daquilo que ali escreve.
Considera que não há uma literatura especificamente açoriana, apesar de admitir que quem vive junto ao mar, “ou ao rio”, tenha mais tendência para escrever sobre essas temáticas com que está familiarizado. Prefere dividir a literatura em “boa” e “má”, do que a compartimentar por zonas geográficas.
Além da escrita, também se dedica à leitura mas devido a graves problemas de saúde teve de abrandar uma das suas actividades preferidas, que é ler. Agora tem de ser mais selectivo na escolha de autores e obras que lê, já que tem de “obrigatoriamente” levar uma vida “serena e pacata”.
Nada que o impeça de realizar outra das “tarefas” que mais gosto lhe dá que é: “avozar”, “um verbo que gosto de usar e que não sei se inventei”. Ou seja, ajudar “o amor da minha vida”, a esposa Lorena, a tratar das três netas “por quem tenho um amor infinito”. A tarefa não se assemelha fácil, a juntar às restantes tarefas literárias, mas Emanuel Jorge Bote- lho gosta de se manter ocupado e de “ter sempre a minha vida a trabalhar”.
Já quando era professor era assim, e por isso entende as actuais reivindicações dos colegas. Refere que manter 22 a 23 crianças minimamente atentas e entusiasmadas durante uma aula de 90 minutos pode ser extremamente cansativo, e que um professor nunca deixa a escola na escola pois é em casa que continua a preparar as aulas que vai dar no dia seguinte.
Os tempos em que o professor era uma pessoa respeitada quase que já estão ultrapassados e considera que “os pais estão demasiadamente dentro da escola”, quando devem unir esforços e complementar o trabalho dos professores e, “fundamentalmente”, educar.

“Nossa gente (63)”, Carla Dias, Correio dos Açores, 2016-05-29


***

Botelho, Emanuel Jorge Ferreira da Cruz

[N. Ponta Delgada, 11.8.1950] Licenciou-se em Ciências Político-Sociais e seguiu a carreira de professor. Contudo, tem-se distinguido como poeta e animador cultural. Faz parte do Grupo de Intervenção Cultural Açoriano (GICA) e fundou e dirigiu, conjuntamente com Eduardo Bettencourt Pinto, a revista *Aresta (1980-1984). Coordenou o suplemento literário ?Raiz?, do jornal Correio dos Açores. Muitos dos seus poemas são publicados em tiragens artesanais e imaginativas, tendo raramente publicado um livro tradicional.

Como poeta pode-se considerar de vanguarda, utilizando uma escrita provocadora e mergulhando nas estilísticas surrealistas. É admirador confesso de Mário Cesariny de Vasconcelos, de António Maria Lisboa e de Ângelo de Lima e um dos seus livros foi prefaciado por José Sebag.

Gravemente doente, diminuiu a sua capacidade de intervenção. 

J. G. Reis Leite (2002)

Obras principais. (1978), Consciências de Mim que a Ti Devo. 2ª ed., Ponta Delgada, ed. do autor [pref. de António Machado Pires]. (1978), Agite Antes de Usar. Ponta Delgada, ed. do autor [pref. de José Sebag]. (1981), Mas o território Não é o Mapa. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura. (1982), Cesuras. Lisboa, Imp. Nacional/Casa da Moeda. (1984), As Mãos, as Crinas. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura. (1988), Asas e Penas. Lisboa, & Etc. (1996), Perguntas Queimadas. Guimarães, Ed. Bumerangue.

 

Bibl. Carvalho, R. G. (1979), Antologia Poética dos Açores. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura: 443.

 

Fonte: http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=101




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à Emanuel Jorge Botelho entrevistado por José Andrade, RTP, 02-04-2017. Disponível em RTP Play – Biblioteca Açoriana

à




sexta-feira, 27 de maio de 2016

Fala! Alexandre O'Neill



Ilustração de Marta Madureira, 2012.


F A L A !

Fala a sério e fala no gozo
fá-la p’la calada e fala claro
fala deveras saboroso
fala barato e fala caro

Fala ao ouvido fala ao coração
falinhas mansas ou palavrão

Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe

Fala franciú fala béu-béu

Fala fininho e fala grosso
desentulha a garganta levanta o pescoço

Fala como se falar fosse andar
fala com elegância muita e devagar.

Alexandre O'Neill, Abandono Vigiado. Lisboa, Guimarães Editores, 1960. Coleção “Poesia e Verdade”.

Audição do poema dito por Luís Gaspar (Estúdio Raposa, 2012-01-08).
Linhas de leitura:
- No poema “Fala!” de Alexandre O’Neill, o sujeito poético dirige, anaforicamente, sucessivos apelos ao destinatário, para que este atue através da palavra e faça da sua capacidade de falar uma ação tão natural como a capacidade de andar (“Fala como se falar fosse andar”).
- Identifica as palavras homófonas da primeira estrofe do poema “Fala!” de Alexandre O’Neill e procede à sua transcrição fonética.
- Repara na variedade de sentidos que envolvem o verbo “falar” nas seguintes expressões idiomáticas:
  • “fala claro”: falar de forma percetível sem deixar dúvidas sobre o que se diz (falar claro);
  • “fala barato e fala caro”: falar muito e despropositadamente (fala-barato) / falar com registo cuidado (falar caro);
  • “Fala ao ouvido fala ao coração”: falar baixinho com alguém para que mais ninguém ouça (falar ao ouvido) / falar tentando despertar sentimentos de boa vontade em alguém (falar ao coração);
  • “Fala fininho e fala grosso”: falar com medo ou muito respeito (falar fininho) / falar de forma agressiva (falar grosso).

(Adaptado de P8 Português – 8.º Ano, Ana Santiago e Sofia Paixão, Texto Editora, 2012)






A década de 60 pode ser considerada o momento mais produtivo da carreira literária do autor português. Neste período foram lançados livros de poesia, antologias de outros poetas e traduções. A partir da publicação de No reino da Dinamarca, a poesia de O’Neill assume um caráter político, recusando a ordem estabelecida por meio da provocação, da sátira, do escárnio, da blasfêmia e do divertimento poético. Suas poéticas são voltadas para a libertação do homem e da palavra.
[…] em Abandono vigiado, de 1960, uma contradição se faz evidenciar já no título, que constitui um paradoxo, e remete a um programa de escrita que é ao mesmo tempo abandonada e vigiada. Trata-se, aqui, da relação de Alexandre O’Neill com a poética surrealista e com uma poesia de outra ordem, voltada para a resistência política […].
[…]as atitudes do sujeito lírico são centradas na provocação e na blasfêmia, opondo-se ao amor e ao lirismo, assim como se nota o humor como meio de denúncia; a escrita é vista como uma forma de resistência. Essa postura poética não se centra apenas em uma perspectiva de crítica individual, mas, sim, na projeção de uma visão satírica de Portugal.

Graciele Batista Gonzaga, O pensar poético: Alexandre O’Neill em diálogo com João Cabral, Belo Horizonte, Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 2015

quarta-feira, 25 de maio de 2016

O homem-mãe (Cesariny)





Linhas de leitura:

- Pronuncia repetidamente em voz alta a frase seguinte: ‑ Ó mãe!

- Lê agora o título do poema de Mário Cesariny de Vasconcelos e explica as associações que se estabelecem entre as duas palavras que o compõem.
Apesar de serem palavras graficamente diferentes, a sua pronúncia aproxima-as.

- Observa o poema e verifica se essas palavras são recuperadas.
As palavras são recuperadas na sua totalidade, ou aparecem divididas em sílabas e sons.

- Apresenta várias formas de ler este poema.
A primeira estrofe pode ler-se horizontalmente, da esquerda para a direita. Já a segunda estrofe permite, por vezes, uma leitura horizontal e vertical (de baixo para cima e de cima para baixo).

- Que efeitos são conseguidos com a mudança do uso de letras minúsculas para letras maiúsculas?
As letras maiúsculas sugerem a leitura do poema em voz mais alta do que no caso das minúsculas.

- Identifica as sensações que tens que associar para entenderes este texto.
Visuais e auditivas.

Proposta de escrita recreativa, expressiva e lúdica:

Escreve um poema que ative um ou vários sentidos. Pode ser um poema:

- visual: por exemplo, jogos de palavras, experiências em vídeo, poemas tridimensionais;

- auditivo: por exemplo, jogos de sonoridades registadas em suporte áudio;

- comestível: por exemplo, poema feito de biscoitos.

Nota: sugere-se a visualização de exemplos de poesia experimental, particularmente a poesia animada por computador.

(in P8 Português – 8.º Ano, Ana Santiago e Sofia Paixão. Lisboa, Texto Editora, 2012)




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sábado, 14 de maio de 2016

O guardador de rebanhos, Alberto Caeiro



Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr-do-sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes,
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr-do-sol
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minha ideias,
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa.
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer coisa natural –
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos (poema I)



Audiopoema: poema dito por Luís Gaspar (Estúdio Raposa, http://www.estudioraposa.com/poetas/alberto_caeiro_guardador_sm.mp3, 2013-10-14)




Alex Howitt


Logo no começo do poema “O Guardador de Rebanhos” se declara pastor por metáfora (aqui desponta o “poeta bucólico de espécie complicada” que Pessoa, segundo a carta a Casais Monteiro, quis inventar para pregar uma partida a Sá-Carneiro). De pastor tem o deambulismo, o andar constantemente e sem destino, absorvido pelo espetáculo da inexaurível variedade das coisas: “Minha alma é como um pastor, / Conhece o vento e o sol / E anda pela mão das Estações / A seguir e a olhar.” Anda a seguir, passivamente, como espírito concentrado numa atividade suprema: olhar. Os seus pensamentos não passam de sensações. Vive feliz como os rios e as plantas, gostosamente integrado nas leis do Universo. Não havendo para ele passado nem futuro, compreende-se que duvide do próprio eu. O retrato de Campos, uma vez mais, coincide com este modelo: limita-se a existir, tendo nos lábios o sorriso “que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos agradam – flores, campos largos, águas com sol -, um sorriso de existir, e não de nos falar”. Às vezes o seu misticismo naturalista leva-o a desejar dispersar-se, a desejar transformar-se num rebanho, “Para andar espalhado por toda a encosta / A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo”. Ou então deita-se na erva (consta da “biografia” que vive no campo, com uma tia velha, numa aurea mediocritas horaciana) e o seu corpo “pertence inteiramente ao exterior”, sente a frescura cheirosa da terra, só ouve ruídos indistintos, ficou-lhe apenas “um resto de vida”.

Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa, Ocidente, 1949 (1.ª ed.).


Um dos documentos mais interessantes do espólio de Fernando Pessoa (1888-1935) é sem dúvida o manuscrito de O Guardador de Rebanhos, autógrafo assinado por Fernando Pessoa e Alberto Caeiro, um dos heterónimos do poeta. Talvez não seja a mais importante peça do espólio, mas, como diz Ivo Castro no prefácio à edição deste texto, "por servir de sede completa a um dos seus grandes ciclos de poemas, por pôr em causa a versão do próprio Pessoa sobre a génese dos heterónimos, por fornecer amplos meios de corrigir o texto-vulgata de O Guardador de Rebanhos, por documentar reveladoramente os métodos de trabalho e de criação textual do poeta e, finalmente, por se ter conservado na obscuridade nos últimos quarenta anos, desconhecido do público e da maioria dos pessoanos, - por esses motivos todos o presente manuscrito [...] merecerá sem dificuldade ser considerado uma das joias da coroa".
Na verdade, este manuscrito parece à primeira vista confirmar esse "dia triunfal" a que se refere Pessoa na famosa carta a Casais Monteiro (13 de Janeiro de 1935) sobre a génese de O Guardador de Rebanhos e do seu heterónimo Alberto Caeiro:
"Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título - 'O Guardador de Rebanhos'. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive."
O Guardador é um ciclo de 49 poemas, que foi publicado na íntegra pela primeira vez em 1946, no volume intitulado Obras Completas de Fernando Pessoa. III. Poemas de Alberto Caeiro (Lisboa, Ática, 1946). O presente manuscrito inclui estes 49 poemas, escritos no mesmo tipo de papel, com o mesmo tipo de instrumento de escrita e a mesma caligrafia. Esta "unidade de escrita, de local e de tempo de conceção" parecem sugerir que este ciclo de poemas foi escrito de um jato e "em êxtase". Mas uma leitura atenta do manuscrito permite mostrar que assim não é.
Em primeiro lugar, a letra caligráfica, muito igual e desenhada, não parece ser compatível com uma escrita inspirada e veloz. Em segundo lugar, em vez de um, temos vários instrumentos de escrita: foram utilizadas quatro canetas diferentes no corpo do próprio texto. E, por último, o grande número de emendas, feitas em diversos momentos, e utilizando sete materiais diferentes, desmentem "a suposição de ter o Guardador nascido com o texto em estado definitivo".
A encenação desse "dia triunfal" é ainda desmentida pelas várias dezenas de rascunhos e cópias intermédias conservadas no Espólio da BN. Estes documentos mostram que no processo de escrita do Guardador houve pelo menos três fases distintas: uma fase de rascunhos (versões existentes no espólio), uma fase de passagem a limpo (o presente manuscrito) e uma fase posterior de emendas (presentes neste manuscrito).
Outro aspeto a salientar diz respeito à datação. No final do manuscrito surge a data "1911-1912", com a mesma caneta utilizada na assinatura "Alberto Caeiro". No entanto, alguns poemas estão datados no final a tinta vermelha, a mesma tinta que é usada na assinatura "Fernando Pessoa", que vem a seguir à do heterónimo. Estas datas (entre Março e Maio de 1914) colocadas posteriormente no final dos poemas, parecendo ser as ficcionadas (a primeira que surge é a do famoso "dia triunfal"), são provavelmente as que mais se aproximam da realidade, se tivermos em conta as datas dos rascunhos existentes no espólio, de Março a Maio de 1914, embora algumas não coincidam. E se não coincidem, surge uma nova dúvida: serão também inventadas as datas dos rascunhos? Provavelmente não, mas em Pessoa nem sempre é fácil distinguir ficção de realidade.
O interesse da divulgação deste documento reside ainda no facto de, tendo sido ele a fonte do texto publicado pela Ática (para os poemas não publicados em vida), permitir ao leitor o confronto entre o texto publicado e o original que lhe serviu de base. A Ática optou pela lição inicial e não pela versão final, que é considerada a lição mais autorizada por ter sido a única que o autor não repudiou, embora, na verdade, nunca se possa vir a saber se a repudiaria mais tarde. Mas um texto poético é sempre um texto aberto, e ao editor cabe apenas a obrigação de respeitar a última vontade do autor.
Manuela Vasconcelos
BIBLIOGRAFIA
Castro, Ivo (1981). "Para o texto de 'O Guardador de Rebanhos'". Sep. das Actas do Colóquio 'Critique Textuelle Portugaise' (Paris, 20-24 Out. 1981). Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, pp. 319-328.
Castro, Ivo (1982). "O corpus de 'O Guardador de Rebanhos' depositado na Biblioteca Nacional". Sep. da Revista da Biblioteca Nacional, 2 (1), 1982, pp. 47-61.
Pessoa, Fernando (1986). O manuscrito de O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro. Edição fac-similada. Apresentação e texto crítico de Ivo Castro. Lisboa: D. Quixote, 1986.
Pessoa, Fernando (1946). Poemas de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática, 1946 (Obras Completas de Fernando Pessoa, III).



Alex Howitt:











 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 

                         

segunda-feira, 9 de maio de 2016

ERROS MEUS, MÁ FORTUNA, AMOR ARDENTE (Camões)


Marta Madureira (2012)


Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.
 
Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.
 
Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa [a] que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.
 
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro génio de vinganças!

Luís de Camões, Rimas, texto estabelecido, revisto e prefaciado
 por Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 2005, p.170.

Fortuna – destino; se conjuraram – conspiraram; sobejaram – bastaram; discurso – decurso, percurso; mal fundadas – infundadas; duro génio – destino cruel, insaciável.

Linhas de leitura:
  • Estamos perante um soneto em verso decassilábico heroico, com rima interpolada e emparelhada nas quadras e interpolada nos tercetos, segundo o esquema rimático ABBA / ABBA / CDE / CDE, sendo de assinalar o ritmo ternário do 1.º verso.
  • Marcas de um discurso autobiográfico: uso da 1.ª pessoa do singular nos determinantes, pronomes e formas verbais (por exemplo, meus, minha, mim, passei, tenho, me, Errei, minhas, vi, meu); as referências ao percurso de vida («Errei todo o discurso de meus anos»).
  • Neste relato autobiográfico, o sujeito poético atribui as causas da sua perdição aos erros que cometeu, ao seu destino infeliz e ao amor intenso, sendo que o amor, por si só, seria suficiente para a sua perdição.
  • Os três termos dados no primeiro verso são desenvolvidos nos versos seguintes.
  • As expressões «Tudo errei» (2.ª quadra) e «Errei todo o discurso de meus anos» (1.º terceto) sintetizam a forma como o sujeito poético olha para a sua vida passada.
  • Na 2.ª quadra, o sujeito poético apresenta as consequências do seu passado de sofrimento no momento presente, a saber: a dor e o sofrimento passados foram tão intensos que impedem, no presente, o simples desejo de felicidade.
  • No 1.º terceto, o sujeito poético identifica-se como o verdadeiro culpado por tudo o que passou, porque considera que os seus erros impediram-no de ter outro destino traçado.
  • O amor, que já tinha sido referido na 1.ª quadra, reaparece no último terceto associado a «breves enganos» (i.e., as desilusões amorosas que terá sofrido).
  • Processos usados na construção do sentido disfórico do soneto: em primeiro lugar, o léxico selecionado pelo autor é fortemente indicativo de disforia: «em minha perdição»; «a grande dor»; «as magoadas iras»; «errei». O uso do pronome indefinido «tudo» («tudo passei») e do quantificador «todo» («Errei todo o discurso de meus anos») introduzem uma nota de extremismo no balanço negativo, nota que aliás se repete no verso «De amor não vi senão breves enganos». A acumulação no primeiro verso do soneto pode também considerar-se como um processo de construir a disforia já que a junção das três causas negativas poderá constituir um meio de as intensificar.
  • A interjeição «Oh!» acompanhada de uma frase exclamativa e de tipo imperativo estão ao serviço da expressão de um desejo que o sujeito poético gostaria de ver realizado: o de que as vinganças do destino acabem. Assim, os sentimentos presentes na interjeição que introduz os dois últimos versos são os de amargura, alguma revolta e necessidade de pôr fim ao sofrimento do próprio sujeito poético.

Questionários sobre a leitura do poema “Erros meus, má fortuna, amor ardente”.

 QUESTIONÁRIO 1

1. Explicite de que modo os «erros», a «fortuna» e o «amor» contribuíram para a «perdição» do sujeito poético, tendo em conta a primeira estrofe.

 

2. Explique as relações estabelecidas, na segunda estrofe, entre o passado e o presente.

 

3. No primeiro terceto, o sujeito poético assume-se como responsável pelos infortúnios que sofreu.

Justifique esta afirmação, referindo dois aspetos relevantes.

 

4. Interprete os dois versos finais do soneto.

 

 

Cenário de respostas:

1. Os «erros», a «fortuna» e o «amor» contribuíram para a «perdição» do sujeito poético do modo seguinte:

  • ditaram a inevitabilidade do seu sofrimento, numa ação convergente («em minha perdição se conjuraram» – v. 2);

 

  • levaram-no a sentir-se vítima da conjugação de três fatores nefastos: a «má fortuna» (v. 1), o «amor ardente» (v. 1) e os «Erros» (v. 1) que cometeu;

 

  • deram origem a um castigo excessivo, pois o amor, por si só, teria causado sofrimento bastante («que para mim bastava o amor somente» – v. 4).

 

2. As relações estabelecidas, na segunda estrofe, entre o passado e o presente podem ser explicadas a partir dos aspetos seguintes:

  • o presente conserva a memória do passado, marcada pela experiência do sofrimento, a tal ponto que a dor outrora sentida ainda persiste («tenho tão presente / a grande dor das cousas que passaram» – vv. 5-6);

 

  • a experiência do passado representa uma aprendizagem que condiciona a vivência do presente, levando o sujeito poético a abdicar de toda a esperança de felicidade («a não querer já nunca ser contente» – v. 8).

 

3. No primeiro terceto, o sujeito poético assume-se como responsável pelos infortúnios que sofreu:

  • por ter cometido «erros» que marcaram profundamente a sua vida («Errei todo o discurso de meus anos» – v. 9);

 

  • por ter dado azo a que a «Fortuna» (v. 10) o punisse;

 

  • por ter confiado em «mal fundadas esperanças» (v. 11).

 

4. Nos dois versos finais do soneto, o sujeito poético:

  • sublinha o sofrimento e a angústia, através da interjeição e do tom exclamativo;

 

  • expressa a mágoa provocada pelos infortúnios que marcaram a sua vida;

 

  • anseia pelo fim das provações por que tem passado;

 

  • dirige uma súplica a quem tivesse o poder de saciar o seu «duro génio de vinganças» (v. 14).

 

Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa | Prova 734 | 1.ª Fase | Ensino Secundário | 2022 |11.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 27-B/2022, de 23 de março)

Prova: https://iave.pt/wp-content/uploads/2022/06/EX-LitP734-F1-2022_net.pdf

Critérios de correção: https://iave.pt/wp-content/uploads/2022/07/EX-LitP734-F1-2022-CC-VD_net.pdf

 

QUESTIONÁRIO 2

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 337 – Formação geral 11.º ano - Prova escrita de Português, 1997, 1.ª fase, 2.ª chamada)




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(Última atualização: 2022-07-26)