Por: Isaac Ramos
Melo e Castro, no começo da década de 60,
no século XX, foi quem colocou a poesia experimental portuguesa em pé. Ernesto
Manuel de Melo e Castro é um poeta que tem uma postura/atitude de vanguarda em
estado de permanência. Nasceu em 1932, em Covilhã, Portugal. Publicou seu
primeiro livro Sismo (1952) quando tinha 20 anos de idade e, no ano
seguinte, Salmos em (1953). No entanto, Ideogramas (1962) é
considerada a primeira obra concretista publicada em Portugal. Esta contribuiu
significativamente para alinhá-lo aos demais poetas que trabalhavam com
visualidade em Portugal, no Brasil e demais países do mundo ocidental. Esse
texto tecerá algumas considerações de crítica e análise literária de trabalhos
desse período e de outros posteriores.
Durante quarenta e cinco anos Melo e Castro
exerceu a profissão de engenheiro têxtil paralelamente a de escritor,
dedicando-se também ao ensino tecnológico. Sua prática profissional pode ter
contribuído para o afinamento do olhar e de seu fazer poético. Dentre as
antologias de poesia experimental, destaco Trans(a)parências, (1989),
livro que ganhou o grande prêmio de poesia Inaset – Inapa de 1990, em Portugal
e Antologia efêmera: poemas 1950-2000, publicada pela Nova Aguilar, no
ano de 2000.
Melo e Castro possui mais de 30 títulos de
poesia e 17 de ensaios de crítica e teoria literária. É pioneiro em videopoesia
(Rodalume, 1968). Entre 1985 e 1989 desenvolveu na Universidade Aberta
de Lisboa um projeto de criação de videopoesia denominado Signagens. Há
alguns anos vem produzindo infopoesia e realizando seminários de discussão e
produção de infopoesia. A invenção e radicalidade podem ser consideradas como
marca estética desse autor.
Sobre o autor, considerando artigos de
livros, revistas e jornais, há mais de 75 textos, conforme informação postada no
site www.po-ex.net, o mais completo e documentado site português
sobre poesia experimental, que possui farto material para pesquisadores,
simpatizantes e leigos, com ilustrações a partir de originais. A
responsabilidade fica a cargo de uma grande equipe da UFP (Universidade
Fernando Pessoa), de Portugal, coordenada por Rui Torres, sete professores,
três bolsistas, dois consultores (um deles o próprio Melo e Castro, em 2005;
outro, o brasileiro Sergio Bairon, em 2006) e muitos amigos do projeto. Da mesma
forma que no Brasil, arquivos digitais disponibilizados na internet vêm suprir
a falta de bibliografia no mercado e nas bibliotecas.
É como poeta Melo e Castro permanece. O
autor costuma afirmar que é o pioneiro em videopoesia, em Portugal. Ele
declarou certa vez que o sucesso de sua primeira obra concreta, Ideogramas,
de difícil assimilação, teria sido facilitada pela publicação em Portugal de
uma compilação da poesia concreta do grupo paulista Noigrandes,
organizada pela embaixada do Brasil em Lisboa, no ano de 1962.
Aponta dois acontecimentos que antecederam
o aparecimento em Portugal de manifestações originais da poesia experimental.
Primeiro, seria a rápida visita a Lisboa de Décio Pignatari em 1956, segundo
ele sem resultados significativos, após o histórico encontro com Gomringer42;
segundo, a publicação da coletânea há pouco referida. Conforme Castro “em
Portugal, nunca houve, no entanto um grupo organizado de poetas concretos,
tendo a Poesia Concreta interessado a determinados poetas em determinada
altura, como via de alargamento da sua pesquisa morfossemântica”43, afirma no
capitulo intitulado “A poesia experimental portuguesa” (CASTRO & HATHERLY:
1981, p.9). Para entendermos melhor a trajetória da poesia experimental
portuguesa é fundamental ler essa obra. É importante frisar que não se trata de
uma compilação de manifestos como foi o livro Teoria da poesia concreta:
textos críticos e manifestos 1950-1960, organizado pelos concretistas
paulistas do Noigandres.
Para Castro (1993, p.41), “moda e consumo
são duas facetas fundamentais da vida atual” e a razão por que um livro
insólito como Ideogramas tenha encontrado editor estaria estruturalmente
justificada e corresponderia ao esnobismo mental das elites consumidoras de
obras de arte de Portugal. Mesmo diante dessa situação um tanto insólita, do
ponto de vista estético, o autor reconhece que depois de ter vivido
experiências de criação poética com os livros Entre o som e o sul (1960),
Queda livre (1961) e Mudo mudando (1962), teria adquirido
“uma técnica espacial do verso, de uma sintaxe não-discursiva e de uma dimensão
plástica da imagem” (op.cit., p.42). E, curiosamente, alega que somente em
1961, teve conhecimento profundo e complexo sobre os trabalhos dos irmãos
Campos, Pedro Xisto, Décio Pignatari e Eugen Gomringer. Após conhecê-los,
afirmou ter sentido uma enorme alegria e que teria encontrado o que ele próprio
desejava e sentia que era urgente se realizar. Talvez isso ajude a explicar os
diversos diálogos sintático-visuais dos seus ideogramas com trabalhos de
Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.
Mesmo tendo chamado seus “Ideogramas” de
poesia concreta, Castro – juntamente com seus contemporâneos – logo adotaria a
terminologia poesia experimental para nominar o que produziam. Cabe esclarecer
que a realidade política em Portugal era bem diferente da vivida no Brasil. Era
o tempo da ditadura salazarista e os poetas portugueses encontraram outros
temas para compor seus trajetos. Na época em que participaram como
colaboradores da revista Poesia Experimental (1964), esses poetas não
eram de todo jovens. Castro tinha 32 anos; Hatherly, 35; Aragão (editor
juntamente com Herberto Helder), 39 e Sallete, 42. A maioria dos participantes
tinha publicado mais de um livro. No entanto, essas publicações não possuíam,
necessariamente, uma postura estética assumida como poética visual. A revista
em si teve dois números intercalados por dois anos, cujo nome, que denominava
os adeptos dessa poética, foi dado pelos editores Aragão e Hélder.
Castro entende que pela primeira vez se
propôs no seu país uma posição ética de recusa e de pesquisa, que em si própria
seria um meio de destruição do obsoleto, uma desmistificação da mentira, uma
abertura metodológica para a produção criativa. Amparado nesse primeiro
princípio, o segundo seria o de que essa referida produção se projetaria no
futuro e encontraria o modo certo para agir no momento exato, quando o povo e a
língua dela necessitassem 44 (CASTRO, 1981, p. 11).
Nos seis primeiros livros de Melo e Castro,
não ocorreram momentos de ousadia estética ou radicalidade na mesma proporção
em que ocorre em Ideogramas. Para entendermos um pouco mais esses
movimentos, é importante conhecermos as origens da chamada poesia concreta e
para podermos remeter aos diversos tipos de poemas visuais da atualidade.
Explicamos: todo poema concreto pode ser considerado visual, mas nem todo poema
visual é concreto. Partindo da expressão utilizada por Augusto de Campos,
verbivocovisual (verbal + voz + visual) e empregada largamente pelos
concretistas de Noigandres, pode-se dizer que não é tarefa fácil entender
as relações paradigmáticas e mesmo sintagmáticas do referido movimento.
Melo e Castro partiu da palavra poética
para chegar à visualidade. Foi um percurso consciente, experimentador e,
sobretudo, revolucionário. Isso pode ser constatado nos casos que virão a
seguir.
E. M. Castro, “ver”, Ideogramas,1962 |
O primeiro poema de Ideogramas (1962)
é constituído, morfologicamente, por três verbos (“ver”, “ler” e “ter”) e dois
advérbios: “não” em três estrofes (negação) e “sim” em uma estrofe (afirmação).
Esses últimos estão dispostos de forma isolada de forma a envolver cada grupo
de três versos. A leitura discursiva dele pode ser feita na horizontal ou na
vertical. Na vertical pode ser lido da seguinte forma: ver ler ter ler ver ser
ver ler ser ler ver ter. Dentre os verbos dois têm relação com a visão (“ver” e
“ler”) e dois com a existência (“ser” e “ter”). Trata-se do dilema dicotômico
da existência. Esse contrassenso é fruto de uma cadeia de paradoxos presente em
grande parte de sua obra.
O segundo caso parte de um poema
discursivo: “círculo aberto ritmo liberto”.
E. M. Castro, “Círculo aberto”, Ideogramas, 1962 |
O poema seguinte é “Pêndulo”. Trata-se de
um caligrama, segundo a concepção Apollinaire, constituído pelas letras que
compõe a palavra: P, Ê, N, D, U, L, O. A primeira letra aparece 8 vezes, a
segunda 6, depois 5, 4, 3, 2 e 1, respectivamente. Temos uma imagem diante do
olhar que pode até hipnotizar.
E. M. Castro, “Pêndulo”, Ideogramas, 1962 |
E. M. Castro, “Tontura”, Ideogramas, 1962 |
Outro
poema é “Tontura”. A palavra título aparece quatro vezes e quatro círculos concêntricos, totalizando dezasseis vezes.
Obtém-se novamente uma imagem circular. A tontura é sentida, pode ser provocada
ou pode vir como estado poético derivado da palavra matriz. Pode-se dizer,
inclusive, em combinações seriais ou matemáticas. Melo e Castro utiliza esse
recurso em diversos momentos na sua obra. Não se configura necessariamente como
a poesia matemática dos concretistas brasileiros, todavia reflete um
conhecimento da álgebra, geometria composicional e outros recursos advindos da
matemática e da estatística. “Tontura” é um libelo aos sentidos do leitor.
Mesmo quem não seja um leitor iniciado em poema visual pode muito bem atestar a
sensação estética do texto de Melo e Castro.
Em situação semântica semelhante, o poema
“Hipnotismo”.
E. M. Castro, “Hipnotismo”, Ideogramas, 1962 |
Formado pela escrita em ordem direta e
inversa, traz em destaque a letra “O”, a qual aparece duas vezes. Essa vogal
aparece ampliada no corpo poético como se fossem duas lentes ou dois olhos a
observar o texto e por que não dizer o próprio leitor. As duas direções letrais
e poéticas cruzam-se com a haste da vogal “O” que sustentam o corpo do poema e
da ontologia do ser. Naturalmente, vem-me a imagem plasmática discursiva do
dilema de Hamlet “Ser ou não ser eis a questão”. Shakespeare ficaria lisonjeado
com a homenagem. Simbolicamente, a imagem das letras em um sentido e a outra em
sentido reverso, incluindo as duas vogais “O”, lembram o símbolo do infinito: ∞.
Um poema interessante é chamado de
“Combinatória existencial”, retirado do livro Versus – in – versus (1968),
contido na Antologia efêmera. Ele traz uma matriz sígnica, composta
pelas letras A, B, C, D, F, G, E, H, e uma matriz verbal: “A vida mata-me. O
amor imola-me. A noite ofusca-me. A razão desola-me”. A primeira série
combinatória das letras se apresenta em quatro quartetos tendo doze letras por
linha as quais se apresentam de três em três, como: “ABA ADA AFA AHA”. Ao todo
há quarenta e oito letras por estrofe e cento e noventa e duas no total da
primeira série combinatória.
Quanto ao desenvolvimento verbal traz nomes
(“vida”, “amor”, “noite”, “razão”) e verbos (“mata”, “imola”, “ofusca”,
“desola”). O eixo sintagmático do poema é construído por nome + verbo + nome.
Essa estrutura sintática se ergue em cadeias semânticas que se multiplicam
através de séries combinatórias ou combinações matemáticas. O recurso
estilístico predominante é o paradoxo, próprio de Melo e Castro que, a exemplo
do paulista Haroldo de Campos e o mato-grossense Silva Freire, pode ser chamado
de neobarroco. Na (des)montagem do poema temos dezasseis quartetos com três
palavras-chave por verso, conforme apresentado no eixo sintagmático. A
apresentação do eixo paradigmático pode ser ampliada além do que veio no texto
através do uso de séries combinatórias. Por exemplo:
A vida mata-me a vida
A vida mata-me o amor
A vida mata-me a noite
A vida mata-me a razão
O amor mata-me a vida
O amor mata-me o amor
O amor mata-me a noite
O amor mata-me a razão
Igualmente bem interessante é “A revolta do
texto” do livro As palavras só-lidas (1979). No eixo sintagmático temos
um sujeito e um predicativo do sujeito. Trata-se de um poema item ou poema
caso. Morfologicamente temos artigo + substantivo + adjetivo + verbo de ligação
+ adjetivo. Sintaticamente temos: adjunto ADN + suj +adj ADN + pred. nominal +
predicativo. do sujeito. Trata-se de anáforas metafóricas no exercício da
metalinguagem. Predominam a função poética e a metalinguística.
A revolta texto
O texto revolta: é revolto, é revoluteante, é revoltoso, é revoltado, é
revoltante, é revolitado, é revolvido.
O texto ruído: é rugido, é ruim, é rubídio, é ruivo, é ruína, é rúptil, é
rumoroso, é rútilo, é ruptura, é rumorejo, é rugoso, é ruço.
O texto uso: é urze, é usura, é urubu, é urso, é ustão, é usurpador, é
útero, é utopia, é útil, é urro, é uva, é uzifuro.
O texto muro: é música, é mútuo, é musa, é murro, é múmia, é mundial, é
múnus, é murcho, é mural, é mutilado, é museu, é mutação, é mortal.
O texto vivo: é vário, é vazio, é vacina, é vaga, é vagaroso, é vagina, é
vaivém, é vapor, é vândalo, é válvula é válido, é valete, é vaia, é vagem, é
varíola, é varapau.
O texto pau: é pauta, é pávido, é pavio, é paz, é patim, é patente, é
pastoril, é parente, é pássaro, é pai, é pasquim, é passageiro, é passível.
O texto impossível: é tórax, é traço, é três.
O texto volta: é volátil, é voltaico, é vômito, é voluta, é vogal, é volúpia,
é volume, é vontade, é vulva, é vulnerável, é voz, é voraz, é revolta.
O poeta se utiliza de um amplo leque de
possibilidades semânticas e sistêmicas. Anaforicamente temos a palavra texto
que se complementa com uma série de adjetivos (“revolta”, “ruído”, “uso”,
“muro”, “vivo”, “pau”, “impossível” e “volta”) e vai (circuns)crevendo a partir
da primeira letra e adotando combinações rítmicas e sonoras. O texto poético
adquire uma velocidade inaudita. E o poeta vai tecendo sua teia lírica que
encorpa texto, vomita e volita significados inusuais. Em interessante jogo de
palavras o poema mostra suas faces inter e intratextuais. Há uma série de
reflexões contidas em cada “discurso poético”. O texto se renova e encadeia
ressemantizações.
Nessa breve mostra de trabalhos do poeta
português Melo e Castro, procuramos mostrar um pouco de sua poética que
contempla não apenas as vanguardas europeias e brasileiras como imprime uma
poética singular. O autor já declarou, por mais de uma vez, que não tem
preferência por poemas visuais ou discursivos. Isso facilita o trabalho do
leitor e do crítico, porque não é preciso ficar preso a discussões estéreis
sobre se o que está sendo lido e/ou visto é poema ou não. Melhor é saber
desfrutar da leitura de um texto literário e, sobretudo, de um grande poeta
contemporâneo.
REFERÊNCIAS
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI,
Décio. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos
1950-1960. 4. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2006.
CASTRO, E. M. de Melo e. Livro de releituras e
poiética contemporânea. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2008.
(Coleção Obras em Dobras).
_____. Antologia efêmera [poemas 1950-2000]. Rio
de Janeiro: Lacerda, 2000. _____. O fim visual do século XX & outros
temas críticos. GOTLIB, Nádia (org.). São Paulo: Edusp, 1993.
_____ & HATHERLY, Ana. PO-EX: textos
teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa. Lisboa: Moraes
Editora, 1981.
RAMOS, Isaac Newton Almeida. Vanguardas
poéticas em permanência: a revalidação de Wlademir Dias-Pino e Silva
Freire. Tese (doutorado em Letras) – Universidade de São Paulo – 2011.
Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-04052012-090630/pt-br.php. Acesso em: 17 dez. 2013.
POESIA EXPERIMENTAL. Disponível em http://www.po-ex.net/
. Acesso em:
17 dez. 2013.
_____________________
NOTAS:
42 Poeta suiço-boliviano que foi responsável por reunir artistas
plásticos e poetas em vários países da Europa, sendo o principal interlocutor
dos participantes do grupo Noigrandes.
43 Esse texto
encontra-se em PO-EX: textos teóricos e documentos da poesia experimental
portuguesa. Moraes Editores: Portugal, 1981.
44 Na opinião do poeta e crítico isso teria
acontecido logo após o 25 de abril de 1974, com a explosão visual que teria
invadido cidades, vilas, aldeias e estradas de Portugal.
FONTE:
“A Poesia Experimental Portuguesa
de Melo e Castro”, Isaac Ramos (Departamento de Letras de Alto Araguaia
UNEMAT – Universidade Estadual de Mato Grosso). Congresso Internacional da
Associação Internacional de Professores de Literatura Portuguesa (24.: 2014:
Campo Grande, MS). Anais do 24º Congresso Internacional de Professores de
Literatura Portuguesa, 20 a 25 de outubro de 2013, Campo Grande/MS/Brasil [recurso eletrônico] / Santos, Rosana Cristina Zanelatto...
[et al.], organizadores. – Campo Grande: Ed. UFMS, 2014.
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- “O homem-mãe” [de M. Cesariny de Vasconcelos], Folha de Poesia, José Carreiro, 2016/05/25
CARREIRO, José. “A Poesia Experimental Portuguesa de Melo e Castro”. Portugal, Folha de Poesia, 04-04-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/04/a-poesia-experimental-portuguesa-de.html
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