ISTO
Dizem que finjo
ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota
explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942
(15ª ed. 1995). - 236. 1ª publ. in Presença,
n.º 38. Coimbra: abril de 1933. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/4250
Linhas
de leitura do poema “Isto”, de Fernando Pessoa
Assunto: teoria da criação poética.
Quanto
à forma do
poema (aspectos fónicos) repare-se no facto de o poeta usar o verso curto (seis
sílabas) num poema de fundo pesado, em que se expõe uma teoria da criação
poética. Para que o discurso lógico, apesar disso, decorra mais livremente,
aparecem os casos de transporte: vv. 1.º e 2.º, 3.º e 4.º, 7.º e 8.º, 8.º e 9.º,
11.º e 12.º.
O
poema surge na sequência do «Autopsicografia» e parece uma resposta a possíveis
más interpretações daquele.
1.ª estrofe
Notar o tom
depreciativo do início do poema e o tom de convicção total com o uso do
advérbio «Não», seguido de ponto final. Assim, o verso «Dizem que finjo ou
minto» tem aqui o sentido que lhe atribuem os que dizem que o poeta finge, isto
é, «não sincero», «falta à verdade», como se depreende da própria disjuntiva
«finjo ou minto». Este sentido é depreciativo e corresponde ao uso popular
verificável, por exemplo, na expressão «pessoa fingida», isto é, falha de
verdade. Por isso, o poeta se apressa a negar esse sentido ao seu fingimento:
«Eu simplesmente sinto com a imaginação, / Não uso o coração».
Os
versos 3-5 são como que a «tese» deste poema: o fingimento poético é a síntese
da sensação com a imaginação, destacando-se esta, porque intelectual.
Notar
a subjectividade manifestada pelo uso da 1º pessoa verbal, ausente de
«Autopsicografia». (Talvez se deva a que aqui Pessoa se apresente como o poeta
intelectual por excelência.)
2.ª estrofe
Esta
parte constitui uma confirmação do conteúdo da 1ª estrofe, baseada na
experiência vivida do poeta.
A
2.ª estrofe apresenta a fundamentação do uso da imaginação: a realidade onde
mergulha o poeta é apenas a aparência ou o terraço (fronteira) que encobre
outra coisa: as ideias, a obra poética; volta a acentuar-se o processo do
fingimento poético, mas neste texto a sensação e imaginação processam-se num
único momento – Enquanto na «Autopsicografia» o poeta distinguia dois momentos
(o da sensação e o da imaginação), aqui tudo se processa num só momento: as
realidades (belas) subjacentes ao «terraço» (aparências) são vistas por ele,
poeta-Pessoa, automática e simultaneamente.
É
evidente que paira aqui a doutrina platónica da reminiscência: olhar para as
aparências (as coisas deste mundo) e ver (pressentir, intuir) imediatamente as
realidades puras de um mundo mais alto (profundo).
Conceito oculto Ou mesmo platónico de
que «Essa coisa é que é
linda» (mundo[1]
que fascina o poeta) |
---> |
o mundo real[2]
(«terraço») é reflexo de um mundo ideal |
[1] Mundo das ideias.
[2] Mundo sensível.
Constata-se aqui
também a grande emoção (de natureza intelectual) que o poeta punha naquilo que
ele considerava o fulcro, o âmago da poesia: «Essa coisa é que é linda».
A
comparação que engloba os três primeiros versos constitui o cerne do poema,
pois é o momento em que o autor define o universo em que se move, para, logo de
seguida, ficarmos a saber o que procura:
Tudo o que sonho ou passo
O que me falha ou finda (1.º termo)
É como que (partícula comparativa) um terraço (2.º
termo)
A
comparação centrada em «terraço» é admiravelmente expressiva da fronteira,
difícil de ultrapassar, entre o mundo sensível e o mundo intelectual. O
verdadeiro poeta (neste caso, Pessoa) é o privilegiado que é capaz de
ultrapassar essa fronteira, para usufruir da beleza que se encontra para além
dela.
Os
dois primeiros versos da 2.ª estrofe referem-se às contingências da vida do
poeta; contingências, porque nenhum dos quatro verbos empregues pelo
poeta («sonho», «passo», «falha», «finda»), é propriamente activo, ficando-nos
a impressão de que o que sucede ao poeta é marcado pelo destino. Esta ideia é
sugerida sobretudo pelo verso «o que me falha ou finda», em que o poeta não figura
como sujeito das acções, mas como destinatário marcado pelo destino (o que se
vê claramente na forma pronominal «me»). O mesmo sugere a forma verbal «passo»,
que o poeta poderia substituir por «faço», mas intencionalmente não quis. É
que, enquanto «faço» apontaria par algo realizado pelo poeta, a forma «passo»
aponta para algo que lhe sucede por fatalidade. Quer isto dizer que o poeta só
por contingência se achava entre as coisas contingentes deste mundo (no mundo
das aparências), pois o seu lugar, como poeta, situa-se para lá dessas coisas,
para lá do «terraço».
Recuperação
para a poesia de uma palavra tão prosaica como «coisa», utilizada em versos
consecutivos, para designar algo que está muito para além do universo sensível
a que, normalmente, se refere. Fê-la, assim, expressiva daquilo que é
indefinível, que fica para além do «terraço», na região onde se gera a poesia.
3ª estrofe
O
poeta, a jeito de conclusão («Por isso...»), afirma que escreve «em meio do que
não está ao pé». O que está ao pé são as sensações, é o mundo das aparências; o
«que não está ao pé» é o mundo da inteligência, o mundo das realidades puras,
da imaginação que transforma, que eleva as sensações ao nível da literatura, ao
nível da poesia. A arte poética nasce da abstracção do mundo sensível.
Só quando o poeta é «livre do seu enleio» (do mundo sensível, do coração) é que
pode dar-se o milagre da poesia. Só com os super-poetas, como ele, Fernando
Pessoa, é que o milagre se realiza plenamente, porque não usa o coração, porque
está «livre do seu enleio» e «sério do que não é» (entenda-se «sério» por
liberto, isto é, livre do mundo sensível, das aparências). O verso «Sério do
que não é» está aqui para reiterar a ideia do anterior, «livre do meu enleio».
O poeta considera «sério» quem, como ele, é capaz de abstrair do acidental (do
mundo sensível), para se concentrar no mundo das essências (no mundo
intelectual).
O
poeta fecha o poema com uma interrogação retórica e uma exclamação de sentido
irónico-depreciativo: «Sentir?»
Note-se
como esta interrogação, em conjunto com a exclamação «Sinta quem lê!» é uma
resposta irónica ao «Dizem que finjo ou minto» do princípio do poema.
Devemos
notar a diferença de significado entre o verbo sentir: na 1.ª estrofe («sinto»)
refere-se à emoção intelectual e não às sensações; na última estrofe («sentir»,
«sinta») há uma conotação pejorativa que não existe na 1ª estrofe, isto é,
refere-se, agora, às sensações, próprias das pessoas que dizem que ele finge ou
mente.
Bibliografia: Fernando Pessoa e heterónimos – o
texto em análise, A. A. Borregana, Cacém, Texto Ed., 1995; Aula Viva
Português 12.º Ano, João Guerra e José Vieira, Porto Ed., 1999; Introdução
à Leitura de Fernando Pessoa e heterónimos, Avelino Soares Cabral, Sebenta
Editora.
Comentário de texto
Faça um comentário global do poema “Isto”,
sem nunca perder de vista a sua contextualização na obra.
Deve, entre outros aspetos pertinentes como
os níveis fónico, morfossintático, semântico e estilístico, desenvolver, de
forma integrada, os seguintes:
- assunto;
- divisão do poema em partes e assunto de
cada parte;
- sentido da primeira estrofe;
- explicação da comparação da segunda
estrofe;
- situação a que chega o poeta;
- estrutura formal.
Chave de correção:
Assunto
O fingimento e a criação artística; a
racionalização dos sentimentos (sentir com a imaginação, não usando o coração).
Divisão do poema
- As duas primeiras quintilhas: negação de
que finge ou mente; justificação de que o que faz é a racionalização dos
sentimentos na busca de algo mais belo mas inacessível;
- A última quintilha: argumentação de que
ao escrever se distancia da realidade, intelectualizando os sentimentos e
elaborando uma nova realidade - a arte.
Sentido da 1.a estrofe
- Reconhecimento de que dizem e negação de
que finge ou mente.
- "Sinto com a imaginação/Não uso o
coração." - expressão da intelectualização do sentimento.
Base estrutural da 2.a estrofe
- Comparação: "Tudo o que sonho
ou passo / O que me falha ou finda." (1.° termo da comparação) "
(...) um terraço / sobre outra coisa ainda (2.° termo), ou seja, o mundo real
("terraço") é reflexo de ("sobre outra coisa ainda") um
mundo ideal ("essa coisa é que é linda" - conceito oculto ou
platónico, mundo que fascina o poeta).
Situação a que chega o poeta
- "livre do meu enleio"
(desligado do tema) - há um ato de fingimento de pura elaboração estética e o
leitor que sinta o que ele comunica apesar de não sentir ("Sentir? Sinta
quem lê").
Estrutura formal
- Três quintilhas hexassilábicas,
isomórficas e isométricas, obedecendo ao esquema rimático ababb.
Disponível em: http://www.esa.esaportugues.com/programa/Pessoa/textosFP.htm
(consultado em: 18-01-2003)
Poderá também gostar de:
Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
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