terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Cinismos, Cesário Verde

 


CINISMOS

Eu hei de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.

Hei de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu Calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.

Hei de abrir-lhe o meu intimo sacrário
E desvendar a vida, o mundo, o gozo,1
Como um velho filósofo lendário.

Hei de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei de olhá-la dum modo tão nervoso

Que ela há de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há de chorar, chorar enternecida!

E eu hei de, então, soltar uma risada...

 

Cesário Verde, Lisboa, Diário da Tarde, 12-03-1874

In: Obra Completa de Cesário Verde - 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983 (Coleção Horizonte Poesia, n.º 20)

 

[1] Nota do editor: Na primitiva publicação: «E, desvendar a vida, o mundo, o gozo,».





terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Nunca me atrevo a falar de ti, Zbigniew Herber

 NUNCA DE TI


Nunca me atrevo a falar de ti
vasto céu do meu bairro
nem de vós telhados que detendes as cascatas de ar
belos telhados felpudos cabelos das nossas casas
nem de vós chaminés laboratórios de tristeza
abandonadas pela Lua pescoços esticados
nem de vós janelas abertas-fechadas
que rebentais quando morremos além-mar

Nem sequer consigo descrever a casa
que conhece todas as minhas fugas e regressos
apesar de pequena não sai debaixo das pálpebras fechadas
nada conseguirá devolver-me o cheiro do reposteiro verde
nem o ranger das escadas por onde levo a lamparina acesa
nem a folhagem sobre o portão

Em verdade gostaria de escrever sobre o puxador do portão da casa
sobre o seu toque áspero e rangido amigável
e mesmo sabendo muito sobre ele
repito tão-só uma ladainha de palavras comum cruel

Cabem tantos sentimentos entre dois batimentos cardíacos
tantos objetos podem ser acolhidos entre duas mãos

Não vos admireis que não saibamos descrever o mundo
e que só tratemos as coisas pelos nomes com ternura

 

Zbigniew Herber, Poesia Quase Toda. Cavalo de Ferro, 2024.

Tradução: Teresa Fernandes Swiatkiewicz

 

 

SOBRE O AUTOR

Zbigniew Herbert (Lviv, 1924 – Varsóvia, 1998) foi um poeta e ensaísta polaco, considerado pela crítica uma das figuras mais marcantes da literatura europeia da segunda metade do século XX.

Durante a guerra, participou na resistência armada antinazi. Já na vigência do regime estalinista no seu país, foi diversas vezes impedido de publicar por se recusar obedecer à estética oficial. O seu primeiro livro de poesia, Strun switl (Corda de Luz) data de 1956. Seguiram-se vários outros, incluindo o célebre Pan Cogito (Sr. Cogito), de 1974 (ambos a editar em Portugal).

Considerado um poeta do histórico, do filosófico, do político e, ao mesmo tempo, do individual, Herbert foi igualmente um exímio ensaísta, tendo o volume Um Bárbaro no Jardim, de 1962, ou os ensaios recolhidos em Martwa Natura z wedidlm (Natureza Morta com Brida), de 1993 (ambos editados na Cavalo de Ferro), ajudando a consolidar a sua enorme reputação internacional.

Efetivamente, um crítico do New York Times chegou a afirmar à data: «num mundo justo, Zbigniew Herbert teria há já muito sido galardoado com o Prémio Nobel».

https://www.wook.pt/autor/zbigniew-herbert/1127886/122

 

 

SINOPSE DE POESIA QUASE TODA

Poesia Quase Toda, com seleção a cargo do Prémio Nobel de Literatura J. M. Coetzee e da poeta e tradutora Alissa Valles, contém uma amostra significativa dos nove livros publicados em vida por Zbigniew Herbert, entre 1956 e 1998, e poemas inéditos do seu arquivo pessoal, nunca antes divulgados, constituindo um volume essencial para se conhecer a sua obra poética, uma das mais marcantes do século XX e praticamente inédita em Portugal.

https://www.wook.pt/livro/poesia-quase-toda-zbigniew-herbert/30921435

 

SOBRE A TRADUTORA

A tradutora Teresa Fernandes Swiatkiewicz é uma das mais importantes tradutoras de literatura polaca para língua portuguesa e já traduziu vários livros de Wysława Szymborska, Olga Tokarczuk, Stanisław Lem, entre outros. Venceu o Grande Prémio de Tradução Literária pela adaptação para português de Casa de dia, casa de noite, de Olga Tokarczuk. Em 2020, recebeu uma menção honrosa pela tradução do livro Viagens, também de Olga Tokarczuk. Em 2012 a tradutora foi galardoada pelo Presidente da Polónia com a Cruz de Ouro da Ordem de Mérito.

https://www.camoes.pl/2024/10/21/zbigniew-herbert-em-portugues-no-livro-poesia-quase-toda/

 

CRÍTICAS

Não deixa de surpreender a diversidade de modos como a poética de quatro jovens polacos, contemporâneos entre si - Czeslaw Milosz (Nobel de Literatura em 1980), Tadeusz Róžewicz, Wislawa Szymborska (Nobel de Literatura em 1996) e Zbigniew Herbert -, respondeu aos terríveis acontecimentos que assolaram a Europa, e em particular a Polónia, na primeira metade do século XX. Mas a poesia de Herbert foi outra coisa: desde os primeiros livros, em particular desde o terceiro que, num tom que frequentemente tocou a sátira (e o sarcasmo), envoltos porém num lirismo belo e surpreendentemente quotidiano, recorreu à mitologia greco-romana como exemplo para plasmar a sua visão de mundo, à qual não faltou a voz do icónico Senhor Cogito, o seu alter-ego. É, na minha opinião, uma das maiores, se não a maior voz poética europeia do século XX, à qual não fez falta o prémio maior para se tornar uma das maiores inspirações das gerações seguintes, polaca e não só, que nela se inspiraram e reviam.

João Luís Barreto Guimarães

https://www.wook.pt/livro/poesia-quase-toda-zbigniew-herbert/30921435

 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Paz, Tomaz Kim

 

Óbidos, 2024-09-11 (Fotografia: José Carreiro)

PAZ

Aqui foi a casa:
Alva a toalha e o pão,
O berço além.

Breve a canção:
Bater de asa
O sorriso de mãe.

Veloz a hora:
Agora,
Só o coaxar noturno e certo
Das rãs,
Enche o campo deserto.

 

Tomaz Kim (Lobito, 1915 – Lisboa, 1967)

(Pseudónimo de Joaquim Fernandes Tomaz Monteiro-Grillo)

 

Linhas de leitura do poema:

  • Repara que a estrutura fragmentada do poema (versos curtos e ausência de pontuação) contribui para a transmissão do tema da passagem do tempo/efemeridade da vida.
  • Que significados podem ser atribuídos às imagens da "toalha alva", do "pão", do "berço" e do "sorriso de mãe"? Como essas imagens contrastam com o "coaxar noturno e certo / Das rãs" e o "campo deserto" na terceira estrofe?
  • O título do poema é "Paz". Como interpretas essa escolha, considerando que o poema evoca tanto a memória de um passado afetuoso quanto a desolação do presente?

 


domingo, 2 de fevereiro de 2025

Fui criança, indo por um carreiro, a caminho do mar (Fiama Hasse Pais Brandão)


 

Fui criança, indo por um carreiro,
a caminho do mar, mão na outra mão,
entre árvores, pedras, insectos e aves.
Toda a Natureza me coube nas pupilas,
mestra de sentimentos, e eu discípula.
E, se fechava os olhos, ela punia-me
com o silêncio cruel das ondas,
a mudez imerecida dos insectos,
e a distância das aves, que doía.
Se os abria, tudo me rodeava,
apaziguado e meu,
mas a mão que me trazia a mão
puxava-me para a luz de cada dia.

 

Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007),
Cenas Vivas. Lisboa, Relógio d’Água, 2000


Leitura orientada do poema

  • Qual é o tema central do poema?
  • Como é retratada a natureza no poema?
  • Qual é o papel da criança no poema?
  • O que simboliza o carreiro no poema?
  • Qual é o significado do mar no poema?
  • Por que razão a natureza é descrita como "mestra de sentimentos"?
  • O que representa o silêncio das ondas no poema?
  • Qual é o significado da "mudez imerecida dos insectos"?
  • Por que razão a distância das aves "doía"?
  • O que simboliza a mão que puxa a criança?
  • Qual é o significado da "luz de cada dia"?
  • Qual é a importância das pupilas no poema?
  • Como se retrata no poema a transição da infância para a vida adulta?
  • O que sugere a repetição da palavra "mão"?
  • Qual é o papel do silêncio no poema?


sábado, 1 de fevereiro de 2025

Os poemas que (não) fiz, Gastão Cruz

 



OFÍCIO

Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe

Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe

Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira

 

Gastão Cruz, Escarpas. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010


Leitura orientada do poema

1. Qual é o significado do título "Ofício" no contexto do poema?

2. Como explora o poema a relação entre corpo e alma?

3. Qual é o papel da poesia no poema?

4. Como a imagem do "duro sopro" contribui para o significado do poema?

5. Qual é o significado do paralelismo entre "Os poemas que não fiz" e "Os poemas que fiz"?