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sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Natália Correia à partida de São Miguel

 


MANHÃ CINZENTA
À Partida de São Miguel

Ai madrugada pálida e sombria
em que deixei a terra de meus pais…
e aquele adeus que a voz do mar trazia
dum lenço branco, a acenar no cais...

O meu veleiro – era de espuma fria –
levava-o o fervor dos vendavais.
À passagem gritavam-me: onde vais?
Mas só o meu veleiro respondia.

Cruzei o mar em direções diferentes.
Por quantas terras fui, por quantas gentes,
nesta longa viagem que não finda.

Só uma estrada resta – mais nenhuma:
na Ilha que o passado envolve em bruma,
um lenço que me acena ainda...

 

in Portugal, Madeira e Açores,
Abril de 1946

 

Natália Correia, “Inéditos, 1941/47” in O Sol das Noites e o Luar nos Dias I. Lisboa, Círculo de Leitores, março de 1993, p. 11




A Ilha: ponto de partida

 

O laço de pertença que une Natália à Ilha é naturalmente emocional e psicológico, porque a partida se efetiva na realidade, despertando um sentimento de perda material. Mas a poesia permite recuperar a Ilha como se fosse “um objeto imaculado pela distância, a nata de uma criança infinitamente chamada pelas ondas a esvaziar-se pela boca cantante com que assombramos as vírgulas adultas dos lugares que habitamos.” (Correia 1993a: 422) Assim se pontua o momento da partida numa “Manhã Cinzenta”, porque se impõe a mudança exigida pela fase adulta da vida […].

A despedida reveste-se da tristeza que é normal sentir-se quando se deixa a “Ilha que o passado envolve em bruma.” É da terra dos seus pais – “ninfa e pai chuva de lava” – que o sujeito poético parte para cruzar “o mar em direções diferentes”, como se doravante a ínsula se afastasse da vida da poetisa. Este afastamento, porém, é materializado no momento da partida, uma vez que a poesia permite a Natália apenas uma “longa viagem que não finda, / só uma estrada resta – mais nenhuma”: a lembrança do adeus acenado por um lenço branco.

Por isso é que, no III dos “7 Poemas da Morte e da Sobrevivência”, Natália esclarece que o retorno à Ilha não deve fazer-se de um qualquer modo, há que revestir o colorido da flor para imprimir outra tonalidade à palidez da despedida naquela “Manhã Cinzenta”. Se um lenço branco acenou à sua partida, que a florescência em cor a saúde aquando do regresso:

Não regressarei à terra
como uma folha que cai.
Condição de ser a hera
que no meu tronco se enlaça
sou a nascente da água
que me leva quando passa.

Não sou poeira que o vento
arrasta até encontrar
a florescência da flor.
Origem morte existência
sou a própria florescência
incontinente na flor.

(Correia 1993a: 117)

 

Mas o regresso não se faz tão cedo. O lugar de onde parte permanece-/-lhe na memória e é evocado com saudade quando, numa circunstância específica da sua vida, Natália pensa que pode vislumbrar, ao longe, a Ilha que lhe serviu de berço e da qual se despediu tristemente numa manhã sem sol. Na obra Descobri que Era Europeia. Impressões duma viagem à América3, a poetisa descreve a jornada que faz aos Estados Unidos da América. Quando, em 1950, sobrevoa o Atlântico rumo à terra da fartura, a escala técnica na ilha vizinha de Santa Maria leva Natália Correia a registar em prosa aquilo que em poesia é canto de saudade:

Estamos a vinte e sete milhas náuticas de Santa Maria. A partir daqui, a viagem começa a revestir um significado sentimental. Pela primeira vez, após quinze anos, vou aproximar-me da terra onde nasci. Ficarei durante uma hora a sessenta milhas de distância da minha ilha: São Miguel.

Vou parar em Santa Maria, onde nunca estive, mas que conheço como uma ténue linha de horizonte dos dias claros. Quantas vezes, debruçada na balaustrada do Aterro, vendo a ilha distante, aberta como uma flora na bruma do mar, eu pensava se aquela não seria a ilha misteriosa sepultada no oceano que a velha Maria da Estrela dizia aparecer de quando em quando aos olhos fadados para a ver: […] (Correia 1993a: 422).

A paragem na pequena ilha de Santa Maria assume uma dupla função: por um lado, não será mais do que um lugar de passagem na rota para outro mundo, mesmo ao lado do ponto de partida de há década e meia de anos e, por outro, torna-se numa espécie de janela a partir da qual Natália tenta perscrutar a sua Ilha, espaço agora preservado na memória, ao qual a poetisa acede através da recordação e do sonho.

 

_________

[3] Esta narrativa de Natália Correia é um documento importante para a compreensão do fenómeno da “açorianidade”. Aí se desenvolve, com bastante acuidade, a conclusão a que chegam, por exemplo, Rosa & Trigo 1987:199: “Entre a insularidade e o sonho realizado, ou não, da distância das “Califórnias da abundância”, constrói-se cada vez com mais fervor a açorianidade – essa maneira que o açoriano tem de afirmar a sua especificidade de ser português, sendo ao mesmo tempo um cidadão de errância em trânsito permanente, espiritual ou físico, para sua mátria: Açores.”

 

Rui Faria, “Figurações da Ilha na poesia de Natália Correia: da expressão da açorianidade à busca da universalidade” in Limite. ISSN: 1888-4067, nº 16, 2022, pp. 149-163

 


quinta-feira, 11 de julho de 2024

Escrevo o que lembro, Ivo Machado

Ivo Machado, "à proa do meu navio", Facebook, 12-12-2023

 
ESCREVO O QUE LEMBRO

à Madalena,
minha neta recém-nascida

Hoje nasceu uma estrela
depois tudo foi o que se sabe
de luz coberta
de amor cercada
estranhamente antes de alegria
outra forma de melancolia
oh, meu bem —
De mim o que te pertence?
tenhas todo o Tempo
(por mim passou depressa)
oh, minha estrela —
escrevo o que lembro
ah, contigo
nasci de novo.

Ivo Machado

Casa da Agudela, 9 de julho de 2024

Disponível em: https://www.facebook.com/share/p/pz8juXV7o87CTeQi/

 

Linhas de leitura sobre o poema “Escrevo o que lembro”, de Ivo Machado:

O poema inicia comparando o nascimento de Madalena ao surgimento de uma estrela. Essa estrela traz consigo luz e amor, simbolizando não apenas o nascimento físico, mas também um renascimento emocional para o sujeito poético.

Madalena é descrita como cercada de luz e amor. No entanto, há uma melancolia presente antes da alegria plena. Essa dualidade reflete a complexidade das emoções humanas diante de momentos significativos.

O sujeito poético expressa o desejo de que Madalena tenha “todo o Tempo”. Esta frase reconhece que o tempo passou depressa para ele e, ao mesmo tempo, reflete sobre a efemeridade da vida.

As expressões “luz coberta” e “amor cercada” simbolizam o desejo do poeta de proteger e cuidar da sua neta. Essa imagem sugere um ambiente seguro e acolhedor.

A pergunta “De mim o que te pertence?” explora o que do seu ser ele passará para ela, sugerindo uma herança emocional e espiritual.

A declaração "escrevo o que lembro" sublinha o papel do poeta como cronista das emoções, usando a escrita para preservar memórias e sentimentos.

Os termos afetuosos como “meu bem” e “minha estrela” revelam o profundo amor do sujeito poético por Madalena, destacando a importância dos laços familiares.

Apesar da melancolia e da passagem do tempo, o nascimento da neta Madalena traz uma renovação. É uma nova oportunidade de viver e sentir, marcando um momento significativo na vida do poeta.


segunda-feira, 1 de maio de 2023

A Virgínia da Bretanha (crónica de Alfredo da Ponte)

 


A Virgínia da Bretanha

Num destes dias tive de ir ao Wall Mart, um pouco antes das oito da manhã. Estas conveniências de comércio aberto a balançar com os nossos horários de trabalho simplificam-nos a vida, de tal maneira que, se algum dia há um desequilíbrio neste sistema, para muita gente será uma visão do fim do mundo. Uma adaptação que muitas vezes não damos o devido valor. Graças a estas vantagens, quem não gosta de estragar tempo, segue as regras do ditado: “É de manhã que começa o dia”.

Ao entrar na loja deparei-me com a Virgínia, que vinha a sair com dois sacos de compras. Reconheci-a, claro! Mas, ao que parece, ela reconheceu-me muito mais, por ter naquela altura o meu nome debaixo da língua, e soltá-lo a bom som, mesmo ainda quando se encontrava a cerca de dez metros de distância de mim.

- Eh, Alfredo, há que anos eu não te vejo!...

- Sra. Virgínia, sempre nova!... Parece uma rapariga de vinte anos...

- Eh, hóme, isto já não é o que era...

- A mim, parece-me, que além do que era é muito mais.

Uma gargalhada dos dois lados, que durou a caminhada de ambos até ficarem frente-a-frente. Nisto, ela deixou o solo segurar os sacos, e no mesmo instante me atirou seus braços, lançando-os à minha volta.

Não resisti. Tive de fazer o mesmo. Apertou-me com metade da sua força, e o abraço demorou perto de dez segundos - o tempo suficiente para me deixar sem jeito, num espaço onde todos passam, e que sem fazer caso, toda a gente vê. Ninguém fala, mas português critica, e faz enredos.

-Os teus pequenos estão bons? Credo, já devem estar tão grandes!... a tua mulher, também...

Que sim, respondi. Perguntei-lhe pelo marido, e ela, então, contou-me que o seu companheiro havia partido deste mundo, há pouco mais de dez anos.

Lamentei, fazendo os gestos de dor, tentando mostrar a cara triste, enfim: usando aquelas expressões que devemos apresentar em momentos como aquele.

Reviveu comigo aquele dia triste, em pouco mais de um minuto; e enquanto ela falava, apreciei-a de alto a baixo sem más intenções.

Terá sido impressão minha, ou a Virgínia, realmente, não envelheceu. Tem oitenta e seis anos, com os dentes todos que Deus lhe deu. Na cabeça, o tom doirado domina de longe a cabeleira rija e farta, e as rugas ainda hesitam quando pensam em atacar-lhe. É uma sortuda.

A Virgínia é de estatura pequena, mas muito viva. Sempre assim foi. Impunha respeito aos colegas de trabalho, e seria capaz de lançar um soco, ou uma punhada, sopapos ou pontapés, fosse a quem fosse, sem avisar.

Na sua Bretanha, em São Miguel, era campesina. Por isso, na América sempre cuidou do seu quintal nas horas vagas, tirando dele a mais variada colheita de frutas e vegetais.

Por sua vez, o marido, por aquilo que ela me dizia, há pouco mais de vinte e cinco anos, cuidava das lides domésticas. Porque se reformara aos cinquenta e tal, estava em casa à espera da terceira idade da mulher para lhe fazer companhia. Embora estivesse a tomar conta da casa, era ele quem vestia as calças, porque a Virgínia só usou saias toda a vida. É de realçar o fato das calças do Manuel andarem sempre bem seguras ao corpo, porque para além de usar cinto, ele não saía à porta da rua sem lhe acrescentar os suspensórios.

Nas horas vagas, quando as lides caseiras estavam adiantadas, o Manuel dedicava-se à leitura. Gostava muito de ler, sem nunca lamentar a pouca escola que teve. Possuía em casa uns dez livros, e já os havia devorado várias vezes, porque não tinha mais nada para ler. Até as publicações semanais de O Jornal, em cada semana era lidas duas ou três vezes.

Quando a Virgínia me contou isto, eu prometi oferecer-lhe alguns livrinhos. Daqueles que já não me faziam falta.

Dito e feito. Uns dias depois entreguei à Virgínia cerca de uma dúzia. O marido consolou-se, e a alegria dele, descrita pela esposa, foi como se estivesse nas ilhas, naquele tempo, recebendo uma saca de roupa da América, com “candins” e tudo. Não se fartou de agradecer.

Agarrou-se, com unhas e dentes, pelo menos por uma semana, ao trabalho do Dr. Mário Moura, intitulado “Os moinhos da ribeira Grande”. Depois, chegou ao meu conhecimento que ele queria ter uma conversa comigo, para falarmos de levadas, rodizes, eixos, pedras, milhos e farinhas. Tudo fiz para que esta reunião não se realizasse. Será que ele pensava que eu era moleiro? Moleiro, não; fuseiro, sim, com todo o gosto. Com muitas graças a Deus, livrei-me da conversa das mós.

O Manuel quando era rapazote brincou muitas vezes nos arredores do moinho de vento do Pico Vermelho, na Ajuda da Bretanha. Aquele que há poucos anos foi restaurado e, como hoje se vê, faz-nos lembrar do Moulin Rouge de Paris, pelas suas cores, claro; onde predomina o vermelho em cima do branco. Já, agora, podiam adicionar-lhe o azul. Ás velas, talvez. É que se formos a aprofundar as coisas vamos acabar ao lado da teoria que defende que as raízes dos bretões micaelenses vieram da Bretanha francesa; e os inhames de Portugal Continental, que sendo também raízes, foram os portugueses que ensinaram os bretões a cultivar.

Com cinquenta e tal anos de América, a Virgínia só foi aos Açores uma vez, e diz à boca-cheia que não tem saudades nenhumas. Para ela pouco importa se a Ajuda e o Pilar são outras duas freguesias independentes, tal como já eram os Remédios desde 1960. Para ela tudo isto é, e sempre há-de ser, a Bretanha. João Bom também está lá metido. Porque é João Bom. Se fosse João Mau, haveria de ficar para os lados de Rabo de Peixe.

O Manuel vê a coisa de maneira diferente. Nas três vezes que lá foi, sozinho, descuidou-se das datas de regresso, e as viagens de retorno lhe saíram muito mais caras.  

Numa daquelas vezes em que lá se encontrava, um amigo convidou-o a ir ao mercado das rezes, na Ribeira Grande, num domingo de manhã. Isto, lá pelos finais da década de setenta.

Aceitando, com todo o gosto, o homem ficou maravilhado com o movimento do mercado agrícola, pelas seis da manhã, devido ao alvoroço das gentes e com os altos pregões dos vendedores. Porém, o que mais o impressionou foi que dali a pouco mais de meia hora já estava tudo calmo!

Dali, da praça, atravessaram a rua e foram ao mercado dos porcos. Outro alvoroço. Um endoidecimento.

O amigo do Manuel comprou quatro leitões. Quatro “marrãos do norte”, como se dizia; e o Manuel fez questão de comprar um. Todo pretinho, menos as orelhas e a rabiça, que era pequena. Se a Virgínia soubesse, fazia um grande leilão, e dava-lhe com o marrão pela cara, até lhe partir o nariz!

Dali, foram à loja do Amâncio, às favas. Meiozinho de vinho a cada um, e um prato de favas para os dois.

Marrãos para baixo, marrãos para cima. Estando mais calmo, Manuel pensou que não poderia trazer o porquinho para a América. Mas era tão riquinho, e desejava que não lhe acontecesse mal nenhum. Por isso decidiu oferecê-lo ao amigo, que já tinha quatro.

Afinal, como eram todos irmãos, deviam crescer juntos. Bendita porca foi aquela de Água de Pau, que fez questão de furar o Pico para ir à Ribeira Grande – a terra das oportunidades.

Para não perdermos mais tempo com esta estória, importa-nos deixar claro que estes descuidos do Manuel da Bretanha eram causados pelos frequentes ataques da saudade. Se a Virgínia não fosse capaz de controlar a situação em cada momento de desastre, o Manuel teria perdido o sentido da vida, há muitos, muitos anos.

Duas semanas depois de eu ter entregue os livros à Virgínia, num daqueles dias, ela chegou ao trabalho maldisposta.

Perguntei-lhe se estava tudo nos conformes. Ela olhou para mim furiosa, e avançou na minha direção com ar de guerreira. Inspirou fundo, e despregou-se com esta conversa:

- Tu, nunca mais me tragas livros p’ró meu home!... Ele mete-se a ler o dia todo, e as coisas de casa ficam por fazer... Eu tive uma briga com ele por causa disso...

Eis mais um exemplo de como um benfeitor se transforma em culpado de certos dramas familiares.

Condenei-me, então, a mim mesmo, e fiz todo o possível para a Virgínia soltar um sorriso. Pregou-me um empurrão, e desatou à gargalhada. Viva! A Virgínia estava de volta!

Nestes escassos minutos do reencontro com a Virgínia vieram tantas recordações à mente. Se eu tivesse dado fio à meada teria várias horas de conversa que me trariam anos de boas recordações. Mas como o tempo é marcante e cada segundo conta, tive de pôr termo ao diálogo, com a desculpa de ter que ir trabalhar.

A verdade é que estes escassos minutos, que nem chegaram a quatro, trouxeram-me um pouco de felicidade para o dia todo. Talvez nem a própria conversa tenha sido a responsável, ficando em seu lugar o primeiro sorriso, ou a gaitada. A festa da Virgínia. Sim, foi isso:

A festa que a Virgínia fez quando me viu proporcionou-me um dia feliz.

Haja saúde!

 

Os inhames da Bretanha
Regalam o coração,
Alegram quem os apanha,
Fazem boa refeição!

No teu moinho de vento
Do milho se fez farinha.
Porque o pão era o sustento
Da nossa humilde casinha.

Os inhames e as batatas,
Quando está o tempo fresco
Valem as mesmas patacas,
São do mesmo parentesco.

 

Crónica de Alfredo da Ponte (EUA).

Diário dos Açores, 11-04-2023

 


sexta-feira, 28 de abril de 2023

Ao princípio, era a mitofagia (Pedro da Silveira)


 

AO PRINCÍPIO, ERA A MITOFAGIA

Conheci-o quando, dos quinze para os dezasseis anos, começava a rabiscar uns versos, orvalhados de lamúria romântica e humanitarismos à Kropotkine, que o almanaque da terra, precioso jazigo de devaneios e moralidades sediças, generosamente acolhia. No pacato burgo insulano, que os vapores ronceiros sugestionavam de Europa todos os quinze dias, ele era, sem dúvida nem contesto, alguém — literato festejado, membro das Forças Vivas. Publicara alguns trinta livros; era sócio de honra de várias academias e institutos eruditos (sobretudo heráldicos e arqueológicos). Nas capas desses livros, logo abaixo do nome do grande personagem, num discreto mas bem legível corpo 8, desfilava toda a sua glória. E, apesar da ironia do Sr. Luís da Rosa — «O Germano é sócio de todas as fanfaras deste mundo e vizinhanças» —, não havia por ali quem não tomasse a coisa muito a sério. Eu talvez mais do que qualquer outro dos basbaques locais. Pelo menos de maneira mais angelical...

Bem cara me custou à alma a cegueira idólatra!

Estou agora a lembrar-me do momento em que ele, o malandro!, encontrando-me na redação de O Distrito Autónomo, me elogiou o estro. Chamou-me «ridente promessa»; que, se continuasse, não deixaria de chegar às paragens do Parnaso. Receitou-me Junqueiro e Bilac. Mas nada de futuristas!

«Loucos, meu preclaro amigo, uns loucos! Arte nova?... Aquilo não é Arte! Ora veja, por exemplo, os versos do nosso Cabral: “O meu Charuto”. Aquilo sim! Sentimento. Brilho. Os futuristas... Loucos e mais nada!»

Concordei. Que havia de fazer eu, aprendiz de sentimental, senão concordar? E continuei a venerá-lo, a venerá-lo cada vez mais. E a escrever sonetaços, agora em alexandrinos laboriosos, suando no esforço de trepar as ladeiras do Parnaso.

Até que um dia...

O grande personagem anunciara-me, displicente, a próxima publicação de um novo livro. O último, dizia. Qualquer coisa de muito transcendente, sobre a covardia de Pôncio Pilatos, com descrições da paisagem da Judeia («aguarelas sentimentais »...), rabis, camelos e muitas outras coisas.

Faltava apenas polir umas passagens. Dentro de um mês, os prelos botariam cá para fora a maravilha.

Pois bem. Aí vai. Embora ainda hoje me custe confessar que caí neste logro; que fui levado à certa; que durante dois anos aceitei como verdade incontroversa a grandeza daquele farsante de província. (Sirva-me de consolação a certeza de que não fui o único parvo. Que muitos, ainda hoje, a catorze anos da morte dele, aceitam a sua grandeza.)

Era costume juntarem-se, à tarde, no escritório do grande homem, os literatos da cidade. Também eu, apesar de verde, frequentava o conspícuo cenáculo. Naquele dia cheguei talvez mais cedo. Ele foi lá dentro. Então, lobriguei, sobre a secretária, uns manuscritos. A letra, conhecia-a, era a dele. O grande livro, pensei. E fervi de incontida curiosidade. Aproximei-me mais e...

Raios! Fiquei passado. Eram artigos, assinados com pseudónimos vários, a respeito do livro. Em cada um, ao alto da primeira folha, o nome do jornal insulano a que se destinava. E depois a procissão dos adjetivos — tudo de génio para cima!

A garganta apertou-se-me. A cabeça, parecia-me que rodava, suspensa, no ar. Seria verdade o que os meus olhos tinham visto? Ou não passava de trapaça do Eiramá? Tive pena de mim mesmo. Abalei porta fora — e nunca mais lá pus os pés.

Levei dias a matutar na coisa. Interrogava-me, angustiado. Depois, já mais calmo, reli os livros dele e não lhes encontrei a magia de outrora. E foi com verdadeiro acinte vingativo que, passada a crise, me atirei a ler uns tantos autores modernos, dos poucos que adregavam arribar àquelas paragens insulanas. Gostei — e aderi. Mas por quanto tempo aquilo me doeu. Surgia-me uma celebridade, e eu — na retranca. Ídolos, nunca mais! Do muito que então li contra os bonzos de que o burlão era na ilha o símbolo, guardei na memória algumas tiradas de respeito. Mas, mais do que isso, me impressionaram dois versos de Edmundo de Bettencourt:

Quero pedir-vos adeus sem nenhumas ternuras,
sem pena e repugnado, ó antropofagias obscuras!

Substituí antropofagias por mitofagias (o autor que me perdoe o abuso), e quando me sinto ameaçado por novos ídolos, recito-os como conjuro. E, duvidando sempre, até de mim mesmo se me acodem velocidades de subir ainda ao alto do Parnaso que tente escalar com os meus insonsos alexandrinos, consigo supor que estou vivo!...

 

Pedro da Silveira, “Ao princípio, era a mitofagia” in O Século Ilustrado, Lisboa, 14-05-1955, p. 9

 ***

[…] Cheguei a este texto de Pedro da Silveira por uma «breve» no Diário Insular, que atribuo claramente a João Afonso, dando conta do «início da colaboração» do florentino n’O Século Ilustrado. Tal colaboração consistiu, todavia, apenas nesta página, que resulta do convite feito a escritores para «contar uma história»; por exemplo, Mário Cesariny de Vasconcellos escreveria duas semanas depois.

A curiosa «história» de Silveira reporta-se ao ambiente literário da Angra do Heroísmo da década de 1930, quando ele ali foi estudante de liceu e seminário já envolvido em primícias literárias e visitando figuras em destaque. O literato designado como Germano é, creio bem, Gervásio da Silva Lima (1878-1945), também referido por Pedro no prefácio às Ilhas Desconhecidas como pomposa figura da cidade que recusou a Vitorino Nemésio ir cumprimentar Raul Brandão, pois este lhe parecia um emigrante que voltava à sua terra sem vintém. Mas esta é também deveras uma história edificante, prevenindo-nos dos malefícios de idolatrias de qualquer espécie e pinta, ou dos graves erros de avaliação pessoal que tantas vezes, e em tantos tempos da vida, praticamos inadvertidamente. Para bom entendedor...

Vasco Rosa, “Centenário de Pedro da Silveira, XXIII – Ídolos, nunca mais!, disse ele” in Diário dos Açores, 22-04-2023

 

quinta-feira, 28 de julho de 2022

A Viola e a Viagem, Mar&Ilha

A Viola e a Viagem, Mar&Ilha

 


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credits

releases August 4, 2022

All the musical arrangements in this album were made by Mar&Ilha (Sara Miguel, Marcos Fernandez, Jorge Canarinho Silva and Rui Silva)

Recorded in Lava Homes, mixed and mastered by Ricardo Torres and Daniel Santos - 2022

Album photos by Austèja Liu
Album design by Edmond Haider


Mar&Ilha

Mar&Ilha é um projeto musical conceptualizado por Sara Miguel para celebrar a viola da terra em toda a sua versatilidade, criado em 2019, a convite da Miratecarts para comemorar, em concerto, o primeiro Dia da Viola da Terra, no Auditório da Madalena do Pico.

O sucesso da atuação levou à repetição do concerto que, após a pandemia, ressurge como projeto de continuidade, passando, em 2021, de trio a quarteto. Dele fazem parte, além da cantora portuense Sara Miguel, o guitarrista galego Marcos Fernandez, o tocador de viola da terra picaroto Jorge ‘Canarinho’ Silva e o percussionista e artesão de adufes beirão Rui Silva, todos residentes na ilha montanha.

https://praiaexpresso.com/2021/10/20/marilha-em-volta-a-diaspora-em-viola-na-temporada-cultural-2021/ 




SINA

 

Nas linhas da minha mão

Cabe um dia e mais um dia,

O segredo e os mistérios

De outra caligrafia

 

E os traços com que desenho

Um perfil a inventar

Trazem na sua incerteza

Um vago rumor de mar.

 

Sete notas, um compasso

Dó ré mi fá sol lá si,

Sete voltas ao destino

E ao sonho que percorri

 

Há um pássaro poisado

Na pauta do meu olhar,

Como quem fica à espera

De um barco por abalar

 

E nas cordas afinadas

Por um tom que desconheço

Tudo vibra em sobressalto

Como se fosse um começo.

 

Urbano Bettencourt

 

Mar&Ilha no Festival de Música Terra dos Barcos, em Santo Amaro, agosto 2022
https://www.facebook.com/media/set?vanity=mareilhapico&set=a.848037219938840


Mar&Ilha com Urbano Bettencourt no Festival de Música Terra dos Barcos, em Santo Amaro, agosto 2022




CARREIRO, José. “A Viola e a Viagem, Mar&Ilha”. Portugal, Folha de Poesia, 28-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/a-viola-e-viagem-mar.html