A Virgínia da Bretanha
Num destes dias tive de ir ao Wall Mart, um pouco
antes das oito da manhã. Estas conveniências de comércio aberto a balançar com
os nossos horários de trabalho simplificam-nos a vida, de tal maneira que, se
algum dia há um desequilíbrio neste sistema, para muita gente será uma visão do
fim do mundo. Uma adaptação que muitas vezes não damos o devido valor. Graças a
estas vantagens, quem não gosta de estragar tempo, segue as regras do ditado:
“É de manhã que começa o dia”.
Ao entrar na loja
deparei-me com a Virgínia, que vinha a sair com dois sacos de compras.
Reconheci-a, claro! Mas, ao que parece, ela reconheceu-me muito mais, por ter
naquela altura o meu nome debaixo da língua, e soltá-lo a bom som, mesmo ainda
quando se encontrava a cerca de dez metros de distância de mim.
- Eh, Alfredo, há que anos
eu não te vejo!...
- Sra. Virgínia, sempre
nova!... Parece uma rapariga de vinte anos...
- Eh, hóme, isto já não é o
que era...
- A mim, parece-me, que
além do que era é muito mais.
Uma gargalhada dos dois
lados, que durou a caminhada de ambos até ficarem frente-a-frente. Nisto, ela
deixou o solo segurar os sacos, e no mesmo instante me atirou seus braços,
lançando-os à minha volta.
Não resisti. Tive de fazer
o mesmo. Apertou-me com metade da sua força, e o abraço demorou perto de dez
segundos - o tempo suficiente para me deixar sem jeito, num espaço onde todos
passam, e que sem fazer caso, toda a gente vê. Ninguém fala, mas português
critica, e faz enredos.
-Os teus pequenos estão
bons? Credo, já devem estar tão grandes!... a tua mulher, também...
Que sim, respondi.
Perguntei-lhe pelo marido, e ela, então, contou-me que o seu companheiro havia
partido deste mundo, há pouco mais de dez anos.
Lamentei, fazendo os gestos
de dor, tentando mostrar a cara triste, enfim: usando aquelas expressões que
devemos apresentar em momentos como aquele.
Reviveu comigo aquele dia
triste, em pouco mais de um minuto; e enquanto ela falava, apreciei-a de alto a
baixo sem más intenções.
Terá sido impressão minha,
ou a Virgínia, realmente, não envelheceu. Tem oitenta e seis anos, com os
dentes todos que Deus lhe deu. Na cabeça, o tom doirado domina de longe a
cabeleira rija e farta, e as rugas ainda hesitam quando pensam em atacar-lhe. É
uma sortuda.
A Virgínia é de estatura
pequena, mas muito viva. Sempre assim foi. Impunha respeito aos colegas de
trabalho, e seria capaz de lançar um soco, ou uma punhada, sopapos ou pontapés,
fosse a quem fosse, sem avisar.
Na sua Bretanha, em São
Miguel, era campesina. Por isso, na América sempre cuidou do seu quintal nas
horas vagas, tirando dele a mais variada colheita de frutas e vegetais.
Por sua vez, o marido, por
aquilo que ela me dizia, há pouco mais de vinte e cinco anos, cuidava das lides
domésticas. Porque se reformara aos cinquenta e tal, estava em casa à espera da
terceira idade da mulher para lhe fazer companhia. Embora estivesse a tomar
conta da casa, era ele quem vestia as calças, porque a Virgínia só usou saias
toda a vida. É de realçar o fato das calças do Manuel andarem sempre bem
seguras ao corpo, porque para além de usar cinto, ele não saía à porta da rua
sem lhe acrescentar os suspensórios.
Nas horas vagas, quando as
lides caseiras estavam adiantadas, o Manuel dedicava-se à leitura. Gostava muito
de ler, sem nunca lamentar a pouca escola que teve. Possuía em casa uns dez
livros, e já os havia devorado várias vezes, porque não tinha mais nada para
ler. Até as publicações semanais de O Jornal, em cada semana era lidas duas ou
três vezes.
Quando a Virgínia me contou
isto, eu prometi oferecer-lhe alguns livrinhos. Daqueles que já não me faziam
falta.
Dito e feito. Uns dias
depois entreguei à Virgínia cerca de uma dúzia. O marido consolou-se, e a
alegria dele, descrita pela esposa, foi como se estivesse nas ilhas, naquele
tempo, recebendo uma saca de roupa da América, com “candins” e tudo. Não se
fartou de agradecer.
Agarrou-se, com unhas e
dentes, pelo menos por uma semana, ao trabalho do Dr. Mário Moura, intitulado
“Os moinhos da ribeira Grande”. Depois, chegou ao meu conhecimento que ele
queria ter uma conversa comigo, para falarmos de levadas, rodizes, eixos,
pedras, milhos e farinhas. Tudo fiz para que esta reunião não se realizasse.
Será que ele pensava que eu era moleiro? Moleiro, não; fuseiro, sim, com todo o
gosto. Com muitas graças a Deus, livrei-me da conversa das mós.
O Manuel quando era
rapazote brincou muitas vezes nos arredores do moinho de vento do Pico
Vermelho, na Ajuda da Bretanha. Aquele que há poucos anos foi restaurado e,
como hoje se vê, faz-nos lembrar do Moulin Rouge de Paris, pelas suas cores,
claro; onde predomina o vermelho em cima do branco. Já, agora, podiam
adicionar-lhe o azul. Ás velas, talvez. É que se formos a aprofundar as coisas
vamos acabar ao lado da teoria que defende que as raízes dos bretões
micaelenses vieram da Bretanha francesa; e os inhames de Portugal Continental,
que sendo também raízes, foram os portugueses que ensinaram os bretões a
cultivar.
Com cinquenta e tal anos de
América, a Virgínia só foi aos Açores uma vez, e diz à boca-cheia que não tem
saudades nenhumas. Para ela pouco importa se a Ajuda e o Pilar são outras duas
freguesias independentes, tal como já eram os Remédios desde 1960. Para ela
tudo isto é, e sempre há-de ser, a Bretanha. João Bom também está lá metido.
Porque é João Bom. Se fosse João Mau, haveria de ficar para os lados de Rabo de
Peixe.
O Manuel vê a coisa de
maneira diferente. Nas três vezes que lá foi, sozinho, descuidou-se das datas
de regresso, e as viagens de retorno lhe saíram muito mais caras.
Numa daquelas vezes em que
lá se encontrava, um amigo convidou-o a ir ao mercado das rezes, na Ribeira
Grande, num domingo de manhã. Isto, lá pelos finais da década de setenta.
Aceitando, com todo o
gosto, o homem ficou maravilhado com o movimento do mercado agrícola, pelas
seis da manhã, devido ao alvoroço das gentes e com os altos pregões dos
vendedores. Porém, o que mais o impressionou foi que dali a pouco mais de meia
hora já estava tudo calmo!
Dali, da praça,
atravessaram a rua e foram ao mercado dos porcos. Outro alvoroço. Um
endoidecimento.
O amigo do Manuel comprou
quatro leitões. Quatro “marrãos do norte”, como se dizia; e o Manuel fez
questão de comprar um. Todo pretinho, menos as orelhas e a rabiça, que era
pequena. Se a Virgínia soubesse, fazia um grande leilão, e dava-lhe com o
marrão pela cara, até lhe partir o nariz!
Dali, foram à loja do
Amâncio, às favas. Meiozinho de vinho a cada um, e um prato de favas para os
dois.
Marrãos para baixo, marrãos
para cima. Estando mais calmo, Manuel pensou que não poderia trazer o porquinho
para a América. Mas era tão riquinho, e desejava que não lhe acontecesse mal
nenhum. Por isso decidiu oferecê-lo ao amigo, que já tinha quatro.
Afinal, como eram todos
irmãos, deviam crescer juntos. Bendita porca foi aquela de Água de Pau, que fez
questão de furar o Pico para ir à Ribeira Grande – a terra das oportunidades.
Para não perdermos mais
tempo com esta estória, importa-nos deixar claro que estes descuidos do Manuel
da Bretanha eram causados pelos frequentes ataques da saudade. Se a Virgínia
não fosse capaz de controlar a situação em cada momento de desastre, o Manuel
teria perdido o sentido da vida, há muitos, muitos anos.
Duas semanas depois de eu
ter entregue os livros à Virgínia, num daqueles dias, ela chegou ao trabalho maldisposta.
Perguntei-lhe se estava
tudo nos conformes. Ela olhou para mim furiosa, e avançou na minha direção com
ar de guerreira. Inspirou fundo, e despregou-se com esta conversa:
- Tu, nunca mais me tragas
livros p’ró meu home!... Ele mete-se a ler o dia todo, e as coisas de casa
ficam por fazer... Eu tive uma briga com ele por causa disso...
Eis mais um exemplo de como
um benfeitor se transforma em culpado de certos dramas familiares.
Condenei-me, então, a mim
mesmo, e fiz todo o possível para a Virgínia soltar um sorriso. Pregou-me um
empurrão, e desatou à gargalhada. Viva! A Virgínia estava de volta!
Nestes escassos minutos do
reencontro com a Virgínia vieram tantas recordações à mente. Se eu tivesse dado
fio à meada teria várias horas de conversa que me trariam anos de boas
recordações. Mas como o tempo é marcante e cada segundo conta, tive de pôr
termo ao diálogo, com a desculpa de ter que ir trabalhar.
A verdade é que estes
escassos minutos, que nem chegaram a quatro, trouxeram-me um pouco de
felicidade para o dia todo. Talvez nem a própria conversa tenha sido a
responsável, ficando em seu lugar o primeiro sorriso, ou a gaitada. A festa da
Virgínia. Sim, foi isso:
A festa que a Virgínia fez
quando me viu proporcionou-me um dia feliz.
Haja saúde!
Os
inhames da Bretanha
Regalam o coração,
Alegram quem os apanha,
Fazem boa refeição!
No teu moinho de vento
Do milho se fez farinha.
Porque o pão era o sustento
Da nossa humilde casinha.
Os inhames e as batatas,
Quando está o tempo fresco
Valem as mesmas patacas,
São do mesmo parentesco.
Crónica de Alfredo da
Ponte (EUA).
Diário dos Açores, 11-04-2023