Do meu país. Do país que eu amo, do país que eu temo,
do país que sangro para comer no pão, do país que quero,
do país que doo, do país que amasso como se fosse chão,
do país que tenho, do país que guardo, do país que sonho
como se o lesse na mão, do país que espero, cigarro etéreo,
do país que a minha vida inteira respirou, do país que
lavro, do país que rasgo, do país que a poesia me chorou,
do país com carne, do país com veias, do país que é onde
o sol se deitou, do país que fosse o país que é o país onde
o futuro abalroou, do país do amor, do país dos outros,
do país que é também tudo o que sou, do país chegado,
do país sem barcos, do país que à minha janela me levou.
Eduardo White, Até amanhã, coração. Maputo, Imprensa Universitária, 2005
Eu sei que fico.
Mas o meu sonho irá
Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas.
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos frutos, nos colares
E nas fotografias da terra,
Comprados por turistas estrangeiros
Felizes e sorridentes.
Eu sei que fico mas o meu sonho irá...
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Metido na garrafa bem rolhada
Que um dia hei de atirar ao mar.
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos veleiros que desenho na parede.
Aguinaldo
Fonseca, Suplemento Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde: Boletim de
Propaganda e Informação. Praia, publicação da Imprensa Nacional, outubro de
1958
Análise literária do poema
O poema
"Canção dos rapazes da ilha" de Aguinaldo Fonseca, publicado no Suplemento
Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde em outubro de 1958, aborda a
realidade de jovens confinados à vida insular e os sonhos que transcendem essa
limitação física. Através de uma estrutura repetitiva e um tom melancólico, o
sujeito poético apresenta um contraste entre a imobilidade física e a liberdade
do espírito e da imaginação.
O poema
inicia com uma declaração contraditória: “Eu sei que fico. / Mas o meu sonho
irá” (vv. 1-2). Estes versos contêm as duas certezas do sujeito poético: a
realidade de permanecer fisicamente na ilha e a capacidade dos seus sonhos de
transcender essa limitação. Esta contradição estabelece o tom para o resto do
poema, em que o sujeito poético explora como os seus sonhos poderão viajar e
alcançar lugares além da sua prisão insular.
O sonho
do sujeito poético propaga-se de várias formas. Ele imagina o seu sonho voando
pelo ar (“Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas”), manifestando-se em objetos
vendidos a turistas (“Nos frutos, nos colares / E nas fotografias da terra”),
encerrado numa garrafa atirada ao mar (“Metido na garrafa bem rolhada / Que um
dia hei de atirar ao mar”), e nos desenhos dos veleiros na parede (“Nos
veleiros que desenho na parede”). Cada uma destas imagens reforça a ideia de
que, embora fisicamente confinado, o espírito e a imaginação do sujeito poético
podem viajar e deixar uma marca.
A
impossibilidade de o sujeito poético sair da ilha é sugerida pela sua condição
socioeconómica e pela insularidade. A pobreza, implícita nas suas
circunstâncias, e a realidade geográfica de viver numa ilha limitam as
oportunidades de fuga física, acentuando a prisão física em contraste com a
liberdade imaginativa.
O poema
constrói-se sobre diversos contrastes que enriquecem a leitura:
Presente/Futuro:
O presente é representado pela certeza de que o sujeito poético fica, enquanto
o futuro é sugerido pelo sonho que irá.
Realidade/Fantasia:
A realidade da permanência física contrasta com a fantasia do sonho viajante,
capaz de se propagar pelo ar e pelos mares.
Pobreza/Riqueza:
A pobreza é subentendida na condição de ficar, enquanto a riqueza é simbolizada
pelos objetos que contêm os sonhos, vendidos a turistas estrangeiros.
Prisão/Liberdade:
A prisão física de ficar é contraposta à liberdade do sonho que viaja.
Infelicidade/Felicidade:
A infelicidade da imobilidade é contrastada com a felicidade imaginada e
idealizada nos sonhos que se movem.
Estes
contrastes são centralizados na estrutura do poema, particularmente na
repetição dos versos "Eu sei que fico. / Mas o meu sonho irá", em que
a conjunção adversativa “mas” enfatiza a diferença entre o presente aprisionado
e a libertação futura.
O título
"Canção dos rapazes da ilha" sugere que o poema não é apenas a
expressão de um indivíduo, mas representa um sentimento coletivo de uma geração
de jovens confinados a uma realidade insular. A "canção" simboliza a
voz unificada destes rapazes que, apesar das suas limitações físicas, nutrem
sonhos e esperanças de um futuro além das fronteiras da sua ilha. Este
sentimento coletivo é emblemático da Geração do Suplemento Cultural, conhecida
por sua postura de revolta e pelo desejo de transcender as limitações impostas
pelo contexto colonial e geográfico.
Geração do Suplemento Cultural
A Geração
do Suplemento Cultural, nascida em 1958, aparece como uma Geração muito
identificada com uma verdadeira postura de revolta.
O Suplemento
Cultural saiu apenas uma vez, pois o segundo foi impedido de sair às bancas
pela censura colonial da época.
A
situação de Cabo Verde na época levava a que este grupo de homens, reunido à
volta desta Geração, questionasse politicamente as verdadeiras causas/razões de
tal realidade comprometida, apelando, assim, à revolta humana
Desta
forma, é amplamente reconhecido que este Suplemento Cultural marcou,
definitivamente, uma atitude radicalmente diferente em relação às Gerações
anteriores. Apesar de irem buscar a maturidade literária aos homens da Geração
da Claridade (1936) e a maturidade político-social aos homens da Geração da
Certeza (1944), os homens da Geração do Suplemento Cultural apresentam-se como
homens da Geração da recusa (a favores específicos ao sistema colonial) que
aposta na valorização da coletividade - cabo-verdiana, obviamente. O
"eu" poético é, assim, um "eu coletivo", um
"eu/nós", onde o poeta se apresenta como o porta-voz da dimensão
cultural coletiva, identificando-se solidariamente com o seu povo.
Do ponto
de vista político-social, a Geração do Suplemento Cultural assume uma postura
de combate, de revolta e de alerta, abrindo caminho à mais pura vontade de
independência.
Fala do
homem que aposta na terra que é sua, negando tendências antigas (seculares,
mesmo) de evasão, de fuga, desvalorizando o elemento "mar" para dar
vida ao elemento "terra".
Os seus
textos são rítmicos, repetitivos, exatamente porque são enfáticos, destinados a
revelar claramente as realidades.
A sua
principal missão era a de captar a fidelidade do homem cabo-verdiano à sua
terra natal e, nas circunstâncias naturais e dimensões espirituais, levá-lo às
últimas consequências, por forma a que resultasse na atitude de reconstrução do
enraizamento da cultura intelectual em bases profundas e coerentes. A sua maior
intenção era a de fazer da arte literária uma projeção intencionalmente
combativa da problemática do ilhéu.
Consciencializar
o homem cabo-verdiano de que este faz parte integrante de um processo histórico
geral que o envolve, era, no momento, o trabalho mais ativo que esta Geração do
Suplemento Cultural tinha de levar a cabo.
João Afonso Lima (Beira,
1965) é um cantor português. Viveu em Moçambique até 1978, com seus pais e
irmãos. Colheu influências da música urbana africana e da música popular
portuguesa, esta última pela influência de Zeca Afonso, seu tio materno. A sua
colaboração em Maio Maduro Maio (1994), em parceria com José Mário Branco e
Amélia Muge, valeu-lhe a atribuição do Prémio José Afonso.
O poema "Mar Me
Quer" de João Afonso é uma adaptação musical da novela Mar Me Quer,
do escritor moçambicano Mia Couto, cuja leitura se encontra orientada na nossa página
da Lusofonia.
Na novela Mar Me Quer, «Mulata Luarmina e Zeca
Perpétuo partilham território de vizinhança, chão de terra tão mais velho
que eles, olhando o mar que é sempre quem mais viaja.
Luarmina ensombreada de um qualquer
silêncio, que de tão longo parece segredo, entardece todos os dias na companhia
de Zeca, ouvindo as histórias que vão povoando a paisagem.
Zeca Perpétuo sonha sempre o mesmo: se
embrulhar com ela, arrastá-la numa grande onda que os faça inexistir.
Luarmina foi aprendendo mil defesas para
as insistências namoradeiras de Zeca, mas um dia resolve negociar falas e
outras proximidades, não em troca de aventuras sonhiscadas de Zeca, mas de suas
exatas memórias.
E como diz o avô Celestiano "o
coração é uma praia", em que o mar, porque nos quer, acaricia memórias e
apazigua ausências.
Avô Celestiano é a sabedoria do tempo.
Mas também é o fabricador de sonhos. Por via dos sonhos, ele visita os vivos e
conduz, na sombra dos aléns, os destinos e os amores de Zeca e Luarmina.
"O que faz andar a estrada? … o
sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. … para isso que
servem os caminhos. Para nos fazerem parentes do futuro." (Mia Couto, Mar Me Quer)»
Natália
Luiza, Mar me quer, Coimbra, Cena Lusófona, 2002(Adaptação
dramatúrgica da novela homónima de Mia Couto, encomendada pela Cena Lusófona, e
colocada em palco pela companhia Teatro Meridional, num espetáculo estreado em
maio de 2001, no Teatro Taborda em Lisboa.)
Aquilo tornara-se um vício. Ele ouvia um telefone a
tocar e logo estendia o braço e levantava o auscultador.
– E se fosse para mim?
Os amigos faziam troça:
– No consultório do teu dentista?
Uma noite estava sozinho, no Rossio, à espera de um
táxi, quando o telefone tocou numa cabina ao lado. Era no fim da noite e
chovia: uma água mole, desesperançada, tão leve que parecia emergir do próprio
chão. Ruben enfiou as mãos nos bolsos do casaco.
– É claro que não vou atender – disse alto. – Não
pode ser para mim. Se atender este telefone é porque estou a enlouquecer.
O telefone voltou a tocar. Não chegou a tocar cinco
vezes. Ele correu para a cabina e atendeu.
– Está?
Estava muito sol do outro lado. Era, tinha de ser,
uma tarde de sol.
– Posso falar com o Gustavo?
A voz dela iluminou a cabina. Ruben pensou em dizer
que era o Gustavo. Estava ali, àquela hora absurda, abandonado como um náufrago
na mais triste noite do mundo. Tinha direito de ser o Gustavo (fosse ele quem
fosse).
– Você não vai acreditar, mas a sua chamada foi
parar a uma cabina telefónica.
Ela riu-se. Meus Deus – pensou Ruben – era como
beber sol pelos ouvidos.
– Não brinques! És tu, Gustavo, não és?…
Sim ele tinha o direito de ser o Gustavo:
– Infelizmente não. Você ligou para uma cabina
telefónica, no Rossio, eu estava à espera de um táxi e atendi.
Quase acrescentou: "pensei que pudesse ser para
mim". Felizmente não disse nada. Ela voltou a rir:
– Tenho a sensação de que esta chamada vai ficar-me
cara. Sabe onde estou?
Pulau Penang
Estava em Pulau Penang, na Malásia, e dali, do seu
quarto, num hotel chamado Paradise, podia ver todo o esplendor do mar.
– Nunca vi nada com esta cor – sussurrou – só espero
que Deus me dê a alegria de morrer no mar.
Ele ficou em silêncio. Aquilo parecia a letra de um
samba. Ela começou a chorar:
– Desculpe que vergonha… Nem sequer sei como se
chama.
Ruben apresentou-se: – Ruben, 34 anos, trabalho em
publicidade.
Pediu-lhe o número de telefone e ligou utilizando o
cartão de crédito. Aquela chamada ficou-lhe cara. Casaram oito meses depois.
Ele diz a toda a gente que foi o destino. Ela, pelo sim pelo não, proibiu-o de
atender telefones.
José Eduardo Agualusa, A substância do amor e
outras crónicas. 3.ª edição, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2009, pp.
53-54
***
Escreve um pequeno comentário,
entre 80 e 100 palavras, sobre o sentido global do texto de José Eduardo
Agualusa, atentando na caracterização de Ruben, nas atitudes perante o
telefonema oriundo de Pulau Penang e na importância do destino na vida das pessoas.
(Proposta de escrita por Carla Marques e Inês Silva, emContos & Recontos 7.
Lisboa, ASA, 2013, p. 152)
Sugestão de resposta:
O sentido global do texto é mostrar
como o destino pode intervir na vida das pessoas, de forma surpreendente e
maravilhosa.
Ruben é uma personagem solitária, que
tem o hábito de atender telefones alheios, na esperança de encontrar alguém que
lhe fale.
As atitudes perante o telefonema de
Pulau Penang são de curiosidade, encantamento e coragem. Ruben decide
arriscar-se a conhecer a mulher que lhe ligou por engano, e acaba por se
apaixonar e casar com ela.
O destino é a força que une as duas
personagens, que vivem em lugares tão distantes e diferentes.
O texto é uma celebração do amor e da
magia do acaso.
Ontem, dia mundial da poesia (e da luta contra a discriminação racial), dirigi-me à Casa Fernando Pessoa, em campo de ourique, onde se ia proceder à leitura de Tabacaria em língua caboverdeana e ao lançamento duma edição bilingue, promovida por uma associação de afro-descendentes de lisboa.
Afazeres pouco poéticos fizeram com que eu chegasse alguns minutos depois da hora aprazada para o início da sessão. Uma tarjeta amarela, em inglês e português (Pessoa teria gostado), avisava que não seriam permitidas mais entradas. Remoendo as minhas razões, resolvi tocar à campainha. Logo um diligente vigilante acudiu à porta, dizendo educadamente que por razões de segurança não seriam admitidas mais entradas.
Não sei quem dirige hoje a Casa Fernando Pessoa, nem quem lá trabalha, mas pedi ao vigilante se podia chamar alguém responsável, pois poderia ser alguém que eu conhecesse, dado que em tempos fui assíduo frequentador da Casa, concebi um programa para uma quinzena da cultura caboverdeana, fui convidado de um dia mundial da poesia, onde recitei excertos da OdeMarítima traduzida por mim para caboverdeano (numa casa cheíssima, com gente até nas escadas), fui convidado de um «Dias do Desassosego», com escritores brasileiros e portugueses (sendo um 10 de junho, fiz a minha abertura com um soneto de Camões traduzido por mim para caboverdeano), a biblioteca da casa possui alguns dos meus livros, por mim oferecidos, sou tradutor de Pessoa para o caboverdeano, utilizando o seu alfabeto oficial (uma antologia intitulada Na Sol di Nhas Angústia esteve pronta para sair em 2007, aquando da passagem de Francisco José Viegas pela casa e ainda hoje aguarda edição), ainda a semana passada o número de inverno da revista LER, dirigida pelo mesmo Fancisco José Viegas, publicou uma montagem minha da Ode Marítima em caboverdeano, razões não para ter algum tratamento privilegiado, mas apenas justificativas do interesse que eu tinha naquela sessão onde seria lido e apresentado Tabacaria na minha língua materna, poema que eu próprio traduzi em 2007, e que aqui vos ofereço na versão de então.
Passados instantes entrevi, pela fresta da porta meio aberta, uma senhora de fogachos loiros nos cabelos, que entretanto descera até ao patamar da recepção, falar com o vigilante, acenando que não com a cabeça. Logo este se dirigiu a mim, que se encontrava do lado de fora, dizendo: «Lamentamos, cavalheiro, por razões de segurança...». Gostei muito, eu simples poeta, de ser tratado por «cavalheiro», pois a minha aparência não deixava dúvidas: devido ao frio eu vinha trajado de sobretudo castanho-claro, finas luvas castanho-escuro, cachecol verde-escuro, chapéu preto à Pessoa. Quando já ia embora pelo passeio do outro lado da rua, sorrindo como o Esteves sem metafísica, vi aproximarem-se duas senhoras, cujo tez ainda divisei no lusco-fusco de fim de inverno, e sem delongas sumiram casa adentro. Sorri mais uma vez, com um sorriso triste, alvitrando, para meu consolo, que talvez se tratasse do múltiplo Fernando, reencarnado, não heteronimicamente mas em carne e osso, em femininas figuras, e teria vindo indagar ao que vinha tanta gente de pele escura e linguajar estranho.
Aconteceu num dia mundial da poesia – e sou poeta. Aconteceu na cidade de lisboa – e dediquei-lhe em livro um monumento de palavras intitulado Lisbon Blues. Foi no bairro de campo de ourique, e estavam os meus livros numa feira no jardim da parada. Aconteceu na Casa Fernando Pessoa, e sou tradutor dele. Foi num dia mundial contra a discriminação racial e senti-me profundamente preto.
José Luiz Tavares Lisboa, 22 de março de 2018 https://santiagomagazine.cv/index.php/cultura/1299-um-amargo-dia-mundial-da-poesia
TABAKARIA
N ka nada. Nunka n ka ta ser nada. N ka pode kre ser nada. Trandu kel li, n ten dentu di mi tudu sonhu di mundu. // Janelas di nha kuartu, di nha kuartu di un-dus milion di mundu ki ningen ka sabe é kenha (I s'es sabeba é kenha, kuse k'es sabeba?), Nhos ta da pa un rua undi ninhun pensamentu ka ta txiga, Rial, inpusivelmenti rial, sertu, diskonhisidamenti sertu, Ku misteriu di kusas baxu di pedras ku seris, Ku morti ta poi umidadi na paredi i kabelu branku na omis, Ku distinu ta konduzi karosa di tudu pa strada di nada. // Oxi n sta dirotadu, sima ki n sabe verdadi. Oxi n sta odja klaru, sima ki n sta pa n more, I n ka tenba más armundadi ku kusas Sinon un dispidida, ki ta bira es kaza i es ladu di rua Fileras di karuaji dun konboiu, i un partida pitadu Di dentu di nha kabesa I nhas nerbu sakudidu ku osu ta xukalia na ta bai. N sta spantadu oxi, sima kenha ki pensa i atxa i skese. Oxi n sta divididu entri lialdadi ki n debe Tabakaria di kel otu ladu di rua, sima kusa rial pur fora, I sensason ma tudu é sonhu, sima kusa rial pur dentu. // N fadja na tudu kusa. Komu n ka fase ninhun prupózitu, si kadjar tudu era nada. Skola k'es da-m N dixi d'el pa janela di trás di kaza. N ba ti txada ku prupostus tamanhu, Mas so erbas ku arvis ki n atxa la, I ora ki tenba algen era igual a kes otu. N ta sai di janela, n ta xinta nun kadera. Na kuze ki n al pensa? Kuze ki n sabe di kel ki n ta fase ben ser, mi ki n ka sabe kuze ki n é? Ser kel ki n ta pensa? Mas n ta pensa ma mi n é tantu kusa! I ten tantus ki ta pensa ser mesmu kusa ki ka pode ten tantus! Jeniu? Nes mumentu ten mil sérebrus ta sunha ta atxa, sima mi, ma es é jeniu, I kenha ki sabe, stória ka ta marka nen un, Ka ten sinon strumu di tantu konkista futuru. Nau n ka ta akridita na mi. Na tudu manikómiu ten dodus maluku ku tantu serteza! Mi ki n ka ten ninhun serteza, mi é más sertu o menus sertu? Nau, nen na mi.... Na kantu kuartu pertu di seu i kuartus ka pertu di seu di mundu Nes ora ka sta jenius pa-es-propi ta sunha? Kantu aspirason altu nobri i tomadu ku klareza — Sin, verdaderamenti altu nobri i tomadu ku klareza —, I kenha ki sabe si pusível di rializa, Ka ta odja nunka sol ta ratxa rial nen es ka ta atxa obidu di algen? Mundu é pa kenha ki nanse pa konkista-l I non pa kenha ki ta sunha ma pode konkista-l sikre e ten razon. N ten sunhadu más ki kusas ki Napulion fase. N ten pertadu na petu, k'é ka rial, más umanidadi ki kristu. N ten fetu, sukundidu, filuzufia ki ninhun Kant ka skrebe. Mas mi é, i si kadjar n ta ser senpri, kel di kuartu pertu di seu, Sikre n ka mora na el; N ta ser senpri kel ki ka nanse pa kel li; N ta ser senpri apenas kel ki tinha kolidadis; N ta ser senpri kel ki djuntu dun paredi sen porta e spera p'es abri-l porta I kanta kantiga d'infinitu nun kapuera, I obi vos di dios nun posu tapadu. Kre na mi? Nau, nen na nada. Pa natureza dirama-m riba di kabesa ta arde Si sol, si txuba, kel bentu ki ta atxa-m kabelu I restu ki ta ben si ben, o ten ki ben, o dexa di ben. Skravus kardíaku di strelas, Nu ta konkista mundu interu antis d'e labanta-nu di kama; Mas nu ta korda i el fitxadu Nu ta labanta e ka ta djobe nen pa nos, Nu ta sai di kaza i el é tera interu, Djuntadu ku sistema solar i karera nhu santiagu i indifinidu. // (Kume xukulati, minina, Kume xukulati! Odja ma ka ten más metafízika na mundu sinon xukulati. Odja ma tudu rilijion ka ta nxina sinon faze fatiota. Kume, minina tudu ntoladu, kume, Si n podeba kume xukulati ku o-mesmu verdadi ki bu ta kume! Mas mi n ta pensa i, na ta tra papel di prata, k'e di fodja di stanhu, N ta bota tudu pa txon, sima n ten botadu bida): // Mas o-menus ta fika di margura di kel ki nunka n ka ta ser Kaligrafia rápidu d'es versus Portal kebradu pa inpusível. Mas o-menus n konsagra pa mi un disprezu sen lágrimas, Nobri pelu menus na jestu largu ki n ta fúlia Kel ropa xuxu ki mi n é, sen rol, pa kusas na ses kontise, I n ta fika la na kaza sen kamiza. // (Bo, ki bu ta konsola, ki bu ka izisti i purisu bu ta konsola, Ó deuza grega, konsebedu sima un státua bibu, Ó patrísia rumana, ki más nobri i más disdisgrasada é npusível Ó prinseza di trovadoris, ton gentil i kulurida, Ó markeza di séklu dizoitu, dikotadu la lonji, Ó kes mudjeris freska, famadu, di tenpu di nos pai, Ó n ka sabe kuse k'é mudernu — n ka ta konsebe ben kuse — Tudu kel li, seja kuse ki bu é, pode nspiradu pa nspira! Nha kurason é un baldi dispixadu. Sima kes ki ta invoka spritu ta invoka spritu, n ta invoka Mi propi i n ka ta atxa nada. N ta txiga pa janela i n ta odja rua ku un klareza total. N ta odja lojas, n ta odja paseius, n ta odja karus ta pasa, N ta odja kriaturas bibu ki ta kruza bistidu, N ta odja katxor ki tanbé izisti I tudu kel li ta peza-m sima ki n kondenadu bai pa lonji, I kel li tudu é stranjeru sima tudu kuza.) // N vive, n studa, n ama, ti n akridita, I ka ten algen ki ta pidi zimola ki n ka ta inveja oxi so pamodi el é ka mi N ta odja pa ratadju di kada un, si txagas i mintira, N ta pensa: si kadjar nunka bu ka vive nen bu ka studa nen bu ama nen bu ka kridita (Pamodi é pusível fase rialidadi di tudu kel li sen fase nada di kel li); Si kadjar n izisti apenas sima un lagartu ki kortadu rabu I k'é rabu pa la di lagartu ta ramexe manenti. // N fase di mi kuse ki n ka sabe, I kusé ki n podeba fase di mi n ka fase. Kel domino ki n bisti staba eradu. N fika konxedu logu pa kenha ki n ka era i n ka disminti, i n perde. Kantu n razolbe tra maskra, E staba pegadu na nha rostu. Kantu n tra-l i n djobe na spedju Dja n staba bedju. N staba moku, dja n ka sabeba bisti domino ki n tra. N bota maskra fora i n durmi na kau bisti Sima un katxor ki jerensia ta tolera Pamodi e ka ta fase ninhun mal I n ta ba skrebe es stória pa n prova ma mi é sublimi. Isensia muzikal di nhas versu inútil, N ta kreba atxaba-bo sima kusa ki n faseba, I n ka fikaba senpri dianti di tabakaria dipadianti, Ta kalka ku pe konsiensia di sta izisti Sima un tapeti ki un mokeru tropesa n'el O un kapaxu ki siganus furta i ka baleba nada. // Mas donu di tabakaria txiga porta i e fika na porta. Ku diskonfortu n djobe-l ku kabesa tortu I ku diskonfortu di nha alma ta ntende mal. El e ta more i mi n ta more. El e ta dexa tabuleta, mi n ta dexa versus. Nun sertu altura tabuleta ta more tanbé i rua undi ki tabuleta stevi, I kel língua ki versus foi skritu na el. Dipos ta more kel planeta ta da boita undi tudu kel li kontise. Notus satéliti dotus sistema kualker kusa parsedu ku algen Ta kontinua ta fase kusa parsedu ku versus ta vive baxu di kusas parsedu ku tabuletas, Un kusa senpri dianti di kel otu, Senpri un kusa ton inútil sima kel otu, Inpusível senpri ton stúpidu sima rial, Misteriu di fundu senpri ton sertu sima sonu di misteriu di superfisi Senpri kel li senpri otu kusa o nen un kusa nen otu. // Mas un omi entra na tabakaria (pa kunpra sigaru?) I rialidadi ki ta faze sentidu kai di rapenti riba di mi. N arma labanta si xeiu di forsa, konvensidu, umanu, I n sta ba tensiona skrebe es versus undi n ta fla u-kontráriu. Ora ki n sta pensa skrebe-s n ta sende un sigaru I na sigaru n ta saboria libertason di tudu pensamentu. N ta sigi fumu di sigaru sima ki n sta sigi un rota singular, I n ta goza, nun mumentu konpitenti i di sensason, Libertason di tudu spekulason I konsiensia ma metafízika é un konsikuensia di sta mal-dispostu. // Dipos n ta deta pa trás na kadera I n ta kontinua ta fuma. Timenti Distinu ta pirmiti-m kel li n ta kontinua ta fuma. // (Si n kazaba ku fidju-fémia di mudjer ki ta lababa-mi ropa Si kadjar n ta serba filis). N ta bisti kel li n ta labanta di kadera. N ta bai janela. // Omi sai di tabakaria (ta ba ta mete troku na djilbera?). Ah, n konxe-l: é Stevis sen metafízika. (Donu di tabakaria txiga porta) Sima ki pur un instintu divinu Stevis vira e odja-m. E fase-m adios ku mo, n grita-l adios o Stevis, i universu Rakonstrui pa mi sen idial nen speransa, i Donu di Tabakaria poi ta suri.
Poetisaangolana,AldaFerreiraPiresBarretodeLaraAlbuquerquenasceu a 9 dejunhode1930,emBenguela.
TendovindoparaPortugalmuitonova,concluiuemLisboa o ensino secundário.Distinguiu-secomoalunanoColégiodePaulaFrassinettidacidade deSádaBandeira - hojeLubango - e noLiceuD.MariaAmáliaVazdeCarvalho, emLisboa,ondeterminou o 7.ºano.
Começandoporfrequentar a FaculdadedeMedicinadeLisboa,acabou o curso emCoimbra,ondeapresentouumatesesobre"PsiquiatriaInfantil". Reconhecidanomeioacadémico,estateseproporcionou-lheumconvitepara seespecializaremParis,paraquedepoisingressassenumestabelecimento psiquiátricodeLisboa.Contudo, a suadedicação e amor à Terra-Mãeimpediu-a deresponder a estasolicitação.
Irmã do escritor Ernesto Lara Filho,
casou-secom o escritorOrlandode Albuquerque,tambémmédicodeprofissão, e frequentou,comomuitosoutros seusconterrâneos, a daCasadosEstudantesdoImpério(CEI),onde desenvolveuimensaatividade.
Comumagrandeligaçãoaomundoliterário,AldaLaraerareconhecidapela suacapacidadededeclamação,cujasingularidadeatraiu,entreoutros,os poetasafricanos.Assim,fezváriosrecitaisemLisboa e Coimbra, transformandoesteslúdicosmomentosemverdadeirosveículosdedivulgação dapoesianegra,atéentãoaindamuitodesconhecida.
Foicolaboradoradealgunsjornais e revistas,nomeadamentedoJornal de Benguela, doJornal de Angola, doABC e Ciência e darevistaMensagemda CEI,daresponsabilidadedoDepartamentoCulturaldaAssociaçãodos NaturaisdeAngola(ANANGOLA).Nestarevistapublicou,nonúmerodeabril de1952, o poema"Rumo",dedicadoaofalecidoestudante e contista moçambicanoJoãoDias.
Integrando a GeraçãodaMensagem,fortementeinfluenciadaformal e tematicamentepelacorrenteModernistade1922 e peloNeorrealismo português, a autoravaisaciar-senasorigensdoseupovo,descaracterizadopor imposiçãodaculturacolonial.Nestepretéritoancestral,metaforicamente designadopor"MãeÁfrica", a autora,assimcomotodosos"poetas mensageiros"vaiencontrar a Almadasuaproduçãotextualatravésdaqual procura"despir-se"dacamisaopressivadahistóriacolonial. O dramados contratados, a situaçãodamulherangolana, a repressãoexercidasobre o uso daslínguasnativas, o desejoderegressar,etc.,são,porisso,temasrecorrente se abordadosdeformaavassaladora: " Quandoeuvoltar/quesealonguesobre o mar/omeucantoaoCriador!/Porquemedeu a vida e o amor,/paravoltar? / Ah!Quandoeuvoltar?/Hãodeasacáciasrubras,/asangrar/numaverbenasem fim,/florirsóparamim./E o solesplendoroso e quente,/ o solardente,/háde gritarnaapoteosedopoente,/omeuprazersemlei?/Aminhaalegriaenorme depoder/enfimdizer:/Voltei!?".
Tendosidopublicadapostumamentenumvolumedepoesia e numcadernode contospeloseumarido,OrlandodeAlbuquerque, a suaobrafiguraem diversasantologias, a saber:Antologia de poesias angolanas, NovaLisboa,1958;Amostra de poesia in EstudosUltramarinos,n.º3,Lisboa,1959;Antologiada Terra Portuguesa -
Angola,Lisboa,s/d;Poetas Angolanos, Lisboa,1962;Poetas e Contistas Africanos
, S.Paulo,1963;Mákua 2, Antologia Poética , Sáda Bandeira,1963;Contos Portugueses do Ultramar- Angola , 2.ºvolume,Porto,1969;Livros Póstumos: Poemas , SádaBandeira,1966;Tempo de Chuva, Lobito, 1973.
Comumaatividadediversificada,feztambémalgumasconferências,umadas quais - "ConferênciasobreproblemasdaAssistênciaMédicaMissionáriaem África" - seencontrapublicada,dada a suaimportância e repercussão.
Depoisdasuamorte, a CâmaraMunicipaldeSádaBandeirainstituiu o Prémio AldaLaraparapoesia.
FaleceuemCambambe,noKwanza-Norte, a 30dejaneirode1962.
Alda Lara in Artigos de apoio Infopédia [em linha]. Porto: Porto
Editora, 2003-2017. [consult. 2017-08-27]. Disponível na
Internet: https://www.infopedia.pt/apoio/artigos/$alda-lara
A ESCRITAFEMININA NO PANORAMALITERÁRIOAFRICANOEMLÍNGUA
PORTUGUESA
A produçãoliterária de autoria femininaainda
é muitoincipientenospaísesafricanos de língua
portuguesa. Isto constitui umparadoxo, jáquedurante as lutas
libertárias as mulheres desempenharam importantepapelpolítico nas organizaçõesque lutavam contra
o colonialismo. […]
No cenárioliterário
angolano figuracomo
precursora na poesia Alda Lara, autora
de Poemas
(1966), Poesia
(1979) e de umlivro
de contos intitulado Tempo de Chuva
(1973). A temática da suaobra é a opressão, que assola homens e mulheresemgeral,
e, apesar de abordarquestõesuniversaiscomo a fraternidade,
a solidariedade e a paz,
seuenfoque
poético está direccionado para as formas de acção feminina
na busca do espaço
sonhado, emespecialnosanos
de 1950-1960, quando se intensificava o
projecto libertário angolano.
Tal projecto se
nutria da utopia de homens
e mulheres compartilharem a construção da nação
idealizada pelos angolanos. Comnítidapercepção do sofrimento que
assolava a humanidade da época,
Alda Lara ultrapassa a concepção
nacionalista paraouvir
as «vozes silenciadas» além da África de língua
portuguesa:
POEMA
Os gritos
perderam-se semencontrareco.
Os punhoscerrados
e os ódioscalados
Dividiram os Homens, que se não
reconheceram mais...
Mas as lágrimas
cavaram sulcosfundos nosolhosvazios de esperança,
e os sulcosnão
se apagaram...
Trilhando entre o «eu», o
sonho e o povo,
característicasque
a aproximam de Alda Lara, Noémia de Sousa direcciona seusversosparaapreender o próprio «eu» comoexpressão da subjectividade femininarepleta de imagensque corporificam os desejos
«espirituais, admirações,
dores e sensações»
(InocênciaMata,
Literatura Angolana: silêncios
e falas de uma voz
inquieta, p. 122). […]
Numa leitura intertextual entre
«Negra», de Noémia de Sousa, e «Prelúdio»[1], de Alda Lara,
verifica-se a força da vozpoéticafeminina, que
no dizer de InocênciaMata, emLiteratura Angolana: silêncios e falas
de uma voz inquieta, se liga à ideia de regresso
e comunhãocom
a Terra, com
o Povo e com
a causa colectiva.
As seguintesestrofes
do poema «Prelúdio», de Alda
Lara, ilustram a busca da identificação imagética da situação
a que foram expostas as comunidades africanas de língua
portuguesa, emespecial
as mulheres, durante
a colonização:
Pelaestrada desce
a noite…
Mãe-Negra, desce comela...
Nembuganvílias
vermelhas, nem vestidinhos de folhos, nembrincadeiras
de guisos,
nas suasmãos
apertadas.
Só duas lágrimas
grossas, em duas faces
cansadas.
Mãe-Negra tem voz de vento, voz de silêncio
batendo
nas folhas do cajueiro...
Tem voz
de noite, descendo,
de mansinho, pelaestrada...
Que é feito
desses meninos que gostava de embalar?...
Que é feito
desses meninos queela
ajudou a criar?...
Quem ouve agora as
histórias que costumava contar?...
Mãe-Negra não sabe nada...
Mas ai de quem
sabe tudo, comoeu
sei tudo
Mãe-Negra!...
Os teusmeninos cresceram,
e esqueceram as histórias que costumavas contar...
Muitos partiram p'ra longe,
quem sabe se hão-de voltar!...
Sótu ficaste
esperando, mãoscruzadas
no regaço, bemquietabemcalada.
É a tua a voz deste vento,
desta saudade descendo,
de mansinho pelaestrada…
Lisboa,
1951
As marcas da oralidade
e da História permeiam a poesia de Alda Lara […].
Entre os temas propostos pelas escritoras, está o repensar da condiçãofeminina, num cenáriosocial marcado pelaopressão, pelasubmissãofeminina
e pelas guerras coloniais que silenciaram a confraternização presente
no ritual do contarestóriasemvolta das fogueiras.
Mas há tambémlugarpara o amor revivificado na intersecção dos tempos, ponto de convergênciaentretradição e modernidade.
A poética e a prosa
femininas nas comunidades africanas de língua portuguesa colocam o leitordiante de cenas
e sinais de mulheresemespera e
acção, emsilêncio
e canto, emcansaço e renovação, metaforizadas porvozes
marcadamente oraisque
aproximam os sentidos na reescrita literária, reinventando imageticamente o papel da mulher
nessas comunidades.
JuremaOliveira,
“A escritafeminina
no panoramaliterárioafricanoemlíngua portuguesa: Alda Lara, Noémia de
Sousa, Ana Paula Tavares, Vera Duarte e Paulina Chiziane” in http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=657,
2002.
[1] Alda Lara, aquando da suapassagempor
Coimbra, manifestasaudadesnãosó
das acácias rubras e buganvílias de Benguela comotambém das pessoas,
como a suavelhaamanegra – Lydia – a quem
dedicou o poema “Prelúdio”.
(cf. Alda Lara na modernapoesia angolana, Amândio César).
ALDA LARA NA REVISTA MENSAGEM
A poetisa Alda Lara aparece na antologia [revistaMensagem]
comalguns
de seusmaisconhecidospoemas.
As característicasmais
significativas de suapoesiasão, semdúvida, a expressão de umgrandeamor
ao seusemelhante
e a acolhida ao sofrimento do outro.
Estas características podem privilegiarvisões
contrastantes sobre a beleza
da natureza e o sofrimento do angolano (conforme “Prelúdio”)
oudeclararumamorintenso a Angola,
valendo-se da poesiaparadescrever as belezas
“das acácias, dos dongos e dos cólios” que marcavam umfortecontrastecom os cenárioseuropeus. É interessante observar,
nospoemas
de Alda- Lara, uma preocupaçãovisualque se
concretiza na composição de pequenosquadrosque procuram captar
as belezas de Angola,
metonimizada pelos “coqueiros
de cabeleirasverdes”,
e de solardente
e pelas “acácias rubras, /salpicando de sangue as avenidas,
/longas e floridas” (p. 111). Distante
das descrições de cenáriosafricanospresentes
na chamada “literaturaexótica” produzida emváriosmomentos
do período colonial ou
nas famosas “cartes de visite”, postais
ilustrados compaisagens
e tiposhumanos
dos espaços colonizados, produzidos com a intenção
de vender a diferençaexótica aos europeus,
os cenários poéticos criadoscomdetalhes da naturezaafricana produzem outrossignificados na poesia
de Alda Lara. A intençãomaisevidenteemseuspoemas é a de expressarumgrandeamor à terra angolana (“Noites africanas langorosas/esbatidas emluares..../perdidas
emmistérios…“)[1], exaltar a exuberância
das cores das flores
e os odores dos frutos,
e, através desses artifícios
de motivação pictórica, denunciar
a opressão sofrida pelos
angolanos, seusirmãos.
Porisso,
emalgunspoemas, os recursos
picturais utilizados pela poetisa
procuram ressaltar o horror
disseminado por acções humanas, pelaopressãointensa sofrida peloseupovo. Porisso é precisoconsiderarque, na poesia
de Alda Lara, a descrição do horror e de atrocidadesfiguraintençõesquevãoalém de aspectosmeramente descritivos. As cenas de mutilação,
talcomo
aparecem, porexemplo,
no belopoema
“Momento” almejam descreversentimentos de compaixão,
repúdio, mastambém dão à descriçãoumpesoque ratifica a denúncia
e inscreve nosversos
a abjecção. Nesse sentido é importanteprestaratenção ao usointencional do gerúndioque funciona nas estrofescomo uma espécie
de pontuação dos focosque devem ser
observados peloleitor/espectador:
Nosolhos
dos fuzilados,
Dos setecorpos
tombados
De borco, no chão
impuro
Eis!
...setemães
soluçando...
Nas faces dos
fuzilados,
Nas setefaces
torcidas
De espantoainda,
e receio, sete noivas implorando...
E do ventre
de além-mundo, Setecrianças
gritando
Na boca dos fuzilados... Setecrianças
gritando Ecos de dor
e renúncia
Pela vidaquenãoveio...
Na boca dos
fuzilados Vermelha de baba
e sangue,
…setecrianças
gritando!
(112-113).
O impacto da cena
descrita, comrecursosvisuais explorados comgrandeperíciapela poetisa, fica intensificado na referência à dor
das mães, das noivas e na alusão às crianças,
que, por
uma estratégia discursiva de grandeefeito,
podem ser visualizadas porqueassim o permitem os significantesque compõem o primeiroverso da terceira estrofe:
“e do ventre de além-mundo”, distendendo
o tempo da acção invocadapelopoema.
No poema “Regresso”
(pp. 116-118), referentes da terra angolana sãoempregadospararessaltar as coresvivas e os odoresfortesque
compõem paisagenssingulares.
O eu-poético se regista commarcas de intensa
subjectividade e as paisagens lembradas são esmiuçadas paracomporcenáriosemque as cores das casuarinas,
das acácias rubras e dos cheiros exalados pelo “húmus vivificante” e pelo
desenho do mar que contorna “uma cidade em convulsão” possam construir uma
visão em que o feminino se mostra com intensidade na declaração do amor pela
terra natal.
Conforme se destacou em outro trabalho, a visão e o olfacto são os
sentidos privilegiados para propiciar recortes em que a terra africana é
descrita em toda sua pujança, vista como um lugar paradisíaco, onde é possível
viver o “prazer sem lei” expandido em excesso (cf. FONSECA: 2004). A simbologia
da Mãe-Africa, reiterativa nos poemas de afirmação da identidade africana,
inscreve um outro olhar que procura descrever os cenários da terra aquecida por
um sol “esplendoroso e quente”. Também no poema “Presença [Africana]”
(pp. 114-115), a relação entre o feminino e a terra angolana, entre o corpo da
mulher e o da terra africana, ressalta aspectos que tornam Angola um
micro-cosmo de um continente significado por “coqueiros de cabeleiras verdes! e
corpos arrojados sobre o azul”. Nesse poema, a mulher, literariamente construída
(“E apesar de tudo/ainda sou a mesma!/Livre e esguia”), realça-se com os
atributos da terra africana e, através desse recurso poético, concretiza uma
visão feminina do ideal a ser conquistado. A terra do “dendém”, “das
palmeiras”, das “acácias rubras” é percebida através de atributos que se
relacionam com a função materna (“mãe forte da floresta e do deserto”) ou com
um sujeito que se declara afectivamente irmã (“ainda sou /a irmã-mulher”).
Assim os poemas de Alda Lara, ao cantar o amor pelos irmãos miseráveis ou
construir flagrantes em que a beleza da terra angolana é reiterada, expande o
intimismo e faz da visão um mecanismo hábil à apreensão de cenários em que o
outro (a Mãe-negra, os oprimidos, os companheiros de ideal) é a motivação maior
de uma arte feita com a escrita.
“Mulher-poeta e poetisas emantologias
africanas de língua portuguesa: o femininocomoexceção” por
Maria Nazareth Soares Fonseca
(PUC-Minas, Brasil) in A mulherem
África – Vozes de uma margemsemprepresente, org. InocênciaMata e Laura
Cavalcante Padilha, Lisboa, EdiçõesColibri, 2007, pp. 498-500.
[1]Versos do poema “Noite”,
escritoemOutubro de 1948 (FERREIRA,
p. 115).
ESBOÇO DE INTERPRETAÇÃO
DA POESIA DE ALDA LARA
Alda Lara pertence a umnúcleo de altaburguesiacomercial, que
dispunha das disponibilidades
necessárias paradar aos filhoscursossuperiores nas terraslonges de Portugal. Elementoesteque,
como é óbvio,
nosajuda
a colocar o poeta e a entendermelhor a articulação do seucanto. Emtalcaso
a poesia surge como
uma somaorgânica
de conteúdoshumanos
e a poesia sugere a elaboração
de uma atitudecoerenteque representa a totalidade
de uma acção humana. Neste aspecto a poesia de
Alda Lara caracteriza nãosó o ambiente
Benguelense que foi o da suainfância e
de partesubstancial
da suaadolescência,
mastambém
o despaisamento, o exílio, como será melhordizer, do estudante
angolano nas universidades portuguesas.
Decertoque Alda Lara sóporreflexofamiliar
sentiu a totalidade dos problemascívicosque
atingiram o cumenosanos 40; não
os podia aindainvestigar
e sentircom
exacto conhecimento de causa.
E o facto de ter abandonado Benguela muitocedoparafazerem
Lisboa e em Coimbra o seucurso de medicina, iria deixar-lhe na retina
o cantorubro
e incendiado (paraalgunspoetas angolanos tambémincendiário) das acácias
das ruas de S. Filipe de Benguela, os
cólios e os coqueiros e também a imagem
dos quintalões benguelenses, que eram ainda o compromissoentre uma culturaque procurava assentar
as suasbases
numa efectiva mestiçagem e o despontar
de atitudesmais
rígidas entre as etnias
(que a rápida
valorização dos «produtos coloniais», nosanosseguintes a 1945 firmou definitivamente)
quehojesãomoedacorrente. Não
podemos esquecerque
é desse ambientequelhe nasce o pendorpatriarcalistaque
pode beberainda
no tratofamiliar,
embora muitas vezes
se perturbe perante a mestiçagemque é elementocomum, irreversível.
Comojá
iremos ver, a atitudeirracional da poesia
de Alda Lara, assentaemgrandeparte numa atitude utópica,
que desconhece os elementosimediatos do real.
A poesia de Alda Lara está incompleta. É, antes
de mais, uma poesiaque vive no mundo
da infânciaou
de uma primeirafase
da adolescência. Poesiaduplamente exilada, por
consequência. Toda a vidainterior
do poeta se articula emrelação a uma angolanidade que, emboranão sendo conjugadacomtodos
os elementos do real,
é no entanto uma força
aglutinadora quenão
pode ser descurada, mas
nas palavras entrevemos, implícitoouexplícito, o sentimento
do exílio e, algumas vezes, a suspeitadolorosa de que
a sua angolanidade não
se apoderou dos elementosmaissignificativos.
Ou, se não
quisermos irtãolonge, a poesia
sente quenão
cuidou de se apoderar de todos os elementossignificativos.
É estesentimento
angustioso queleva
Alda Lara a escrever no poema
«Presençaafricana»,
emque
se promete à suaterra,
aindaintacta,
aindaidêntica
a rapariguinha que saiu de Benguela, nãopara se deixardestruir nas terrasfrias e opacas da Europa, massimpararegressarviva, senhora de uma sageza
actuante. Eisque
Alda Lara examina os seusmínimosgestosparasaber se, realmente, enquantoanda, bebe, dorme, trabalha,
passeia, não
se transformou na Outra,
quepoderiatrair, queporcerto
trairia, a suamesma
angolanidade. Problemaque, emtalcaso, a
obriga a verificar as roldanas
da suaintimidade,
paraacabar, porverificarque, apesar de tudo, é ainda a
mesma (masquanta inoculta angústiaaqui se insinua, no receio
de quealguém
possa destruir a afirmação denunciando-lhe os desvios). Pois é esta formaadversativaquenos importa
reterjáqueatravés
dela chegaremos ao cerne de uma poesia desgarrada, pornãolheter sido possívelviver os problemas
na sua imediatidade, pois
eram elementosapenassentidos. Não
esqueçamos quelhe
faltam pontos de referência,
e que a sualinguagemtrabalha
num vácuoque
o poetanão
pode evitar; desejair ao maisfundo dos problemas,
masnãolhe estão próximos,
sente-os por refracção. E a ordem da suapoesianão é jáumlentocaminharatravés das essências
de uma angolanidade racionalmente
estruturada, masumassalto precipitado aos signos, engendrando umestiloque,
embora dotado de boas qualidades rítmicas, pretende chegardepressa. Esta busca
apaixonada da suaprópriaraiz, não
aniquila a possibilidade de umestilo, mas
corroe o imo significativo da poesia
transformando-a num elementoambíguo. Coisaque Alda Lara sente, e quenosleva
a concluirque
a suapoesianão chegou a completar-se. Emvez do círculo fechado e total,
temos o ânguloraso.
Vejamos outropoema
de Alda Lara, emque
é utilizada uma técnica contrapontística
paranosfazersentir, mais do que
mostrar-nos, a sua angolanidade. É um dos seuspoemasmaisconhecidos, o «Regresso»,
queassenta,
emprimeirolugar, na noção
de exílio, fornecida peloprimeiroverso
(«Quandoeuvoltar»). Essa mesmanoção irá depoisestabelecer o contrasteentre os elementoscitadinos, digamos lisboetasou coimbrões, e os elementosecológicosque
definem a presença de Benguela. Uma presençaemque
distinguimos uma lentacópulaentre o azul ultramarino e o verdeintenso, glauco. É assimque pressentimos que
o poeta se viu forçado
a fazer o inventário
dos objectos da cidade, estabelecido através de umnovelo de sensaçõesquesãonãosóconscientes, mastambéminconscientes
e sub-conscientes. Neste caso,
recorrendo à psicologia, verificamos que a «doceconfusãonatal» está
recheada de elementosque, racionalmente,
o poeta seria incapaz
de exporcoerentemente.
E a exarcebação dos sentidos a que a força a cidade (torna-se necessárioreconhecer, não
o esqueçamos, todos os objectos queencontra e,
também, indicar-lhes a função e o lugarrespectivo; querdizerque se trata de estabelecer uma novahierarquia, tantopara os objectos comopara os actos; naturalmentetambémpara os pensamentos,
o que, no casopeculiar de Alda Lara, força a pesquisa
de novosdominadorespara os sentimentos),
leva-a a evocar os planosmaiscalmos
da cidadenatal,
que é nãoumelemento
de Angola, massim a suaAngola. Vejamos mais
de perto o problema
transposto para a poesia:
«nãomais
o pregão das varinas, / nem o armonótono, igual,
/ do casarioplano…»;
o contraponto fornecido pelafímbriacosteira aparece imediatamente,
paradevolver o poeta ao seuterrenonatalou seja, a consciência
de umlugarquelhe
é próprio e cujas peculiaridadessão, porassimdizer, anteriores ao seu
nascimento. Alda Lara sente-as nãojácomoumelementogeral do meioambiente, massimcomocoisaquelhe foi previamente destinada e que,
portanto, não
é obrigada a estudar
e a valorizar; as coisas
(os objectos e os actos existiam antes
e, porisso,
a suaidentificação
está garantida por uma intimidadeque
o poetanão
poderá nuncatercom os elementos
das cidades portuguesas: «hei-de veroutravez as casuarinas
/ a debruar o oceano...».
E, na terceiraestrofe
do poema, o plano
dos sentimentos (que
pressupõe umcontínuorecurso aos elementos
do subconsciente e do inconsciente),
surge comtoda
a veemência: «Os meussentidos, / anseiam pelapaz das noitestropicais, / emque o ar
parece mudo / e o silêncio
envolve tudo... / Tenho sede... / Sede
dos crepúsculosafricanos
/ todos os diasiguais, / e semprebelos, / de tonsquaseirreais...».
Jápor várias vezes
tenho mostrado que a presença
do mundo da infância
na poesia angolana não
é elementoque
possa serpassadoemclaro,
pois é ele
uma constante. Encontramo-lo tantonospoetas do Norte, comonos do centroou do Sul. E se o recurso
ao mundo da infância
é, porvia de
regra, uma fuga
ao mundo do homemadulto, do homem
da praxissocial,
devemos entenderaqui
o problemacom
uma ópticadiversa.
Todosestespoetas procuram, projectando a poesia no passado,
recuperar uma ausência
da cor, que
permitia ver o mundodefinidocomo
uma totalidadeondenão seria possíveldiscernirqualquerinterstíciotraiçoeiro.
A fragmentação do mundoemhierarquias
de cor, repele o poetapara uma marginalidadequenão
pode deixar de ser
encarada. A tentativa de solução
do problema é, paraalguns deles, uma projecção integral no passado,
que desconhece a solução
dialéctica dos problemas. A formaçãocatólica
de Alda Lara iludiu-a semprequanto à maneira
de solucionar os problemashumanos. É porissoque
o mundo assume uma significação puramenteindividual
e a suapoesia
vive de impulsosorgânicos,
é certo, masquenão
representam uma totalidade. Não
esquecemos, não seria possível esquecê-lo, que
Alda Lara conhece a existência de umpovo, mas as suaspreocupaçõesnuncasãoprofundamentesociais, oupelomenosnão compreende ela
os problemas ao nível
da «acção histórica dos grupos». O apelo
do povo, esse
está bempresente, mas Alda Lara não
consegue descobrir os meandros
da alienação, e a rupturaentre a suaposição e a acção dos grupos surge no poema
«Regresso», emque a terra
angolana nos é dadaatravés de elementosimpressionistas, onde
o homem angolano só
está presente nas batucadas, que
a infância do poeta
recorda, «soando peloslonges, / noitefora...». Excluindo-se voluntariamente
do grupo, recusando-se, pois,
implicitamente, a somar a sua
acção individual ao total
das acções individuaisque formam a essênciareal da acção histórica
do grupo, Alda Lara tinhaforçosamentequemergulhar num mundo
de infância, queera o únicocapaz de lhedevolver a Benguela quieta
dos quintalões, das amas negras, da rua onze — e não
esqueçamos que esta rua
é elemento poético usado tambémpor
Aires de Almeida Santos e Ernesto Lara (Filho); — formando umparaísoideal,
mascompletamentealheio à acção do tempo.
Maseisque parecem
surgirem Alda Lara
algumas tendências colectivas, que pretendem devolver-lhe a noção
de mundototal.
É no poema «Presençaafricana» que
entrevemos uma autocríticadilacerar o conformismo
da suapoesia,
obrigando-a a reexaminar o seudomíniopróprio
e a medir a relação
existente entre o seucomportamento e a totalidade
dos comportamentossociaisonde se define uma angolanidade
empiricamente imediata. É porissoque os doisprimeirosversos
rompem directamente para a matéria
do poema: («E apesar
de tudo / ainda
sou a mesma!»), que
recordam umdiálogoemque
impende sobre o poeta
a acusação de se ter
modificado, num sentidocontrário ao que
pretende afirmar a suapoesia. Para
se caracterizar o poeta
há-de recorrer aos maisesplendorososelementos
do seumundoinfantil, poisquesóassim se poderá aindareconhecercomo
pertencendo a essemundodistante e quealguémlhemostra perdido porsuaprópriaculpa; porissoela
é: «a dos coqueiros, / de cabeleirasverdes
/ e corposarrojados
/ sobre o azul...
/ A do dendém / nascendo dos abraços das
palmeiras... / A do Solbom, mordendo / o chão
das Ingombotas…/ A das acácias rubras, /
salpicando de sangue as avenidas / longas e floridas...», para
se apoderarlogo
de elementoshumanosquenão
conhecíamos na suapoesia
(quenão
surgiam sequer no poema
dedicado ao moçambicano João B. Dias[1]): «Sim! ainda sou
a mesma... / — A do amor
transbordando / peloscarregadores do cais
/ suados e confusos, / pelosbairrosimundos
e dormentes / (Rua
11!... Rua 11!...) pelosnegrosmeninos
/ de barriga inchada / e olhosfundos… » É bemverdadeque
Alda Lara não se identifica inteiramentecom
esta humanidade, que
é paraela,
se não no todopelomenosemparte, uma
sub-humanidade (veja-se que os carregadoressão
suados — o que representa a caracterizaçãofísicaimediata, resultado
de umtrabalhobruto e que
se nos apresenta comoirracional, ouatécomobestial; e confusos — o que pretende assumirumnível de representaçãopsicológica,
que, no entanto,
não podemos interpretarcomo uma hipótese
de fazersurgir a negação da negação,
elemento dialéctico que
Alda Lara não conhece, e cujavalidade
se recusa aceitar). Masnão há dúvida
de que o poema
assume uma outracapacidade
de significação histórica, o que conduz o nível da
significação puramenteindividualparaoutroplano (o que serve paranosmostrarcomo se interpenetram os elementosestéticos, filosóficos e outros, com os
fornecidos pelabiografia
e pelapsicologia),
emque
a possibilidade de uma modificação do mundo, do real,
surge, impondo-se porforça da própria
redução do homem a umestado de sub-humanidade. O absurdo da situaçãoindividual, ou
o absurdo da posição
de algunsgrupos
(o que desvenda o papel
das hierarquias da cordentro deste plano),
e a interpretação do mundo angolano obriga Alda Lara a assumir
a responsabilidade de novascoordenadaspara a sua
angolanidade. Nenhum subjectivismo é possível, diz-nos o poeta, quando os negrosmeninos mostram a evidência
das suasbarrigas
inchadas (as barrigas de gimbonzo, do vernáculo quimbundo), que
denunciam, aos olhos do experto, uma ausência
de elementosvitamínicos
e proteínicos (sabemos que as barrigas inchadas desaparecem facilmente com uma dieta
de leitebem
equilibrada, mas o leite,
sim, o leiteonde está ele?),
e porisso,
aqui se efectiva uma mistura, emboraaindanãoharmoniosa, os dados
sociológicos com os postuladoséticos.
A últimaestrofe
do poema é elucidativaquanto ao sentimento
de ambiguidade que continua a atormentar Alda Lara: «Terra! / Ainda sou a mesma!
/ Ainda sou / a que
num cantonovo,
/ pura e livre,
/ melevanto,
/ ao aceno do teuPovo!...» Aqui
se prometia a grande viragem na poesia de Alda Lara, poisque o poeta verifica existircomodadofuncional
e integral de umpovo, embora
fosse elesentido
à distância (notemos quenão se trata do meupovo, masantes do povo
da terra angolana, o que
denuncia um afastamento quenão podemos
caracterizaragora
e aqui). Assim
as situações ganham neste poema a suadurezaconcreta
e a absurdidade da ordemsocial pede uma acção que
o poetaaindanão sabe qual
possa ser (emborasaibajáquenãobastaexercer
a medicinacomjustaconsciênciaprofissionalparaestarplenamente
justificada). Mas sabe, o que o poema
demonstra, que é necessárioprocurar uma posiçãoemque
o rigor da observação
do concreto, se ligue aos elementosindividuais.
A evolução de Alda Lara condu-la,
obrigando-a a percorrerumcaminhosinuoso
e semeado de obstáculos, à verificação de que
a vidasocial
é essencialmenteprática.
Posição esta quesópoderiaencontrar a suaamplitudenatural
se a Alda Lara tivesse sido possívelcontinuar a suaobra na terraáspera e suave de Angola, em
contacto com a suahumanidade, com
o seupovo.
Este objectivo não
pôde elacumprirracionalmente, mas
o seucorpo
o está objectivando, na velhapovoaçãocomercial
do Dondo, à sombra
de uma das suasacácias
rubras, símbolo dos poetas
angolanos que procuram fundar
as razõesparapromover, semprecommaisintensidade, a independência
da suapoesia.
Alfredo Margarido, “Esboço
de interpretação da poesia
de Alda Lara”, in Mensagem,
1962
(apudEstudossobreliteraturas das nações
africanas de língua portuguesa, Lisboa,
Regra do Jogo,
1980, pp. 300-307)
[1]Poema “Rumo”
dedicado ao J.B.Diasem 1949 à suamemóriaem
1951.
OS
VALORES DO CENTRO
Se, simultaneamente, atentarmos nostextosescritos
a partir do Centro
e do Sul [de Angola],
verificaremos aindaqueemalguns
deles perpassa, ora uma tímidaconsciênciaregional, ora
uma procura de diferenciaçãoface a Luanda. […]
Na apresentação da colecção Bailundo, no livro
de Alexandre Dáskalos, há ummanifesto assinado por
Ernesto Lara Filho e Inácio Rebelo de
Andrade, que se localizam no Huambo. A peça afirma claramente
a intenção de “dar
a conhecer os valores
do centro de Angola,
ao mesmotempoque se pretende estenderdoisbraços —
umpara o Norte e outropara o Sul [...] — paraligar num amplexofraterno essas duas correntes
literárias jácomvidaprópria
[referem-se à colecção Autores
Ultramarinos e à Imbondeiro]. […]
Numa carta sintomática, enviada a Inácio Rebelo de Andrade a partir
de Lisboa e datada de 21 de Janeiro de 1962, Ernesto Lara Filho
garante, a propósito da sequência a dar
à Colecção Bailundo: “Eu creio que a
Alda, [...] depois do Aires e com os «apports» do Alexandre Dáskalos e meu, apesar de pobres, temos muitoaindaquedizeremAngola, devemos dizê-lo. Acho melhorsacrificar o resto
da colecção a essa necessidadeprementeque há imediatamente, de dizeralgo, sobre o Centro de Angola,
literariamente falando, claro. Aliás, autores
ultramarinos acabam de publicar […] os seguintespoetas:
António Jacinto, Agostinho Neto, Alexandre Dáskalos, Manuel Lima,
etc etc, dando um carácter estritamentepolítico
à coisa. Bailundo
é literaturacomonós combinámos e de «pés fincados na terra». Assim, eu creio
queainda
e acima de Imbondeiro e Autores
Ultramarinos, vamos no caminhomaiscertoque é o moderado, o do centro,
o do centro de Angola,
por casualidade.” […]
Numa carta de Alda Lara ao
irmão (parcialmente
copiada poreste
naquela a que acabamos de aludir,
e talvezescritaem 1961) a identificaçãoregional da suapoesia é igualmente
assumida conectando-se com o distanciamentoface
à estrita partidarização da Mensagem: “Gostaria
queme
dissesses o que devo fazerparateenviar uma selecção dos meuspoemaspara a
Colecção Bailundo. Creio jásertempo
de os pôrcáfora, e na verdade gostaria
mais de os vêr «integrados» na Colecção Bailundo do que na dos Autores Ultramarinos.Nemsequer é porrazõespolíticas.
Nunca as tive e agora
é que as não
tenho mesmo. A política
e tudoquanto
dela deriva dá-me vómitos, paratefalarcomfranqueza. E apenasporque situo a minhapoesiamaispróximo da tua ou
da do Aires de Almeida Santos do que da dos outros.
Compreendido? Maistarde,
a geraçãofutura
decidirá quais foram os verdadeiros «poetas». O resto
é nada.”
Francisco Soares,
Notícia da literatura
angolana, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, pp. 215-218.
ALDA LARA (1930-1962) – ANTOLOGIAPOÉTICA E LINHAS DE LEITURA
TEMAS DE ESTUDO EM TORNO DA POÉTICA DE ALDA LARA:
Auto-representação do “eu”.
A imagética feminina: inconformismo vs destino de mulher.
Uma educação para os valores: solidariedade, fraternidade, generosidade, evangelismo…
Representação de África: os lugares de afecto, enfeitiçamento e amor pátrio.
LAGO
Todo o meuser
é
umlagofundo e doce…
Poronde
passeiam barcos
commeninos…
namoradosque
se beijam
emnoitessemdestino…
e
tambémtu!
Ohbelosolitário
inesquecível…
Todo o meuser é umlago
doce e fundo…
onde a tristeza,
é
uma ansiosa e definível
aspiração…
CampoGrande,
Agosto de 1959
Linhas
de leitura do poema
“Lago”:
- Interpretação da metáfora contida na 1ª estrofe.
- Dimensãopsíquica revelada pelarepetição da 1ª estrofe
na 5ª.
- Importância da últimaestrofepara a compreensão do
poema – o tempoansioso.
E os livros, rosáriosmeus Das
contas de outrosofrer, Sãopara os
homenshumildes, Quenunca
souberam ler.
Quanto aos meuspoemasloucos, Esses, quesão de dor Sincera e
desordenada... Esses, quesão de esperança, Desesperada
masfirme, Deixo-os
a ti, meuamor...
Paraque, na paz da hora, Emque
a minhaalma
venha Beijar de longe os
teusolhos,
Vás por essa noitefora... Compassosfeitos de lua, Oferecê-los
às crianças Queencontraresemcadarua...
Linhas
de leitura do poema
“Testamento”: - Figura
de estiloqueestrutura a 1ª estrofe:
a antítese.
- Significado das personagens
enumeradas.
- Atitude de doação
do sujeito poético – generosidade,
evangelismo…
MOMENTO
Nosolhos
dos fuzilados,
dos
setecorpos
tombados
de
borco, no chãoimpuro,
eis!
…setemães
soluçando...
Nas
faces dos fuzilados,
nas
setefacestorcidas
de
espantoainda,
e receio,
…sete noivas implorando…
E
do ventre de além-mundo,
setecrianças
gritando
na
boca dos fuzilados...
setecrianças
gritando
ecos de dor
e renúncia
pelavidaquenãoveio...
Na
boca dos fuzilados
vermelha de baba
e sangue,
…setecrianças
gritando!
1952
Linhas
de leitura do poema
“Momento”: - Marcaspopulares: numerologia
e estrofação.
- Significado das personagens
convocadas.
- Valor da pontuaçãoexpressiva.
ROMANCE
Menina dos olhosbelos
dos
verdesolhostãobelos,
menina dos olhostristes...
Sentada
nessa varanda
ondenãopassaninguém
porqueesperas
soluçando
todo o diaquemnão
vem?...
Menina dos belosolhos.
Mãoscruzadas.
Olharvago.
Nem o maisligeiroafago
o
ventoaquite deixou...
Postaentão
nessa varanda,
porqueesperasnoite e dia,
tãoserena
e tãosombria
quemporaquijá
passou?...
Se
tu soubesses menina!...
Enquantobordas
sonhando
em tua toalhafina,
bemperto desta varanda,
quantas
varandas quebraram!
quantas
meninas deixaram
suastão
belas varandas,
e
nuncamais
se tornaram...
Quantas!
Quantas!
E
tu, sentada bordando...
E
tu, sozinha
esperando,
altanoite,
longodia,
porquemte esqueceu, passando...
E
tu, sentada, sonhando...
Hão-de
apagar-se as estrelas
há-de
enrugar-se o arvoredo
E
tu, sentada, sonhando
emsilêncio,
o teusegredo...
Menina! Parte!
Olha o tempo!
Pega na tua, esta mão...
Irás
pelamadrugada
emteucavaloalazão!
Irás
de cabelo solto
e
largasaia
rodada,
irás
de coraçãolivre,
entoando
uma canção!...
Irás!
E contigo, certo,
sóteudestinoliberto
Sótu,
sozinha, à procura
doutra
estrela, noutro céu,
embusca
de quantavida
esta
morteem ti
nasceu!...
1949-1950
Linhas de leitura
do poema “Romance”:
- INTERTEXTUALIDADE com o romance
tradicional português “A Bela
Infanta” (versão de Almeida Garrett):
Estava a bela
infanta
No seujardim assentada, Com
o pente de oiro fino Seuscabelos penteava
Deitou os olhos
ao mar
Viu vir uma
nobrearmada; Capitãoque nela vinha,
Muitobemque a governava.
[…]
- Tempoansioso.
- Inconformismovsdestino
de mulher.
PRESENÇAAFRICANA
E
apesar de tudo,
Ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filhaeterna
de quantarebeldia me sagrou.
Mãe-África!
Mãeforte
da floresta e do deserto,
ainda sou,
a Irmã-Mulher
de tudo o queem ti vibra puro e incerto...
A
dos coqueiros,
de cabeleirasverdes
e corposarrojados sobre o azul...
A do dendém
Nascendo dos braços das palmeiras...
A
do solbom,
mordendo
o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras,
Salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...
Sim!, ainda
sou a mesma.
A do amor transbordando peloscarregadores
do cais
suados e confusos, pelosbairrosimundos e dormentes
(Rua 11!... Rua
11!...) pelosmeninos
de
barriga inchada e olhosfundos...
Semdoresnemalegrias,
de tronconu
e corpo musculoso,
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...
E
eu revendo ainda,
e sempre, nela,
aquela Longahistória
inconsequente...
Minhaterra... Minha, eternamente...
Terra das acácias,
dos dongos,
dos cólios baloiçando, mansamente... Terra! Ainda sou a mesma.
Ainda sou a que
num cantonovo pura e livre,
melevanto,
ao aceno do teupovo!
Benguela, 1953
Num momento em que se pretende, a nível da criação de cânones
nacionais (neste caso angolano) uma poesia que galvanize, que revolte, que incite
a agir, Alda Lara escrevia “Presença Africana”, poema de 1953 que evoca o nome
da revista parisiense cujas páginas deram a conhecer ao mundo os cambiantes do
movimento da Negritude, e onde Alda Lara assume ainda a proximidade em relação
a este movimento.
A evocação de ancestrais culturas africanas é em Alda Lara
substituída pela descrição da paisagem e sublinharia na última estrofe as notas
de consciência social que denunciam os efeitos do colonialismo/capitalismo.
Mas, como diz o crítico angolano Jorge de Macedo em Literatura angolana e Texto
literário (1989), o que se pretendia em 1950 da literatura angolana era algo de
teor mais agressivo: «Em Angola, o nacionalismo, expressamente proclamado pelo
movimento Vamos Descobrir Angola, faz da literatura arma de revolução, com
todas consequências lógicas, tais como a preferência por tematário sobre o
protesto, denúncia, lamento, miserabilismo, a prisão, a tortura, o desejo de
emancipação.» (Jorge de Macedo, 1989: 31).
Noites africanas
langorosas, esbatidas
emluares..., perdidas
emmistérios...
Hácantos de
tungurúluas pelosares!... .......................................................................... Noites africanas
endoidadas, onde o barulhentofrenesi das batucadas, põe
tremores nas folhas
dos cajueiros... .......................................................................... Noites africanas
tenebrosas..., povoadas
de fantasmas e de medos, povoadas
das histórias de feiticeiros que as amas-secas pretas, contavam
aos meninosbrancos...
E os meninosbrancos
cresceram, e
esqueceram as histórias...
Porisso
as noitessãotristes... Endoidadas,
tenebrosas, langorosas, mastristes...
como o rosto
gretado, e
sulcado de rugas, das velhas pretas... como o olharcansado dos colonos, como a solidão
das terrasenormes mas desabitadas...
É que os meninosbrancos..., esqueceram
as histórias, comque
as amas-secas pretas os
adormeciam, nas
longas noites africanas...
Os meninos-brancos... esqueceram!...
Outubro de 1948
REGRESSO Quandoeuvoltar, que se alongue sobre
o mar,
o meucanto
ao Creador! Porqueme
deu, vida e amor,
paravoltar...
Voltar... Ver de novobaloiçar
a frondemajestosa
das palmeiras que as derradeiras horas
do dia,
circundam de magia... Regressar... Poder de novorespirar,
(oh!...minhaterra!...) aqueleodor
escaldante que o húmus
vivificante
do teusoloencerra! Embriagar
uma vezmais
o olhar,
numa alegriaselvagem,
com o tom
da tua paisagem, que o sol,
a dardejarcalor,
transforma num inferno de cor...
…………………………………….. Nãomais
o pregão das varinas, nem o armonótono, igual,
do casarioplano...
Hei-de veroutravez as casuarinas
a debruar o oceano...
Nãomais
o agitarfremente
de uma cidadeemconvulsão... nãomais
esta visão, nem o crepitarmordente
destes ruídos...
os meussentidos
anseiam pelapaz
das noitestropicais emque
o ar parece mudo,
e o silêncio envolve tudo Sede...Tenho sede
dos crepúsculosafricanos,
todos os diasiguais, e semprebelos,
de tons quasi irreais...
Saudade...Tenho saudade
do horizontesembarreiras...,
das calemas traiçoeiras,
das cheias alucinadas... Saudade das batucadas queeununcavia mas pressentia emcadahora,
soando peloslonges,
noitesfora!...
……………………………………….. Sim! Eu
hei-de voltar,
tenho de voltar, não há nadaque mo impeça. Comqueprazer
hei-de esquecer toda esta lutainsana... queemfrente está a terra
angolana,
a prometer o mundo
a quemregressa...
Ah! quandoeuvoltar...
Hão-de as acácias rubras,
a sangrar
numa verbenasemfim, florirsóparamim!...
E o solesplendoroso
e quente,
o solardente,
há-de gritar na apoteose
do poente,
o meuprazersemlei...
A minhaalegriaenorme de poder enfimdizer:
Voltei!...
1948
RUMO
(ao J.B.Diasem 1949 à suamemóriaem
1951)
É tempo, companheiro! Caminhemos ... Longe, a Terrachamapornós, e ninguém resiste à voz da Terra
...
Nela, o mesmosolardentenos
queimou a mesmaluatristenos
acariciou, e
se tu és negro
e eu sou branca, a mesmaTerranos gerou!
Vamos, companheiro… É tempo!
Que o meucoração se
abra à mágoa das tuas mágoas e
ao prazer dos teusprazeres irmão Que as minhasmãos brancas
se estendam paraestreitarcomamor as
tuas longas mãos negras... E o
meusuor se
junte ao teusuor, quando rasgarmos os trilhos de ummundomelhor!
Vamos! queoutrooceanonos
inflama.. . Ouves? É a
Terraquenoschama... É tempo, companheiro! Caminhemos ...
Como se pode ler, o poema contém um apelo para se construir “um
mundo melhor” nesse lugar de pertença de brancos e negros que é Angola. Onde
Alda Lara se afasta de Césaire e Senghor, ou se quisermos, da agenda da
Négritude, é precisamente por não opor brancos e negros, numa união de raças
que poderia ser interpretada como complacência em relação a continuidades
coloniais. Por isso a poesia de Alda Lara foi menos estimada durante o contexto
de guerra (de libertação e civil), porque é uma poesia de paz, não de rotura ou
revolução, embora expresse um sentir coletivo e apoie a construção de uma renovada
Angola pelos “novos”. Esta temática é precisamente a mesma do poema Regresso,
também muito citado e tomado como exemplo emblemático da obra da autora.
“Sermão
de NossaSenhora
do Ó” (1640) Padre
António Vieira.
A figuramaisperfeita
e maiscapaz
de quantas inventou a natureza e conhece
a geometria é o círculo.
[…]. E porque o O é umcírculo, e o ventre
virginal outro circulo, o que pretendo mostraremum e outro é que, assimcomo o círculo do ventre
virginal na conceição do Verbo foi um O que
compreendeu o imenso, assim o O dos desejos
da Senhora na expectação
do parto foi outro
circulo que compreendeu o eterno. […]
O sermãocompletoem: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/BT2803033.html#
AGUARELA MARÍTIMA
A
Irmã-Mulher das gaivotas,
senta-se
à beira do mar...
Solitáriatoda
a tarde,
às
gaivotas vem falar...
E
enquanto as horas
se quebram,
emestilhaços,
no areal,
andam
à tona das ondas,
restos de umsonhoirreal...
A
Irmã-Mulher das gaivotas,
é
delgadacomoelas.
Andavestida
de branco,
como as gaivotasmais belas!...
Masnunca
pôde voar...
Nunca viu de perto,
o céu,
nunca viveu sobre
o mar...
Porisso
essa grandemágoa,
serena e desesperada.
Porisso
as pétalas de água
que caem na balaustrada...
E
a ver as horas
tombando,
sentada
à beira do mar,
a
Irmã-Mulher das gaivotas.
nosolhoscor de esmeralda,
traz
umsilêncio
a chorar...
1951
ELOGIO
DA ESPIRITUALIDADE
(a Charlotte Bronte)
Não digas que
os meusseios
são duas rolas
brancas,
cansadas
de nãopartir...
ouque
o meucorpo
é
umfrutoquente e bom,
queemnoites de verão,
apetece
morder e ferir...
Não digas que
os meuslábios
sãopromessas
de desejos
mal contidos,
ouque
os meuscabelos
soltos
lembram
os afagosligeiros
dos
diasnão
cumpridos...
que as tuas mãos
saibam colher
aquiloquenão foi...
E
tu venhas antes
p’ra medizer,
que a minhasensibilidade
é
trémula e franzina,
como a graça
de
uma flor-menina...
que a minhainteligência
é
funda e nua,
como as noitesquenão
tiveram lua,
e
que a minhavontade,
é
tãoforte
e tãoplena,
quesó
o teuamor,
a condena!...
1951
O GRANDEPOEMA
Este é o poemaqueeu
escrevi
para as crianças
da minhaterra!...
Para as crianças
negras,
e
brancas,
e
mestiças,
semdistinção
de cor...
comungando
o Amor
que as unirá...
Este é o poemaqueeu
escrevi a sonhar,...
de
olhos perdidos no mar,
queme
separa delas...
O
poemaque
escrevi a sorrir…
a
gritarconfianças
desmedidas
nas
ânsiaspartidas,...
quebradas,...
comovelas
de naufrágio!...
O
poemaqueeu escrevi a soluçar,
sobre os livros
ondenão
encontrei
para os sonhosrespostaumdia!...
1949
PÁTRIA
IrmãoNegro!
Tu tens braçoslongoscomo
a noite,
e
vens na voz das casuarinas
batidaspelovento,
beijar as bandeiras
erguidas
sobre o teu
sofrimento...
Tuquesaisagora
das cavernas
do
medo e da escuridão,
paraentoar ao sol escaldante
o
canto da tua libertação
Que sulcas comrios de esperança
a
vidamorta
do meupaís,...
que fecundas comsangue e suor
de esperança
a
vidamorna
do meupaís,...
Tu— IrmãoNegro— Homem
da Terra!
junta a tua voz
à minhavoz,
e
sob a agoniaquente deste céu,
vem
dizertambém,
que a Pátrianão morreu.
Vem
dizer
queparaalém
de
tudo o que
é passado e porvir,
a
Pátria das palmeiras
e dos dongos ficará...
p’ra
sempre ficará brilhando,
sobre a campa dos Homensque se
foram
e
sobre o berço
dos Homensque
hão-de vir…
1957(?)
Alda
Lara, Poemas, Porto, Vertente, 1984 (4ª ed.)
AS
BELAS MENINAS PARDAS
As
belas meninas pardas
são
belas como as demais.
Iguais
por serem meninas,
pardas
por serem iguais.
Olham
com olhos no chão.
Falam
com falas macias.
Não
são alegres nem tristes.
São
apenas como são,
Todos
os dias.
E
as belas meninas pardas,
estudam
muito, muitos anos.
Só
estudam muito. Mais nada.
Que
o resto, traz desenganos…
Sabem
muito escolarmente.
Sabem
pouco humanamente.
Nos
passeios de Domingo,
Andam
sempre bem-trajadas.
Direitinhas.
Aprumadas.
Não
conhecem o sabor que tem uma gargalhada,
(Parece
mal rir na rua!)
E
nunca viram a lua,
debruçada
sobre o rio,
às
duas da madrugada.
Sabem
muito escolarmente.
Sabem
pouco humanamente.
E
desejam sobre -tudo, um casamento decente…
O
mais, são histórias perdidas…
Pois
que importam outras vidas?…
Outras
raças?… Outros mundos?…
Que
importam outras meninas,
felizes,
ou desgraçadas?!…
As
belas meninas pardas,
dão
boas mães de família,
e
merecem ser estimadas…
Alda Lara, Poemas, 1959
Linhas
e leitura do poema “As belas meninas pardas”:
- Depois
do retrato feito das meninas pardas, como poderemos interpretar o conteúdo do
verso 34 e das reticências que encerram o poema?
- Explique
as antíteses dos versos 14 e 15 e relacione-as com a mensagem do poema.
Por fim,
para além da necessária discussão do lugar da obra de Alda Lara na história
literária angolana sublinha -se uma outra vertente crítica da sua poética, focada
nas expectativas sociais de género, no âmbito de famílias privilegiadas. A
educação tradicional e os correspondentes padrões de decoro são representados
por Alda Lara como um processo de estupidificação, de castração interior, para
domesticar as mulheres. Dentro desta temática, cita -se “As Belas Meninas
Pardas”, texto profundamente irónico, que desconstrói a validade de uma
educação uniforme e limitativa.
Na
voz, no olhar, nos sentimentos pré-determinados, ajustados ao protocolo social,
descreve -se a educação da estimável mãe de família para a indiferença pelo que
se passa para além dos limites do seu pequeno mundo superprotegido. A
consciência dos limites descritos revela na voz poética um outro “saber
humanamente”, o qual demarca poeta e leitor para além dos estreitos horizontes
impostos pela educação tradicional a essas “belas meninas iguais”.
LUSOFONIA -
PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO.
Projeto
concebido por José Carreiro.
1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007.
2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/alda_lara.htm, 2016.