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sábado, 17 de maio de 2025

Não vale a pena pisar / Nossa força, Manuel Rui

 

Grupo Ngola, na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa


Não vale a pena pisar

 

O capim não foi plantado

nem tratado,

e cresceu. É força

tudo força

que vem da força da terra.

Mas o capim está a arder

e a força que vem da terra

com a pujança da queimada

parece desaparecer.

Mas não! Basta a primeira chuvada

para o capim reviver.

 

Manuel Rui, No reino de Caliban, Antologia panorâmica da poesia africana de expressão portuguesa II, Lisboa, Seara Nova, 1976, p. 318

 

Texto de apoio:

 

Na derradeira edição da Mensagem, boletim da Casa dos Estudantes do Império publicado a 6 de setembro de 1965, Manuel Rui legou à posteridade um poema escrito sob circunstâncias íntimas e simbólicas: redigiu-o sobre uma mesa de pinho, austera e rústica, que servia de secretária no seu quarto em Coimbra. Intitulado inicialmente “Não Vale a Pena Pisar”, o texto seria posteriormente rebatizado como “Nossa Força”, ganhando novas camadas de significado. Nele, o capim – erva resistente e marginal, não cultivada, não domesticada – emerge como metáfora pungente dos oprimidos, daqueles que, embora invisibilizados, carregam em si a força telúrica da resistência.

Ler mais em: “Fazer nascer uma nação”, Joana Simões Piedade. In: Buala, 14-11-2014. Disponível em: https://www.buala.org/pt/a-ler/fazer-nascer-uma-nacao

 

 

Leitura orientada do poema

1. Situação inicial e simbolismo do capim

  • Objetivo: Analisar a metáfora central do poema.
  • Perguntas-guia:
    • Qual é a situação descrita na primeira estrofe?
    • Que características do capim são destacadas (ex.: origem, resistência)?
    • Por que razão o capim pode simbolizar grupos marginalizados ou explorados?

 

2. Repetição e ênfase temática

  • Objetivo: Explorar o uso da repetição como recurso expressivo.
  • Perguntas-guia:
    • Identifique a palavra repetida ao longo do poema.
    • Que ideia central essa repetição reforça?
    • Como a repetição da palavra "força" se relaciona com o ciclo natural do capim?

 

3. Contraste e estrutura do poema

  • Objetivo: Compreender a oposição entre destruição e renascimento.
  • Perguntas-guia:
    • Localize a conjunção adversativa (mas) que marca uma mudança de sentido.
    • Que situação negativa e positiva são introduzidas por essa conjunção?
    • Qual é o efeito desse contraste para a mensagem do poema?

 

4. Função da frase exclamativa

  • Objetivo: Refletir sobre o tom emocional do poema.
  • Perguntas-guia:
    • Em que momento do poema surge a frase exclamativa?
    • Que emoção do sujeito poético essa exclamação revela?

 

5. Justificação do título

  • Objetivo: Sintetizar a relação entre forma e conteúdo.
  • Perguntas-guia:
    • Por que o título original ("Não Vale a Pena Pisar") funciona como um aviso?
    • Como a resistência do capim justifica a ideia de que "não vale a pena pisá-lo"?

 

6. Conexão com contexto histórico

  • Objetivo: Relacionar o poema com o momento da sua publicação (1965).
  • Perguntas-guia:
    • Que paralelos podemos fazer entre o capim e os movimentos de resistência política/social?
    • Por que razão a data de publicação (próxima ao fecho da Casa) pode ser significativa?

 


quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Do meu país, Eduardo White


 

DO MEU PAÍS

Do meu país. Do país que eu amo, do país que eu temo,
do país que sangro para comer no pão, do país que quero,
do país que doo, do país que amasso como se fosse chão,
do país que tenho, do país que guardo, do país que sonho
como se o lesse na mão, do país que espero, cigarro etéreo,
do país que a minha vida inteira respirou, do país que
lavro, do país que rasgo, do país que a poesia me chorou,
do país com carne, do país com veias, do país que é onde
o sol se deitou, do país que fosse o país que é o país onde
o futuro abalroou, do país do amor, do país dos outros,
do país que é também tudo o que sou, do país chegado,
do país sem barcos, do país que à minha janela me levou.

 

Eduardo White, Até amanhã, coração. Maputo, Imprensa Universitária, 2005


quinta-feira, 4 de julho de 2024

Canção dos rapazes da ilha, Aguinaldo Fonseca


 

CANÇÃO DOS RAPAZES DA ILHA

 

Eu sei que fico.
Mas o meu sonho irá
Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas.

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos frutos, nos colares
E nas fotografias da terra,
Comprados por turistas estrangeiros
Felizes e sorridentes.
Eu sei que fico mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Metido na garrafa bem rolhada
Que um dia hei de atirar ao mar.

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos veleiros que desenho na parede.

 

Aguinaldo Fonseca, Suplemento Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde: Boletim de Propaganda e Informação. Praia, publicação da Imprensa Nacional, outubro de 1958

 

Análise literária do poema

O poema "Canção dos rapazes da ilha" de Aguinaldo Fonseca, publicado no Suplemento Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde em outubro de 1958, aborda a realidade de jovens confinados à vida insular e os sonhos que transcendem essa limitação física. Através de uma estrutura repetitiva e um tom melancólico, o sujeito poético apresenta um contraste entre a imobilidade física e a liberdade do espírito e da imaginação.

O poema inicia com uma declaração contraditória: “Eu sei que fico. / Mas o meu sonho irá” (vv. 1-2). Estes versos contêm as duas certezas do sujeito poético: a realidade de permanecer fisicamente na ilha e a capacidade dos seus sonhos de transcender essa limitação. Esta contradição estabelece o tom para o resto do poema, em que o sujeito poético explora como os seus sonhos poderão viajar e alcançar lugares além da sua prisão insular.

O sonho do sujeito poético propaga-se de várias formas. Ele imagina o seu sonho voando pelo ar (“Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas”), manifestando-se em objetos vendidos a turistas (“Nos frutos, nos colares / E nas fotografias da terra”), encerrado numa garrafa atirada ao mar (“Metido na garrafa bem rolhada / Que um dia hei de atirar ao mar”), e nos desenhos dos veleiros na parede (“Nos veleiros que desenho na parede”). Cada uma destas imagens reforça a ideia de que, embora fisicamente confinado, o espírito e a imaginação do sujeito poético podem viajar e deixar uma marca.

A impossibilidade de o sujeito poético sair da ilha é sugerida pela sua condição socioeconómica e pela insularidade. A pobreza, implícita nas suas circunstâncias, e a realidade geográfica de viver numa ilha limitam as oportunidades de fuga física, acentuando a prisão física em contraste com a liberdade imaginativa.

O poema constrói-se sobre diversos contrastes que enriquecem a leitura:

Presente/Futuro: O presente é representado pela certeza de que o sujeito poético fica, enquanto o futuro é sugerido pelo sonho que irá.

Realidade/Fantasia: A realidade da permanência física contrasta com a fantasia do sonho viajante, capaz de se propagar pelo ar e pelos mares.

Pobreza/Riqueza: A pobreza é subentendida na condição de ficar, enquanto a riqueza é simbolizada pelos objetos que contêm os sonhos, vendidos a turistas estrangeiros.

Prisão/Liberdade: A prisão física de ficar é contraposta à liberdade do sonho que viaja.

Infelicidade/Felicidade: A infelicidade da imobilidade é contrastada com a felicidade imaginada e idealizada nos sonhos que se movem.

Estes contrastes são centralizados na estrutura do poema, particularmente na repetição dos versos "Eu sei que fico. / Mas o meu sonho irá", em que a conjunção adversativa “mas” enfatiza a diferença entre o presente aprisionado e a libertação futura.

O título "Canção dos rapazes da ilha" sugere que o poema não é apenas a expressão de um indivíduo, mas representa um sentimento coletivo de uma geração de jovens confinados a uma realidade insular. A "canção" simboliza a voz unificada destes rapazes que, apesar das suas limitações físicas, nutrem sonhos e esperanças de um futuro além das fronteiras da sua ilha. Este sentimento coletivo é emblemático da Geração do Suplemento Cultural, conhecida por sua postura de revolta e pelo desejo de transcender as limitações impostas pelo contexto colonial e geográfico.

 

Geração do Suplemento Cultural

A Geração do Suplemento Cultural, nascida em 1958, aparece como uma Geração muito identificada com uma verdadeira postura de revolta.

O Suplemento Cultural saiu apenas uma vez, pois o segundo foi impedido de sair às bancas pela censura colonial da época.

A situação de Cabo Verde na época levava a que este grupo de homens, reunido à volta desta Geração, questionasse politicamente as verdadeiras causas/razões de tal realidade comprometida, apelando, assim, à revolta humana

Desta forma, é amplamente reconhecido que este Suplemento Cultural marcou, definitivamente, uma atitude radicalmente diferente em relação às Gerações anteriores. Apesar de irem buscar a maturidade literária aos homens da Geração da Claridade (1936) e a maturidade político-social aos homens da Geração da Certeza (1944), os homens da Geração do Suplemento Cultural apresentam-se como homens da Geração da recusa (a favores específicos ao sistema colonial) que aposta na valorização da coletividade - cabo-verdiana, obviamente. O "eu" poético é, assim, um "eu coletivo", um "eu/nós", onde o poeta se apresenta como o porta-voz da dimensão cultural coletiva, identificando-se solidariamente com o seu povo.

Do ponto de vista político-social, a Geração do Suplemento Cultural assume uma postura de combate, de revolta e de alerta, abrindo caminho à mais pura vontade de independência.

Fala do homem que aposta na terra que é sua, negando tendências antigas (seculares, mesmo) de evasão, de fuga, desvalorizando o elemento "mar" para dar vida ao elemento "terra".

Os seus textos são rítmicos, repetitivos, exatamente porque são enfáticos, destinados a revelar claramente as realidades.

A sua principal missão era a de captar a fidelidade do homem cabo-verdiano à sua terra natal e, nas circunstâncias naturais e dimensões espirituais, levá-lo às últimas consequências, por forma a que resultasse na atitude de reconstrução do enraizamento da cultura intelectual em bases profundas e coerentes. A sua maior intenção era a de fazer da arte literária uma projeção intencionalmente combativa da problemática do ilhéu.

Consciencializar o homem cabo-verdiano de que este faz parte integrante de um processo histórico geral que o envolve, era, no momento, o trabalho mais ativo que esta Geração do Suplemento Cultural tinha de levar a cabo.

Porto Editora – Geração do Suplemento Cultural na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2024-07-01]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$geracao-do-suplemento-cultural

 


sábado, 17 de fevereiro de 2024

Mar Me Quer


 

Mar Me Quer

 

O Mar me quer, eu sou feliz só por preguiça
deixei escapar a maré, adormecido
Zeca Perpétuo, sou reformado do mar
tenho juízo de mamba pelo seu olhar

Mar me quer, bem me quer 
Canto chão de luarmina
o coração é uma praia
diz Celestiano à menina

Mar me quer, bem me quer 
com olhos de tubarão
meu avô falava certo
quem demora tem razão

Todas as noites despetalou flores a mulata 
Dona Luarmina, minha vizinha 
logo de manhã passa sonhos pelo rosto 
atrasa a ruga, impede o tempo

 

Letra e música de João Afonso

 

João Afonso Lima (Beira, 1965) é um cantor português. Viveu em Moçambique até 1978, com seus pais e irmãos. Colheu influências da música urbana africana e da música popular portuguesa, esta última pela influência de Zeca Afonso, seu tio materno. A sua colaboração em Maio Maduro Maio (1994), em parceria com José Mário Branco e Amélia Muge, valeu-lhe a atribuição do Prémio José Afonso.

Cristina Mielczarski Santos, A ponte entre a palavra da alma e a palavra do papel: epistolário ficcional miacoutiano. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras, 2013. http://hdl.handle.net/10183/77153

 

***

 

O poema "Mar Me Quer" de João Afonso é uma adaptação musical da novela Mar Me Quer, do escritor moçambicano Mia Couto, cuja leitura se encontra orientada na nossa página da Lusofonia.

Na novela Mar Me Quer, «Mulata Luarmina e Zeca Perpétuo partilham território de vizinhança, chão de terra tão mais velho que eles, olhando o mar que é sempre quem mais viaja.

Luarmina ensombreada de um qualquer silêncio, que de tão longo parece segredo, entardece todos os dias na companhia de Zeca, ouvindo as histórias que vão povoando a paisagem.

Zeca Perpétuo sonha sempre o mesmo: se embrulhar com ela, arrastá-la numa grande onda que os faça inexistir.

Luarmina foi aprendendo mil defesas para as insistências namoradeiras de Zeca, mas um dia resolve negociar falas e outras proximidades, não em troca de aventuras sonhiscadas de Zeca, mas de suas exatas memórias.

E como diz o avô Celestiano "o coração é uma praia", em que o mar, porque nos quer, acaricia memórias e apazigua ausências.

Avô Celestiano é a sabedoria do tempo. Mas também é o fabricador de sonhos. Por via dos sonhos, ele visita os vivos e conduz, na sombra dos aléns, os destinos e os amores de Zeca e Luarmina.

"O que faz andar a estrada? … o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. … para isso que servem os caminhos. Para nos fazerem parentes do futuro." (Mia Couto, Mar Me Quer

 

Natália Luiza, Mar me quer, Coimbra, Cena Lusófona, 2002(Adaptação dramatúrgica da novela homónima de Mia Couto, encomendada pela Cena Lusófona, e colocada em palco pela companhia Teatro Meridional, num espetáculo estreado em maio de 2001, no Teatro Taborda em Lisboa.)

 



 

LER MAIS EM:

 

Mar me quer (1998) -  leitura orientada

Apresentação da obra

Resumo da obra

Desfiar memórias como quem vai desfolhando flores (sobre Mar me quer, de Mia Couto)

Mar me quer: a outra face da lua

O mundo ficcional de Mia Couto – Mar me quer ou o coração é uma praia

Mar me quer: carta como elemento de primeiro contacto.

Imaginância rima com infância: os livros de receção infanto-juvenil de Mia Couto - Mar me quer

Mar me quer, de Mia Couto, entre as literaturas do insólito e juvenil

Mar me quer - propostas de trabalho

 


terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Havia muito sol do outro lado (Crónica de José Eduardo Agualusa)

https://pixabay.com/


     Havia muito sol do outro lado

Aquilo tornara-se um vício. Ele ouvia um telefone a tocar e logo estendia o braço e levantava o auscultador.

– E se fosse para mim?

Os amigos faziam troça:

– No consultório do teu dentista?

Uma noite estava sozinho, no Rossio, à espera de um táxi, quando o telefone tocou numa cabina ao lado. Era no fim da noite e chovia: uma água mole, desesperançada, tão leve que parecia emergir do próprio chão. Ruben enfiou as mãos nos bolsos do casaco.

– É claro que não vou atender – disse alto. – Não pode ser para mim. Se atender este telefone é porque estou a enlouquecer.

O telefone voltou a tocar. Não chegou a tocar cinco vezes. Ele correu para a cabina e atendeu.

– Está?

Estava muito sol do outro lado. Era, tinha de ser, uma tarde de sol.

– Posso falar com o Gustavo?

A voz dela iluminou a cabina. Ruben pensou em dizer que era o Gustavo. Estava ali, àquela hora absurda, abandonado como um náufrago na mais triste noite do mundo. Tinha direito de ser o Gustavo (fosse ele quem fosse).

– Você não vai acreditar, mas a sua chamada foi parar a uma cabina telefónica.

Ela riu-se. Meus Deus – pensou Ruben – era como beber sol pelos ouvidos.

– Não brinques! És tu, Gustavo, não és?…

Sim ele tinha o direito de ser o Gustavo:

– Infelizmente não. Você ligou para uma cabina telefónica, no Rossio, eu estava à espera de um táxi e atendi.

Quase acrescentou: "pensei que pudesse ser para mim". Felizmente não disse nada. Ela voltou a rir:

– Tenho a sensação de que esta chamada vai ficar-me cara. Sabe onde estou?


Pulau Penang


Estava em Pulau Penang, na Malásia, e dali, do seu quarto, num hotel chamado Paradise, podia ver todo o esplendor do mar.

– Nunca vi nada com esta cor – sussurrou – só espero que Deus me dê a alegria de morrer no mar.

Ele ficou em silêncio. Aquilo parecia a letra de um samba. Ela começou a chorar:

– Desculpe que vergonha… Nem sequer sei como se chama.

Ruben apresentou-se: – Ruben, 34 anos, trabalho em publicidade.

Pediu-lhe o número de telefone e ligou utilizando o cartão de crédito. Aquela chamada ficou-lhe cara. Casaram oito meses depois. Ele diz a toda a gente que foi o destino. Ela, pelo sim pelo não, proibiu-o de atender telefones.

José Eduardo Agualusa, A substância do amor e outras crónicas. 3.ª edição, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2009, pp. 53-54

 ***


Escreve um pequeno comentário, entre 80 e 100 palavras, sobre o sentido global do texto de José Eduardo Agualusa, atentando na caracterização de Ruben, nas atitudes perante o telefonema oriundo de Pulau Penang e na importância do destino na vida das pessoas.

(Proposta de escrita por Carla Marques e Inês Silva, em Contos & Recontos 7. Lisboa, ASA2013, p. 152)

 

       Sugestão de resposta:

O sentido global do texto é mostrar como o destino pode intervir na vida das pessoas, de forma surpreendente e maravilhosa.

Ruben é uma personagem solitária, que tem o hábito de atender telefones alheios, na esperança de encontrar alguém que lhe fale.

As atitudes perante o telefonema de Pulau Penang são de curiosidade, encantamento e coragem. Ruben decide arriscar-se a conhecer a mulher que lhe ligou por engano, e acaba por se apaixonar e casar com ela.

O destino é a força que une as duas personagens, que vivem em lugares tão distantes e diferentes.

O texto é uma celebração do amor e da magia do acaso.


sábado, 24 de março de 2018

Um amargo dia mundial da poesia



Ontem, dia mundial da poesia (e da luta contra a discriminação racial), dirigi-me à Casa Fernando Pessoa, em campo de ourique, onde se ia proceder à leitura de Tabacaria em língua caboverdeana e ao lançamento duma edição bilingue, promovida por uma associação de afro-descendentes de lisboa.
Afazeres pouco poéticos fizeram com que eu chegasse alguns minutos depois da hora aprazada para o início da sessão. Uma tarjeta amarela, em inglês e português (Pessoa teria gostado), avisava que não seriam permitidas mais entradas. Remoendo as minhas razões, resolvi tocar à campainha. Logo um diligente vigilante acudiu à porta, dizendo educadamente que por razões de segurança não seriam admitidas mais entradas.
 Não sei quem dirige hoje a Casa Fernando Pessoa, nem quem lá trabalha, mas pedi ao vigilante se podia chamar alguém responsável, pois poderia ser alguém que eu conhecesse, dado que em tempos fui assíduo frequentador da Casa, concebi um programa para uma quinzena da cultura caboverdeana, fui convidado de um dia mundial da poesia, onde recitei excertos da Ode Marítima traduzida por mim para caboverdeano (numa casa cheíssima, com gente até nas escadas), fui convidado de um «Dias do Desassosego», com escritores brasileiros e portugueses (sendo um 10 de junho, fiz a minha abertura com um soneto de Camões traduzido por mim para caboverdeano), a biblioteca da casa possui alguns dos meus livros, por mim oferecidos, sou tradutor de Pessoa para o caboverdeano, utilizando o seu alfabeto oficial (uma antologia intitulada Na Sol di Nhas Angústia esteve pronta para sair em 2007, aquando da passagem de Francisco José Viegas pela casa e ainda hoje aguarda edição), ainda a semana passada o número de inverno da revista LER, dirigida pelo mesmo Fancisco José Viegas, publicou uma montagem minha da Ode Marítima em caboverdeano, razões não para ter algum tratamento privilegiado, mas apenas justificativas do interesse que eu tinha naquela sessão onde seria lido e apresentado  Tabacaria na minha língua materna, poema que eu próprio traduzi em 2007, e que aqui vos ofereço na versão de então.
 Passados instantes entrevi, pela fresta da porta meio aberta, uma senhora de fogachos loiros nos cabelos, que entretanto descera até ao patamar da recepção, falar com o vigilante, acenando que não com a cabeça. Logo este se dirigiu a mim, que se encontrava do lado de fora, dizendo: «Lamentamos, cavalheiro, por razões de segurança...». Gostei muito, eu simples poeta, de ser tratado por «cavalheiro», pois a minha aparência não deixava dúvidas: devido ao frio eu vinha trajado de sobretudo castanho-claro, finas luvas castanho-escuro, cachecol verde-escuro, chapéu preto à Pessoa. Quando já ia embora pelo passeio do outro lado da rua, sorrindo como o Esteves sem metafísica, vi aproximarem-se duas senhoras, cujo tez ainda divisei no lusco-fusco de fim de inverno, e sem delongas sumiram casa adentro. Sorri mais uma vez, com um sorriso triste, alvitrando, para meu consolo, que talvez se tratasse do múltiplo Fernando, reencarnado, não heteronimicamente mas em carne e osso, em femininas figuras, e teria vindo indagar ao que vinha tanta gente de pele escura e linguajar estranho.
 Aconteceu num dia mundial da poesia – e sou poeta. Aconteceu na cidade de lisboa – e dediquei-lhe em livro um monumento de palavras intitulado Lisbon Blues. Foi no bairro de campo de ourique, e estavam os meus livros numa feira no jardim da parada. Aconteceu na Casa Fernando Pessoa, e sou tradutor dele. Foi num dia mundial contra a discriminação racial e senti-me profundamente preto.

José Luiz Tavares
Lisboa, 22 de março de 2018
https://santiagomagazine.cv/index.php/cultura/1299-um-amargo-dia-mundial-da-poesia



TABAKARIA

N ka nada.
Nunka n ka ta ser nada.
N ka pode kre ser nada.
Trandu kel li, n ten dentu di mi tudu sonhu di mundu.
//
Janelas di nha kuartu, di nha kuartu di un-dus milion di mundu ki ningen 
                                                                                       ka sabe é kenha        
 (I s'es sabeba é kenha, kuse k'es sabeba?),
Nhos ta da pa un rua undi ninhun pensamentu ka ta txiga,
Rial, inpusivelmenti rial, sertu, diskonhisidamenti sertu,
Ku misteriu di kusas baxu di pedras ku seris,
Ku morti ta poi umidadi na paredi i kabelu branku na omis,
Ku distinu ta konduzi karosa di tudu pa strada di nada.
//
Oxi n sta dirotadu, sima ki n sabe verdadi.
Oxi n sta odja klaru, sima ki n sta pa n more,
I n ka tenba más armundadi ku kusas
Sinon un dispidida, ki ta bira es kaza i es ladu di rua
Fileras di karuaji dun konboiu, i un partida pitadu 
Di dentu di nha kabesa
I nhas nerbu sakudidu ku osu ta xukalia na ta bai.
N sta spantadu oxi, sima kenha ki pensa i atxa i skese.
Oxi n sta divididu entri lialdadi ki n debe
Tabakaria di kel otu ladu di rua, sima kusa rial pur fora,
I sensason ma tudu é sonhu, sima kusa rial pur dentu.
//
N fadja na tudu kusa.
Komu n ka fase ninhun prupózitu, si kadjar tudu era nada.
Skola k'es da-m
N dixi d'el pa janela di trás di kaza.
N ba ti txada ku prupostus tamanhu,
Mas so erbas ku arvis ki n atxa la,
I ora ki tenba algen era igual a kes otu.
N ta sai di janela, n ta xinta nun kadera. Na kuze ki n al pensa?
Kuze ki n sabe di kel ki n ta fase ben ser, mi ki n ka sabe kuze ki n é?                                                                                                   
Ser kel ki n ta pensa? Mas n ta pensa ma mi n é tantu kusa!
I ten tantus ki ta pensa ser mesmu kusa ki ka pode ten tantus!
Jeniu? Nes mumentu ten mil sérebrus ta sunha ta atxa, sima mi, ma
                                                                                        es é jeniu,
I kenha ki sabe, stória ka ta marka nen un,
Ka ten sinon strumu di tantu konkista futuru.
Nau n ka ta akridita na mi.
Na tudu manikómiu ten dodus maluku ku tantu serteza!
Mi ki n ka ten ninhun serteza, mi é más sertu o menus sertu?
Nau, nen na mi....
Na kantu kuartu pertu di seu i kuartus ka pertu di seu di mundu
Nes ora ka sta jenius pa-es-propi ta sunha?
Kantu aspirason altu nobri i tomadu ku klareza —
Sin, verdaderamenti altu nobri i tomadu ku klareza —,
I kenha ki sabe si pusível di rializa,
Ka ta odja nunka sol ta ratxa rial nen es ka ta atxa obidu di algen?
Mundu é pa kenha ki nanse pa konkista-l
I non pa kenha ki ta sunha ma pode konkista-l sikre e ten razon.
N ten sunhadu más ki kusas ki Napulion fase.
N ten pertadu na petu, k'é ka rial, más umanidadi ki kristu.
N ten fetu, sukundidu, filuzufia ki ninhun Kant ka skrebe.
Mas mi é, i si kadjar n ta ser senpri, kel di kuartu pertu di seu,
Sikre n ka mora na el;
N ta ser senpri kel ki ka nanse pa kel li;
N ta ser senpri apenas kel ki tinha kolidadis;
N ta ser senpri kel ki djuntu dun paredi sen porta e spera p'es abri-l 
                                                                                                     porta
I kanta kantiga d'infinitu nun kapuera,
I obi vos di dios nun posu tapadu.
Kre na mi? Nau, nen na nada.
Pa natureza dirama-m riba di kabesa ta arde
Si sol, si txuba, kel bentu ki ta atxa-m kabelu
I restu ki ta ben si ben, o ten ki ben, o dexa di ben.
Skravus kardíaku di strelas,
Nu ta konkista mundu interu antis d'e  labanta-nu di kama;
Mas nu ta korda i el fitxadu
Nu ta labanta e ka ta djobe nen pa nos,
Nu ta sai di kaza i el é tera interu,
Djuntadu ku sistema solar i karera nhu santiagu i indifinidu.
//
(Kume xukulati, minina,
Kume xukulati!
Odja ma ka ten más metafízika na mundu sinon xukulati.
Odja ma tudu rilijion ka ta nxina sinon faze fatiota.
Kume, minina tudu ntoladu, kume,
Si n podeba kume xukulati ku o-mesmu verdadi ki bu ta kume!
Mas mi n ta pensa i, na ta tra papel di prata, k'e di fodja di stanhu,
N ta bota tudu pa txon, sima n ten botadu bida):
//
Mas o-menus ta fika di margura di kel ki nunka n ka ta ser
Kaligrafia rápidu d'es versus
Portal kebradu pa inpusível.
Mas o-menus n konsagra pa mi un disprezu sen lágrimas,
Nobri pelu menus na jestu largu ki n ta fúlia
Kel ropa xuxu ki mi n é, sen rol, pa kusas na ses kontise,
I n ta fika la na kaza sen kamiza.
//
(Bo, ki bu ta konsola, ki bu ka izisti i purisu bu ta konsola,
Ó deuza grega, konsebedu sima un státua bibu,
Ó patrísia rumana, ki más nobri i más disdisgrasada é npusível                                                                              
Ó prinseza di trovadoris, ton gentil i kulurida,
Ó markeza di séklu dizoitu, dikotadu la lonji,
Ó kes mudjeris freska, famadu, di tenpu di nos pai,
Ó n ka sabe kuse k'é mudernu — n ka ta konsebe ben kuse —
Tudu kel li, seja kuse ki bu é, pode nspiradu pa nspira!
Nha kurason é un baldi dispixadu.
Sima kes ki ta invoka spritu ta invoka spritu, n ta invoka
Mi propi i n ka ta atxa nada.
N ta txiga pa janela i n ta odja rua ku un klareza total.
N ta odja lojas, n ta odja paseius, n ta odja karus ta pasa,
N ta odja kriaturas bibu ki ta kruza bistidu,
N ta odja katxor ki tanbé izisti
I tudu kel li ta peza-m sima ki n kondenadu bai pa lonji,
I kel li tudu é stranjeru sima tudu kuza.)
//
N vive, n studa, n ama, ti n akridita,
I ka ten algen ki ta pidi zimola ki n ka ta inveja oxi so pamodi el é ka mi
N ta odja pa ratadju di kada un, si txagas i mintira,
N ta pensa: si kadjar nunka bu ka vive nen bu ka studa nen bu ama nen 
                                                                                      bu ka kridita
(Pamodi é pusível fase rialidadi di tudu kel li sen fase nada di kel li);
Si kadjar n izisti apenas sima un lagartu ki kortadu rabu
I k'é rabu pa la di lagartu ta ramexe manenti.
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N fase di mi kuse ki n ka sabe,
I kusé ki n podeba fase di mi n ka fase.
Kel domino ki n bisti staba eradu.
N fika konxedu logu pa kenha ki n ka era i n ka disminti, i n perde.
Kantu n razolbe tra maskra,
E staba pegadu na nha rostu.
Kantu n tra-l i n djobe na spedju
Dja n staba bedju.
N staba moku, dja n ka sabeba bisti domino ki n tra.
N bota maskra fora i n durmi na kau bisti
Sima un katxor ki jerensia ta tolera
Pamodi e ka ta fase ninhun mal
I n ta ba skrebe es stória pa n prova ma mi é sublimi.
Isensia muzikal di nhas versu inútil,
N ta kreba atxaba-bo sima kusa ki n faseba,
I n ka fikaba senpri dianti di tabakaria dipadianti,
Ta kalka ku pe konsiensia di sta izisti
Sima un tapeti ki un mokeru tropesa n'el
O un kapaxu ki siganus furta i ka baleba nada.
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Mas donu di tabakaria txiga porta i e fika na porta.
Ku diskonfortu n djobe-l ku kabesa tortu
I ku diskonfortu di nha alma ta ntende mal.
El e ta more i mi n ta more.
El e ta dexa tabuleta, mi n ta dexa versus.
Nun sertu altura tabuleta ta more tanbé i rua undi ki tabuleta stevi,
I kel língua ki versus foi skritu na el.
Dipos ta more kel planeta ta da boita undi tudu kel li kontise.
Notus satéliti dotus sistema kualker kusa parsedu ku algen
Ta kontinua ta fase kusa parsedu ku versus ta vive baxu di kusas
                                                                     parsedu ku tabuletas,
Un kusa senpri dianti di kel otu,
Senpri un kusa ton inútil sima kel otu,
Inpusível senpri ton stúpidu sima rial,
Misteriu di fundu senpri ton sertu sima sonu di misteriu di superfisi
Senpri kel li senpri otu kusa o nen un kusa nen otu.
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Mas un omi entra na tabakaria (pa kunpra sigaru?)
I rialidadi ki ta faze sentidu kai di rapenti riba di mi.
N arma labanta si xeiu di forsa, konvensidu, umanu,
I n sta ba tensiona skrebe es versus undi n ta fla u-kontráriu.
Ora ki n sta pensa skrebe-s n ta sende un sigaru
I na sigaru n ta saboria libertason di tudu pensamentu.
N ta sigi fumu di sigaru sima ki n sta sigi un rota singular,
I n ta goza, nun mumentu konpitenti i di sensason,
Libertason di tudu spekulason
I konsiensia ma metafízika é un konsikuensia di sta mal-dispostu.
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Dipos n ta deta pa trás na kadera
I n ta kontinua ta fuma.
Timenti Distinu ta pirmiti-m kel li n ta kontinua ta fuma.
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(Si n kazaba ku fidju-fémia di mudjer ki ta lababa-mi ropa
Si kadjar n ta serba filis).
N ta bisti kel li n ta labanta di kadera. N ta bai janela.
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Omi sai di tabakaria (ta ba ta mete troku na djilbera?).
Ah, n konxe-l: é Stevis sen metafízika.
(Donu di tabakaria txiga porta)
Sima ki pur un instintu divinu Stevis vira e odja-m.
E fase-m adios ku mo, n grita-l adios o Stevis, i universu
Rakonstrui pa mi sen idial nen speransa, i Donu di Tabakaria poi ta suri.  

Rinxoa, abril di 2007