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quarta-feira, 24 de julho de 2024

Neologismo: teadoro, Teodora, Manuel Bandeira

(teadoro, Teadora, in Diálogos 7.
Ilustração: Luís Henriques, Manuel Cruz/WHO, Maria Fernand)

 

NEOLOGISMO

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana1.
inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo
Teadoro, Teodora.

 

Manuel Bandeira, Petróplis, 1947

Poesias completas, acrescidas de Belo belo. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1948

_________

1 A palavra “cotidiana” corresponde a “quotidiana”, na variedade do português europeu (isto é, português de Portugal).

 


Questionário sobre o poema "Neologismo", de Manuel Bandeira

1. O poema chama-se “Neologismo”, pois:

a) dá ideia de coisa ultrapassada;

b) encerra uma mensagem otimista;

c) apresenta características de versos soltos;

d) introduz palavras novas na língua.

e) contesta as regras gramaticais.

 

2. Manuel Bandeira é um dos nomes mais importantes da poesia da primeira fase do modernismo brasileiro; em seu poema “Neologismo”, o eu lírico

a) fala de situações inusitadas da vida do ser humano.

b) expressa a abundância em seu quotidiano.

c) denota acanhamento em suas atitudes.

d) demonstra falta de produtividade.

e) encontra reciprocidade em seus sentimentos.

 

3. “Beijo pouco, falo menos ainda” (verso 1)

3.1. Considerando estas palavras do “eu” poético, como o caracterizas?

3.2. De que forma exprime, então, o sujeito poético os seus sentimentos?

4. O sujeito poético inventou o verbo teadorar, que afirma ser um verbo intransitivo. Justifica esta classificação.

 

Respostas

1. Chave de correção: D

(Fonte: https://exercicios.brasilescola.uol.com.br/exercicios-gramatica/exercicios-sobre-neologismo.htm)

2. Chave de correção: C

A alternativa A está incorreta, pois o eu lírico inventa palavras que traduzem a “ternura mais funda e mais cotidiana”, ou seja, não traduzem situações inusitadas e incomuns, falam de situações do dia a dia.

A alternativa B está incorreta, pois o eu lírico utiliza os termos “pouco” e “menos”, revelando parcimônia e moderação no beijar e no falar, demonstrando uma postura de humildade em seu dia a dia.

A alternativa C está correta, pois o eu lírico declara que beija pouco e fala menos ainda, o que pode ser entendido como timidez e acanhamento, permitindo, ainda, a inferência de que há um certo constrangimento; conhecendo a história de Manuel Bandeira, da tuberculose que o acometeu ainda jovem, debilitando-o durante toda a vida, também, podemos entender o poeta expressa, através desse eu lírico, a convivência com uma debilidade que o impede de viver plenamente.

A alternativa D está incorreta, pois o eu lírico inventa palavras que traduzem os sentimentos do cotidiano, elaborando uma metáfora sobre o fazer poético; portanto, há produtividade.

A alternativa E está incorreta, pois o eu lírico criou um verbo intransitivo, ou seja, que não tem um complemento; desse modo, entende-se que não há reciprocidade, não há correspondência para o verbo que criado, o verbo “teadorar”.

(Fonte: https://vestibulares.estrategia.com/public/questoes/Neologismo-Beijo-pouco523c4356e7/ Elisabete Ana)

3.1. O “eu” poético apresenta-se como tímido, introvertido.

3.2. O sujeito poético inventa palavras “Que traduzem a ternura mais funda / E mais cotidiana.” (versos 3-4).

4. O verbo teadorar é intransitivo, porque nele aparece “incorporado” o ser adorado: teadorar significa adorar Teodora. Isto é, pode-se “adorar” qualquer pessoa, mas teadorar designa uma ação exclusiva, que não transita.

(Fonte: Diálogos 7, Fernanda Costa e Luísa Mendonça. Porto Editora, 2011, p. 199)

 

Texto de apoio

No poema "Neologismo" de Manuel Bandeira, o eu-poético começa com uma confissão: "Beijo pouco, falo menos ainda." Esta declaração inicial sugere uma introspeção que revela a dificuldade em demonstrar afeto através de gestos comuns e da fala. A seguir, o sujeito poético revela a sua solução para essa limitação: "Mas invento palavras que traduzem a ternura mais funda e mais cotidiana." Aqui, é introduzida a ideia central do poema: a criação de palavras como meio de expressar sentimentos que a linguagem quotidiana não consegue captar plenamente.

A invenção do verbo "teadorar" é o ápice do poema. Esta palavra combina o pronome pessoal átono "te" e o verbo "adorar", criando um neologismo que, segundo Eduardo Guimarães, no seu artigo Sentidos no texto - uma análise de “Neologismo”, de Bandeira, é formado a partir da expressão de um sentimento específico ("dizer te adoro") e não simplesmente pela combinação de palavras existentes. Assim, "Teadoro, Teodora" não é apenas um jogo de palavras, mas uma manifestação de amor e afeto entre o eu-lírico e a amada.

Pasquale Cipro Neto afirma que “ao inventar a palavra teadorar, nosso grande poeta inclui nesse verbo o objeto (o alvo) da adoração, daí uma das razões da intransitividade de teadorar. O verbo é intransitivo porque já contém seu suposto objeto.” (…) E por que eu disse uma das razões? Porque outra delas talvez seja o facto de que, sendo intransitiva, a adoração não se materializa, fica presa, contida, fechada no interior de quem a sente. A adoração existe, mas, por alguma razão, não transita, não chega ao ser adorado. Não custa lembrar que, em ‘Beijo pouco, falo menos ainda, o próprio poeta dá uma pista dessa intransitividade de seus sentimentos.” (Folha de São Paulo22-05-2003).

A estrutura do poema também é relevante. Começando com a constatação de limitações pessoais, seguido por uma adversativa que introduz a criação linguística, e culminando com o neologismo que encerra o poema, o sujeito poético guia o leitor através de um processo de autoconhecimento e expressão. Essa progressão estrutura o poema de forma a enfatizar a inovação linguística como um meio essencial de expressão emocional.

domingo, 14 de julho de 2024

Surf, o poema, Manuel Alegre

Gabriel Medina, fotografado por Jerome Brouillet, 29-7-2024

O POEMA

O poema vai e vem. E se demora
não quer dizer que seja demorado
mas que tem como tudo a sua hora
e como tudo é sempre inesperado.

Por muito que se espere não se espera.
Por mais que se construa é acaso e sorte.
Às vezes quando vem já foi ou era.
Porque assim é a vida. E assim a morte.

Por isso mesmo quando distraído
ninguém como o poeta é tão atento.
Ele sabe que de súbito há um sentido.
Vem como o vento. E passa como o vento.

07-07-2005

Manuel Alegre, Doze Naus. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2007

 

De acordo com a leitura do poema de Manuel Alegre, classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas.

1. O poema afirma que a criação poética é algo previsível e controlado.

2. Segundo o poema, o poeta é alguém que se distrai facilmente e, por isso, não percebe quando um poema surge.

3. O verso "Por mais que se construa é acaso e sorte" sugere que, apesar do esforço e do planeamento na criação do poema, o resultado final pode depender de elementos imprevisíveis e fortuitos.

4. No poema, a morte é apresentada como um evento previsível, ao contrário da vida

5. O poeta, segundo o poema, sabe identificar os momentos em que um poema pode surgir, mesmo que esses momentos sejam súbitos e inesperados.

6. A expressão "O poema vai e vem" sugere a natureza efémera e transitória da criação poética.

7. De acordo com o poema, a espera ativa pelo surgimento do poema é sempre recompensada.

8. O papel do poeta na construção/criação do poema é estar atento para captar os sentidos que, sem aviso, podem passar como o vento e aproveitar essas oportunidades.

9. O poeta deve estar atento e sensível para perceber os momentos de inspiração e dar forma ao poema.

10. Manuel Alegre escreveu sobre si próprio: "Se soubesse pintar (mas não sei) faria o meu autorretrato a olhar para ontem, ou para dentro, ou para outro lado. Distraído-concentrado, presente-ausente, um não sei que." (in http.www.manuelalegre.com). Podemos afirmar que Manuel Alegre ao descrever-se como “distraído-concentrado, presente-ausente,” reflete a sensibilidade do poeta em relação aos sentidos e oportunidades que surgem inesperadamente.

11. A antítese é utilizada no poema para contrastar a criação poética com a distração do poeta.

 

CORREÇÃO

1. Falso. O poema diz que o ato da criação poética "é sempre inesperado."

2. Falso. O poema diz que "ninguém como o poeta é tão atento" mesmo quando está distraído.

3. Verdadeiro.

4. Falso. A morte é apresentada como sendo tão inesperada quanto a vida ("Porque assim é a vida. E assim a morte.").

5. Verdadeiro.

6. Verdadeiro.

7. Falso. O poema sugere que "Por muito que se espere não se espera."

8. Verdadeiro.

9. Verdadeiro.

10. Verdadeiro.

11. Verdadeiro (A antítese é usada para mostrar que "quando distraído / ninguém como o poeta é tão atento.")

 

Nazaré, © Jorge Leal

INTERTEXTUALIDADE

 

SURF

De pé na frágil tábua
onda a onda ele escrevia
poesia sobre a água.

Era uma escrita tão una
de tão perfeita harmonia
que o que ficava na espuma

não se podia apagar:
era a própria grafia
do poema do mar.

Foz do Arelho, agosto de 2001

Manuel Alegre, Doze Naus. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2007

 

Niterói, Luiz Bhering


Análise comparativa entre “Surf” e "O poema", de Manuel Alegre

O poema “Surf” de Manuel Alegre apresenta a figura do surfista como um criador que, de pé na sua frágil tábua, escreve poesia sobre a água. Este ato de criar, mesmo que efémero, resulta em algo harmonioso e perfeito, uma "grafia do poema do mar" que, apesar de ser escrita na espuma, não se pode apagar.

O poema “Surf” pode ser visto como o resultado de uma dessas visões inspiradoras que o sujeito poético em “O poema” descreve: "Por isso mesmo quando distraído / ninguém como o poeta é tão atento. / Ele sabe que de súbito há um sentido. / Vem como o vento. E passa como o vento."

Em “O poema”, o sujeito poético afirma que o poeta está atento ao que o rodeia porque sabe que “de súbito há um sentido”. Esta atenção ao momento presente e a abertura para a inspiração repentina é o que permite ao poeta captar e transformar uma visão ou experiência passageira em arte.

No caso de “Surf”, a visão do surfista escrevendo poesia sobre a água pode ter sido uma dessas inspirações súbitas. A imagem do surfista, em perfeita harmonia com o mar, criando algo belo e efémero, reflete a sensibilidade do poeta em captar e eternizar momentos fugazes. Assim como o poeta em “O poema” percebe que “de súbito há um sentido” e que a inspiração vem e passa como o vento, em “Surf” o ato de surfar torna-se uma metáfora para a criação poética, em que cada movimento na onda é uma linha de poesia escrita na espuma, uma manifestação momentânea de beleza e significado que o poeta eterniza em palavras.

Portanto, “Surf” pode ser entendido como uma concretização da ideia apresentada em “O poema”, onde o poeta, atento e inspirado por uma visão súbita, captura a essência do momento e a transforma em poesia.

A relação entre os dois poemas pode também estar na ideia de atenção e sensibilidade necessárias para captar e criar algo sublime e transitório. No poema “Surf”, o surfista representa essa figura atenta que, mesmo num meio instável e passageiro como a água e a espuma, consegue criar algo que transcende o tempo e o espaço, assim como o poeta em “O poema”, que está sempre atento, mesmo quando distraído, captando e dando sentido ao que é passageiro e efémero, como o vento. Neste sentido, ambos os poemas enfatizam a ideia de que a criação artística, seja na forma de poesia ou surf, é um ato de sensibilidade e atenção ao momento presente, capturando o efémero e transformando-o em algo duradouro e significativo. A transitoriedade do vento no poema “O poema” e a espuma no poema “Surf” simbolizam a natureza fugaz da inspiração e da criação, que o poeta ou o surfista consegue eternizar através da sua arte.

 

Nazaré, © Jorge Leal

sábado, 8 de junho de 2024

Escrita criativa | O que é a poesia?

O que é a poesia?

(…) a poesia, apesar de se fazer com palavras, está muito para além delas. É aquilo que essas palavras conseguem levar e depositar no nosso coração. E para que isso aconteça, não é preciso que sejam palavras complicadas, frases elaboradas, rimas perfeitas. (…) É outra coisa. Que não se consegue nomear, mas que se sente. (…)

E não há uma maneira única de escrever poesia. Há quem, através da poesia, conte uma história; há quem recorde um pequeno pormenor que lhe chamou a atenção; há quem evoque cenas familiares; há quem escreva sobre um cheiro ou um olhar; há quem, muito simplesmente, brinque com as palavras e os seus sons.

Há poemas sobre animais, sobre pessoas, sobre sentimentos, sobre a natureza. Há poemas sobre fadas, sobre pastores, sobre crianças e velhos. Há poemas sobre uma rua, sobre uma casa, sobre uma pedra que de repente se encontra a meio do caminho. Há poemas sobre a tristeza e sobre a alegria. E podemos rir e chorar com eles. Pode-se escrever um poema a propósito de tudo. Não há temas melhores ou temas piores: há a arte de saber escrever a seu respeito de uma maneira criativa, ou seja, de uma maneira que seja só nossa.

Alice Vieira, O meu primeiro álbum de poesia. Lisboa, Edições Dom Quixote, 2007



 


Escrita criativa

No vídeo que se segue, a escritora Alice Vieira dá alguns conselhos sobre a forma de escrever textos criativos, como por exemplo: escolham assuntos concretos para as vossas histórias; escrevam muito; não tenham pressa; reformulem o que escreveram, mudando palavras, encurtando frases; não vale a pena usar os adjetivos se eles não forem rigorosos.

O videograma foi criado para o Grande C - Concurso de criatividade para escolas, promovido pela Associação para a Gestão de Cópia Privada (AGECOP), em 2009.



Videograma GC Alice Vieira Escrita Criativa,
p
artilhado por Paulo Pinheiro, em 16/11/2009

 

Composição de um texto por imitação criativa

Escreve um poema composto por inspiração, a partir de uma das propostas que se seguem.

I - Poema sobre uma flor

Escreve um poema sobre uma flor, partindo do seguinte poema sobre o girassol: 

O GIRASSOL

Passa a vida a olhar pró sol!
Segue o sol para todo o lado!
Tivesse olhos o girassol
ou usava óculos de sol
ou já teria cegado.

Jorge Sousa Braga, Herbário, Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 10

 


Escola Virtual

 

II – Poema sobre um animal

Lê com atenção o seguinte poema que tem um animal como tema:

A ÍBIS

A íbis, a ave do Egito,
Pousa sempre sobre um pé
O que é
Esquisito.
É uma ave sossegada,
Porque assim não anda nada.

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.  - 24. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/4481

 

Inspira-te no mundo da bicharada e escreve um poema sobre outros animais.

https://fullbloomclub.net/14-funny-animals-drawing-dive-into-comedic-styles/



III – A casa como metáfora

O que é um livro, para ti? Para que serve?

Faz uma lista de alguns elementos que constituem uma casa (por exemplo portas, janelas, paredes, chaminé).

Inicia cada verso por “Um livro é” seguido de um dos elementos da tua lista.

Exemplo: “Um livro é uma porta que se abre para o mundo.”

Escreve cerca de quinze versos.

Relê esses versos e escolhe os doze melhores, copiando-os para a folha na ordem que consideres mais adequada.

 

Nota: podes substituir a palavra “livro” por outras, como por exemplo: 

  • “Um amigo é…”
  • “A amizade é…”
  • “O amor é…”
  • “A família é…”
  • "Um irmão é..."
  • “A vida é…”
  • “A felicidade é…”
  • “A sabedoria é…”
  • “A natureza é…”
  • “A música é…”
  • “A arte é…”
  • “A paz é…”
  • “A liberdade é…”
  • “A esperança é…”
  • “O sonho é…”
  • “O futuro é…”
  • "Uma ilha é...".


IV – Outros poemas que podem servir de mote ou modelo de inspiração

URGENTEMENTE

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor,
é urgente permanecer.

Eugénio de Andrade, Até Amanhã, 1956

 

AS PALAVRAS

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade, Coração do dia, 1958

 

AS MÃOS

Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

 

Manuel Alegre, O Canto e as Armas, 1967


AMIGO

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra “amigo”.

“Amigo” é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

“Amigo” (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
“Amigo” é o contrário de inimigo!

“Amigo” é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

“Amigo” é a solidão derrotada!

“Amigo” é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
“Amigo” vai ser, é já uma grande festa!

 

Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, 1958

 

O SONHO

Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo Sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma dêmos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

– Partimos. Vamos. Somos.

Sebastião da Gama, Pelo sonho é que vamos, 1953

 

E POR VEZES

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

 

David Mourão Ferreira, Matura idade, 1973

 

ESPARSA

sua ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais m’espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
Assi que, só para mim
anda o mundo concertado

Luís Vaz de Camões (c. 1524-1580)

 

AMOR É UM FOGO QUE ARDE SEM SE VER

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís Vaz de Camões (c. 1524-1580)

 

[AUTORRETRATO]

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,

Eis Bocage em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento

Bocage (1765-1805)

 

PORQUE

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo, 1958

 

TRÍPTICO

II

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
(…)

Herberto Helder, A colher na boca, 1961

 


 Nota: na página Folha de Poesia há mais propostas de escrita criativa.


domingo, 21 de janeiro de 2024

A escrita, por Afonso Cruz

Afonso Cruz, visao.pt/jornaldeletras

 

Ao contrário do que muitas vezes se imagina, a escrita não surgiu para gravar pensamentos, sentimentos, meditações, mas essencialmente para gravar contabilidade, o peso da cevada guardada num celeiro, a quantidade de cerveja guardada em talhas de barro. A escrita surgiu para passarmos faturas e isso começou por ser feito em pedra ou em barro, materiais com alguma durabilidade que ironicamente são a grande matéria-prima das ruínas, já que outros materiais mais efémeros não duram o suficiente para isso. Os números começaram a ser escritos antes das palavras, as faturas precederam a poesia. E isto é algo que jamais perdoarei à história da humanidade.

Também, em pedra, se gravaram códigos e leis. O monólito de Hamurabi é um dos exemplos mais conhecidos. Moisés gravou em pedra os mandamentos e essa foi talvez a primeira grande ruína da escrita, pois foram partidas quase de imediato pelo próprio autor. Desceu a montanha, viu que o povo estava a adorar um bezerro de ouro e irritado partiu as tábuas. Obviamente, deste tipo de escrita, nasce o castigo, o pecado o medo, a censura. Uma sociedade deveria evoluir procurando cada vez mais liberdade porque só assim as nossas ações têm valor. Alguém que pratica a bondade porque é obrigado, não é necessariamente bondoso, quem pratica a justiça porque é obrigado, não é necessariamente justo. A compulsão deveria ser substituída pela educação, pela cultura, para poder resultar numa sociedade verdadeiramente sã.

A sedentarização trouxe-nos a escrita e esta ganhou um poder imenso, como nos diz Dylan Thomas, no poema “A mão ao assinar este papel”:

A subscrição foi submetida com sucesso!
Parte inferior do formulário
A mão ao assinar este papel arrasou    [uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua
 [taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e    [reduziram a metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um    [rei.(…)
A mão ao assinar o tratado fez nascer    [a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas    [vieram;
maior se torna a mão que estende o seu    [domínio
sobre o homem por ter escrito um    [nome.
Os cinco reis contam os mortos mas    [não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem    [acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como    [outras o céu;
 mas nenhuma delas tem lágrimas para    [derramar.

 

O ato de escrever solidifica o pensamento, e este, muitas vezes, torna-se lei, verdade absoluta, relegando os outros ângulos de uma mesma questão, com certeza tão verdadeiros como o que foi escrito e aceito, para o campo da especulação, da mentira e dos contos para crianças. Estamos no terreno do pensamento único, do Deus único, da certeza dogmática, da verdade monolítica, uma espécie de baleia branca, que nos faz desprezar todas as outras baleias. Estas verdades inquestionáveis surgem muitas vezes sob a forma de lei económica, um fenómeno que não é exclusivo do nosso tempo. Chesterton escreveu o seguinte em 1910:

“(…) os grandes nobres que no século XIX se tornaram proprietários de minas e gestores de caminho de ferro garantiram a toda a gente com enorme seriedade que o não faziam por gosto, mas devido a uma Lei Económica recentemente descoberta. E da mesma maneira os prósperos políticos da nossa geração aprovam leis que retiram os filhos às mães pobres; e proíbem calmamente os seus arrendatários de beber cerveja nos pubs. Mas (ao contrário do que o leitor possa supor) contra tal insolência não se erguem universais vozes de protesto, classificando-a de escandaloso feudalismo. Porque a aristocracia é sempre progressiva; a aristocracia é uma forma de impor o ritmo. E as festas dos aristocratas prolongam-se cada vez mais pela noite dentro.”

Voltando às ruínas:

O tempo, claro, é o mais eficiente construtor de ruínas, de casas mortas, de lixo, do fim das coisas, de rugas. O universo é uma espécie de artista ao contrário, que faz com que uma escultura volte a ser pedra bruta ou areia. Contraditoriamente, o tempo também valoriza os objetos e o que resta deles, e, assim, é bem possível que um dia tenhamos turistas só para ver os escombros do nosso país, um pouco como visitamos o Coliseu de Roma.

A certa altura, durante a colonização inglesa da Índia, alguém se lembrou de vender o Taj Mahal em leilão e aos pedaços. A ideia era fazer daquilo uma grande ruína e vender os destroços, bocados de pedra, para decorar lareiras britânicas. Para experimentar este disparate histórico decidiram começar por desmantelar o Forte Vermelho de Agra, construído pela mesma pessoa que mandou edificar o Taj Mahal e vendê-lo pedra a pedra. Como não funcionou, desistiram do plano. Apesar de esta história não estar provada, corroborada pela escrita, não deixa de ser credível. Fomos, ao longo da História, capazes de coisas bem piores.

Passaram-se milénios desde a origem da escrita, mas os números continuam a preceder a poesia, e, de um modo mais lato, toda a cultura e a própria noção de humanidade.

 

Afonso Cruz, “Baleia Branca”, Jornal de Letras, 05-03-2015. Crónica disponível em: https://visao.pt/jornaldeletras/cronicas-jl/2015-03-05-baleia-brancaf812274/

 

***

 

Afonso Cruz inicia e conclui a sua crónica com uma crítica à primazia dos interesses económicos sobre a arte, que se manifesta desde a origem da escrita até aos nossos dias. O autor expressa o seu desgosto pelo facto de a escrita ter nascido para registar contabilidade e não para criar poesia, mas o que ele realmente quer dizer é que deseja que os Homens apreciem mais a beleza das palavras do que as vantagens comerciais.

O autor revela implicitamente a sua frustração com a sobreposição da funcionalidade à estética, ao dizer que não perdoa à humanidade o facto de a escrita dos números ter surgido antes da escrita da poesia. A sua crítica assenta no desejo de uma sociedade em que a poesia e a linguagem sejam mais importantes do que as necessidades práticas do comércio. A sua esperança é que a cultura, a educação e a arte consigam superar as pressões comerciais, gerando assim uma sociedade mais bela e significativa.