Literaturas Africanas de Língua Portuguesa


Literaturas africanas
de língua portuguesa


Índice (para consulta, clique nas hiperligações internas e externas abaixo indicadas)

1. literatura colonial: fronteiras e diferenças em relação às literaturas africanas
3. Literatura colonial e pós-colonial
4Literaturas africanas escritas em língua portuguesa: o papel da imprensa e do ensino para o seu surgimento
5. Literaturas africanas de língua portuguesa — um fenómeno do urbanismo
6Precursores das literaturas africanas
7. Movimentos político-culturais do princípio do século XX e sua importância para o desenvolvimento das literaturas africanas
7.1. Dos renascimentos negros à negritude
7.2. Literaturas emergentes: nacionalismos e identidade
8Linhas de afirmação da poesia africana
9Formação e desenvolvimento das literaturas africanas de língua portuguesa – um século decisivo
10. O pós-colonial na poesia africana de língua portuguesa
11. Glossário





Quer nliteratura colonial portuguesa quernliteratura colonial europeia o homem branco é elevado à categoria de herói mítico, o sacrificado e desbravador das terras selvagens, o portador de uma cultura superior:  
O único país que pode explorar seriamente a África, é Portugal.”Manuel Pinheiro Chagas, 1842-1895.




Neste sistema que afirma a superioridade de um grupo sobre outros, o negro é considerado inferior:
A sua face negra, de beiçola carnuda, tinha reflexos demoníacos.”
Henrique Galvão, 1895-1975.



         1. A LITERATURA COLONIAL:
        FRONTEIRAS
E DIFERENÇAS EM RELAÇÃO ÀS LITERATURAS AFRICANAS.



   
 
[…] A literatura colonial, define-se essencialmente pelo facto de o centro do universo narrativo ou poético se vincular ao homem europeu e não ao homem africano. No contexto da literatura colonial, por décadas exaltada, o homem negro aparece como que por acidente, por vezes visto paternalisticamente e, quando tal acontece, é um avanço, porque a norma é a sua animalização ou coisificação. O branco é elevado à categoria de herói mítico, o desbravador das terras inóspitas, o portador de uma cultura superior. Exemplo: «o único país que pode explorar seriamente a África, é Portugal» (prefácio de Manuel Pinheiro Chagas a Os sertões d’África, 1880, de Alfredo de Sarmento, onde aliás se pode ler sobre o negro: «É um homem na forma, mas os instintos são de fera», p. 87). Paradoxalmente, o branco é eleito como o grande sacrificado. A aplicação do ponto de vista colonialista tem no europeu o agente dinâmico e não o opressor: «Fiel aos nossos deveres de dominador, grata ao nosso orgulho, útil às populações», escrevia um homem anti-fascista, Augusto Casimiro (Nova largada, 1929). Predominavam, então, as ideias, da inferioridade do homem negro, que teóricos racistas, haviam derramado e para as quais teria contribuído o filósofo Lévy-Bruhl com a sua tese da mentalidade pré-lógica, — sendo certo, embora, que a renunciou pouco antes de morrer.
Logo no último quartel do século XIX se encontram os pioneiros desta literatura. Mas é no período 20/30 do século XX que ela vai atingir o ponto maior: na quantidade, na marca colonialista, na aceitação do público que esgota algumas edições, com certeza motivado pelo exótico. se destaca um naipe todo ele incapaz de apreender o homem africano no seu contexto real e na sua complexa personalidade. É certo que justo será destacar pela qualidade da sua escrita João de Lemos, Almas negras, 1937, porque nele, apesar de uma deficiente visão, se denota um meritório esforço de análise e intenção humanística. Mas, escritor português, manietado pela distanciação colonialista, por norma, dá ao seu discurso um sentido racista hoje de inconcebível aceitação. Henrique Galvão: «A sua face negra, de beiçola carnuda, tinha reflexos demoníacos» (O vélo d’oiro, 4ª ed., 1936, p. 122); ou: «Era um negro esguio» [o Mandobe] que «dava a impressão [...] dum excelente animal de corrida» (p. 34); Hipólito Raposo (Ana a Kalunga, 1926) na glorificação mística imperial: «Queimados no ardor silencioso de Golfo, em todo o peito português vai estremecendo o marulhar heróico dos Lusíadas» (p. 21), e outros (muitos) como António Gonçalves Videira, João Teixeira das Neves, irmão de Teixeira de Pascoaes, Brito Camacho, Contos selvagens (1934). Prolonga-se este tipo de literatura até aos nossos dias, com tendência, no entanto, para reflectir os efeitos de uma perspectiva humana ajustada à evolução das condições históricas e políticas, porventura o caso de Maria da Graça Freire (A primeira viagem, 1952) e, noutro aspecto, na actualização de uma linha que vem de Hipólito Raposo, citaríamos António Pires, (Sangue Cuanhama, 1949). Essa incapacidade de penetrar no mundo africano terminou por se instalar na consciência de um ou outro (poucos) mais atentos, mais apetrechados do ponto de vista teórico, como é o caso de José Osório de Oliveira, que se interroga a si próprio: «Conseguirei escutar nesta viagem, a voz da raça negra?» (Roteiro de África, 1936, p. 55).
O tempo histórico, o tempo cultural, para quem, ideologicamente, era incapaz de se furtar à insidiosa instauração do fascismo em Portugal e à inscrição legal do assimilacionismo ( vinha o célebre Acto Colonial, de 1930), não permitia ou não ajudava a uma tarefa de tal monta, que rejeita meros propósitos e exige uma reformulação da mentalidade do europeu.
Hoje, nãolugar para dúvidas: muitas dessas obras estão condenadas ao esquecimento, salvando-se aquelas que, apesar de prejudicadas pelas contigências de uma época e de uma mentalidade coloniais, evidenciam contudo um certo esforço humanístico e uma real qualidade estética. Mas, no conjunto, a história vai ser de uma severidade implacável e arrumará a quase totalidade desta literatura no discurso da acção colonizadora ou no nacionalismo imperial, saudosista e deslumbrado.

Manuel Ferreira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Lisboa, ICALP, 1977, vol.1., pp. 10-13.
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/bdc/eliterarios/006/bb06.pdf
  


    
 2.   GUERRA COLONIAL E GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL
       


O tema da guerra nas literaturas africanas de língua portuguesa confere aos textos uma tendência épica por assinalar o princípio da fundação de uma pátria. O soldado africano é apresentado como um herói libertador, confiante no devir.
Por outro lado, ao lermos a literatura portuguesa saída da guerra colonial, notamos que ela recria uma experiência africana violenta e fantasmagórica, de modo algum eufórica. Autores como Almeida Faria, Lobo Antunes e João de Melo, entre outros, insistem numa visão trágica e dorida por aqueles que, à força, foram combater para um espaço desconhecido e inóspito, com o qual não se identificavam. Não habitam heróis nas obras destes autores, mas anti-heróis fadados para o destino de uma guerra sem saída.    LER MAIS >>


    
 3. LITERATURA COLONIAL E PÓS-COLONIAL 
       


     A literatura colonial, identificada com um conjunto de textos que inclui romance, poesia, narrativas de viagem, relatos de missionários, diários, livros de notas e outros que propagandearam a ideia de império sobretudo a partir do século XIX , tem origem em textos muito anteriores aos quais vai beber metáforas e imagens, como sejam as descrições de selvajaria de Heródoto, os relatos de Marco Polo, Mandeville ou Haklyut. Seria, contudo, na viragem do século, com a expansão colonial como a Inglaterra e a França, que iria desenvolver-se. A África, continente redescoberta pelos europeus nos anos 80 do século passado, surge então como cenário de inúmeros textos de autores como H. Rider Haggard, John Buchan, Mary Kingsley, Florence Dixie ou Joseph Conrad em Inglaterra e Pierre Loti, Paul Vigne D’Octon ou Paul Bonnetain em França. Também o império britânico na Índia é tema de Rudyard Kipling, E. M. Forster, G. A. Henty ou Alice Perrin.
     Quanto à literatura pós-colonial considera-se, em geral, que tem início após a II Guerra Mundial sendo definida por Elleke Boehmer como “a literature which identified itself with the broad movement of resistence to, and transformation of, colonial societies.” (Colonial & Postcolonial Literature. Migrant Metaphors, Oxford University Press, 1995, p. 184). Entre as duas barreiras temporais citadas encontra-se todo um conjunto de textos que registam diferentes atitudes face ao império e que não poderão enquadrar-se numa designação única, já que, segundo a mesma autora, “initiatives which we now call postcolonial first began to emerge before,the time of formal independence, and therefore formed part of colonial literature” (Op.cit., p.5). Na verdade, já em Conrad e Forster se registam atitudes de resistência ao poder colonial, as quais iriam também encontrar expressão nos anos 20 e 30 nas obras de autores como Léopold Sédar Senghor (Senegal), Aimé Cesaire (Martinica) ou Bernard Binlin Dadié (Costa do Marfim). Vivendo em Paris, estes escritores tornaram positiva a imagem de “negritude”, anteriormente identificada como negativa e inferior pelo colonizador, passando a celebrá-la enquanto símbolo do institivo e misterioso da África negra.
É, porém, o movimento anti-colonial que se sucede a 1945 que traz consigo a literatura pós-colonial de que são exemplificativos autores como: Chinua Achebe, George Lamming, Ana Ata Aidoo, Alice Munro, Margaret Atwood, patrick White (Prémio Nobel, 1973), Wole Soyinka (Prémio Nobel, 1986), J. M. Coetzee, Peter Carey ou Nadine Gordimer (Prémio Nobel, 1992, apenas para citar alguns.
     É de salientar que a partir dos anos 70 grupos cujas obras não eram até então consideradas passam a figurar na literatura pós-colonial. São eles as mulheres (Am Ata Aidoo, Bessie Head, Keri Hulme, Michelle Cliff, Erna Brodber) e os povos indígenas (p. ex., os australianos aborígenes Sally Morgan e Mudrooroo ou os neozelandeses maori Witi Ilhimaera e Patricia Grace).
     A eles se junta um terceiro grupo, os chamados migrant writers. Por diferentes razões, que vão desde a opção profissional ao exílio político, autores de nações outrora colonizadas passam a residir em Boston, Nova Iorque, Londres e Paris. É o caso de Salmom Rushdie, Ben Orki ou V. S. Naipul.
     É também nos anos 70 que tem início a crítica literária pós-colonial, nomeadamente em 1978 com a publicação de Orientalism de Edward Said também ele migrant writer nos EUA e também ele, como Rushdie, com as suas obras actualmente banidas na Palestina. Desde então, a obra de Said tem dado origem a uma vasta bibliografia de análise crítica às suas teorias, bibliografia que muito tem influenciado as várias “leituras” de que têm sido objecto os textos coloniais e pós-coloniais. O que é sobretudo posto em causa na perspectiva “orientalista” de Said é o facto de este dividir o mundo em dois - o do colonizado - afirmando que o Orientalismo, que não existe na realidade sendo antes fabricado pelo Ocidente, constituir uma afirmação de poder por parte do colonizador ocidental face ao colonizado, sendo o primeiro sempre dominante e privilegiado do ponto de vista discursivo, social e político. Afirmações como “Orientalism depends for its stategy on this flexible positional superiority, which puts the Westerner in a whole series of possible relationships with Orient without ever losing him the relative upper hand” (Orientalism, Penguinm 1985), p. 7 têm sido postas em causa por vários autores. de uma forma ou de outra, todos apontam o reducionismo da metodologia de Said. Como afirma Bart Moore-Gilbert: “What unites such critics is a perception that said unifies homogenises the identity and operationality of colonial discourse to an unwarranted degree”(“Writing India, Reorienting Colonial Discourse Analyses”, in Writin India 1757-1990. The Literature of British India, 1996, p. 5).
     Entre os críticos de Said destacam-se Homi Bhabha e Gayatri Chakravorty Spivak. Partindo da psicanálise, Bhabha mostra como as relações entre colonizadores e colonizados não são homogéneas mas marcadas pela “ambivalência” (palavra-chave retirada da psicanálise) pondo em relevo a esfera insconsciente das relações coloniais e mostrando de que forma o sujeito colonial se converte em objecto de fantasia e desejo por parte do colonizador. Quanto a Spivak, põe em relevo a(s) história(s) do(s) “subalterno”(s), conceito que deve ser entendido como a diversidade dos grupos dominados e explorados sileciados pelo ponto de vista hegemónico da historiografia académica. Assim, propõe-se dar voz aos excluídos, nomeadamente às mulheres nativas subalternas, cujo ponto de vista nunca é ouvido, vítimas que são da visão de superioridade do feminismo ocidental que autora considera sinónimo dos comportamentos do colonizador face ao colonizado e, portanto, mera reprodução dos axiomas do imperialismo.
Outros autores têm criticado Said e proposto novas formas de abordagem teórica sem, contudo, note-se, rejeitarem na íntegra o modelo orientalista. Porém, p. ex., Robert Young não deixa de apontar outros caminhos fazendo notar que não existe um modelo metodólogico para a análise de impérios como o português ou o espanhol ou para espaços geográficos que não a Índia, nomeadamente a África.
     Nos anos 90 as literaturas pós-coloniais encontram-se, tal como a metodologia crítica, numa fase de proliferação e mudança. Parece-nos que uma perspectiva comparatista poderia ajudar, já que é a que passou a ser adoptada para a própria História do colonialismo, como significativamente mostra o livro de Mac Ferro Histoire des colonisations (de notar a utilização do plural) recentemente traduzido para português e inglês.
Por, e dados os exageros da teorização apontados por muitos críticos, torna-se sem dúvida, necessário, não só repensar a história das colonizações como regressar ao(s) texto(s).

Bibliografia
Martine Astier-Loufti, Littérature et colonialisme, 1971; L. Fanoudh-Siefer, Le Mythe du nègre et de l’Afrique noire dans la littérature française de 1880 à la 2è guerre mondiale, 1968; Bart Moore-Gilbert, “Introduction. Writing India, Reorienting Colonial Discourse Analysis”, in Writin India 1757-1990. The Literature of British India, 1996, pp. 25-29; Elleke Boehmer, Colonial & Postcolonial Literature. Migrant Metaphors, 1995; Mac Ferro, Histoire des colonisations, 1994; A. Martinkus-Zump, Le Blanc et le noir, 1975; W. Edward Said, Orientalism, 1978; Robert J. C. Young, Colonial Desire, Hydridity in Theory, Culture and Race, 1995; Ania Loomba, Colonialism/Postcolonialism, 1998; Gaytri Chakravorty Spinak e Sarah Harasym, The Post-Colonial Critic (Interviews, Stategies, Dialogues), 1990; Billey Asbcroft, Gareth Griffithes e Helen Tiffin, The Post-Colonial Studies Reader, 1994; Iain Chambers e Lidia Curti, The Postcolonial Question: Common Skies, Divided Horizons, 1995; Eugene Benson e Leonar Conolly, Encyclopedia of Post-Colonial Literatures in English, 2 vols., 1994.




      4. LITERATURAS AFRICANAS ESCRITAS EM LÍNGUA PORTUGUESA:
         O PAPEL DA IMPRENSA E DO ENSINO PARA O SEU
SURGIMENTO

 
Imprensa 

A tipografia foi introduzida nas colónias nas seguintes datas: Cabo Verde (1842); Angola (1845); Moçambique (1854); São Tomé e Príncipe (1857) e Guiné-Bissau (1879).
Os primeiros órgãos de comunicação social foram o Boletim Oficial de cada colónia, que dava abrigo à legislação, noticiário oficial e religioso, mas que também incluía textos literários (sobretudo poemas, mas eventualmente crónicas ou contos).
Em geral, no século XIX, com excepção de Angola, a imprensa foi menos importante do que seria de supor devido também à repressão. O semanário O Progresso (1868), de Moçambique, religioso, instrutivo, comercial e agrícola, teve apenas um número, porque, dois dias depois, era obrigado a ir à censura prévia, que o proibiu. Um militante republicano, Carvalho e Silva, no início deste século, fundou quatro jornais, todos encerrados, o último dos quais assaltado, a tipografia destruída e o director agredido, de que resultou a sua morte. De facto, a história da imprensa não oficial de Moçambique foi geralmente de oposição aos governos, da colónia e de Lisboa.
Com a República, até ao advento da lei de João Belo (1926) contra a liberdade de imprensa, floresceu uma imprensa operária. Mas os mais célebres, e justamente celebrados, pelo seu papel na consciencialização da moçambicanidade, foram os jornais fundados pelos irmãos José e João Albasini: O Africano (1909-1918), O Brado Africano (1918) e O Itinerário (1919), o penúltimo sobrevivendo durante décadas e o último reaparecendo, mais tarde, noutros moldes (1941-55).
Na Guiné, o primeiro jornal, Ecos da Guiné, apareceu somente em 1920.
Em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, a imprensa contribuiu decisivamente para o incentivo à criação literária, no quadro de limitação insular. A fundação do Liceu-Seminário de São Nicolau (Cabo Verde), nos anos 60 do século XIX, ajuda a explicar o nível de escolarização cabo-verdiana (a primeira escola primária surgiu em 1817). Curiosamente, cabo-verdianos e são-tomenses, vivendo em Portugal, na primeira metade do século XX, estiveram sempre muito activos na busca de uma identidade cultural e da consciencialização (proto-nacional ou simplesmente na produção intelectual desligada de intenções insulares. Basta recordar intelectuais como Viana de Almeida, Mário Domingues, Marcelo da Veiga ou Salustino da Graça Espírito Santo (de São Tomé e Príncipe) e Pedro Cardoso (de Cabo Verde).
No século XIX, foi intensa e brilhante a actividade jornalística em Angola. Depois da criação do Boletim Oficial (1845), surge A Aurora (1855), jornal recreativo e literário. Mais tarde, aparece um jornal pugnando pela efectiva abolição da escravatura, para além da letra da lei, A Civilização da África Portuguesa (1866), dirigido por Urbano de Castro e Alfredo Mântua, europeus identificados com Angola.
De 1860 a 1900, surge cerca de meia centena de títulos de jornais, artesanais e episódicos, mas de grande importância para o fomento da actividade intelectual e literária. Desde o Jornal de Luanda (1878), do escritor e advogado Alfredo Troni que marca a transição do jornalismo de cariz mais colonial para o proto-nacionalista, até O Futuro de Angola ou O Pharol do Povo, muitos contribuíram para a informação, elevação cultural e promoção das línguas e culturas locais.
O primeiro jornal de africanos chamava-se Echo de Angola (1881), inaugurando duas décadas de frenética actividade jornalística (que se prolongaria, depois, até aos anos 20) e que ficaria conhecida por período da imprensa livre africana, terminando exactamente com a fundação de A Província de Angola (1923), primeiro jornal de tipo moderno, industrial, que passou a quotidiano em 1926, perdurando ainda hoje as instalações ao serviço do Jornal de Angola. A censura, que funcionava, aprimorou-se e acabou com as últimas veleidades de uma imprensa realmente democrática e livre. Na época florescente da imprensa livre, apareceram jornais escritos simultaneamente em português e quimbundo, como o Muen ‘cxi (= o senhor da terra) e o Mukuarimi (= o «linguarudo»), dirigidos por Alfredo Troni. Nos últimos vinte anos de Oitocentos, pugnaram por uma Angola autónoma, mais livre e desenvolvida, jornalistas-intelectuais como Arantes Braga, José Fontes Pereira de Melo, Pedro Félix Machado ou Cordeiro da Matta.
No dealbar do novo século, algumas publicações literárias marcaram o desejo de emancipação dos «filhos do país», de que cumpre destacar as duas seguintes:
Voz d’Angola — clamando no deserto (1901), colectânea de artigos não assinados contra um artigo colonialista;
revista Luz e Crença (1902), cujo segundo número saiu um ano depois.
Esta última era promovida pela Associação Literária Angolense, cuja sigla, «Liberdade, fraternidade, igualdade», alerta para os ideais republicanos. Pugnava-se por um espírito de instrução, autonomia política e crítica social e institucional.
Foram líderes e nomes cimeiros desta geração, entre outros, Francisco Castelbranco, Silvério Ferreira, Paixão Franco, Lourenço do Carmo Ferreira e Domingos Van Dúnem (não confundir com o homónimo, nascido em 1925 e hoje embaixador do seu país na UNESCO).
É, pois, através dos jornais que os letrados fazem a aprendizagem da escrita, vendo os seus escritos em letra de forma, assim modelando a própria concepção de intervenção literária, que ficaria marcada por essa prática intrínseca de concretude e explicitude, a não ser quando toda a sorte de preciosismos (saídos do ultra-romantismo, parnasianismo e decadentismo) tomava conta da efusividade lírica. Esse desígnio jornalísticoou melhor, de comunicação social, à letra — marcaria decisivamente os escritores de África, que quase sempre assistiam à divulgação dos seus textos através de compilações e antologias, antes de os poderem ver estampados em livro, um objecto a que poucas vezes tinham acesso, por dificuldades de vária ordem (censura, perseguição, pobreza, desleixo, dispersão, etc., que foram aumentando em crescendo até à independência).
 

Ensino 

A educação nas colónias portuguesas registava, ainda a entrada dos anos 60, níveis baixíssimos. O analfabetismo atingia, em Angola, quase 97%; em Moçambique, quase 98%; na Guiné-Bissau, perto dos 100 %; em Cabo Verde o nível era mais elevado, rondando os 78,5%. O analfabetismo devia-se à política portuguesa de criar uma elite muito restrita de assimilados para servirem no sector terciário, ao mesmo tempo que deixava as populações entregues a si próprias, sem permitir o seu auto-desenvolvimento ou, no pior dos casos, usando-as como mão-de-obra escrava ou barata.
Como escreveu o poeta angolano António Jacinto, em «Carta dum contratado» (1950): 
Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não sabes ler
e eu Oh! Desespero! — não sei escrever também!
 
[…] No começo do século XIX, os padres e párocos eram escassos nas colónias. Com o liberalismo, o ensino passou, em 1834, para o domínio do Estado, tomando-se laico. A partir de 1869, voltou a ser apoiado nas Missões. Todavia, o seu progresso foi lentíssimo.
Em Angola, os grandes centros populacionais tinham escolas oficiais e particulares para brancos e nas zonas rurais havia as missões para negros. O ensino manteve-se, durante muitos séculos, exclusivamente a nível primário.
Três anos depois da instauração da República, deu-se a separação da Igreja e do Estado, substituindo-se as missões religiosas por laicas, para, seis anos mais tarde, as missões católicas serem auxiliadas financeiramente pelo Estado, altura em que, em Luanda, foi fundado o Liceu Salvador Correia. Em 1926, as «missões civilizadoras» foram abolidas devido ao seu fracasso no terreno.
A língua usada nas escolas e fora delas, por professores, missionários e auxiliares, era a portuguesa, que, com as línguas nativas, servia para o ensino da religião. Mas, até II Guerra Mundial, o objectivo da assimilação, perseguido em teoria pelas autoridades, não teve expressão. Após 1945, a política governamental procurou acelerar a assimilação, fazendo um esforço para generalizar o ensino primário, desenvolver o secundário, sobretudo técnico, a educação agrícola e criando instituições para a formação de professores. Todavia, o ensino superior, ao contrário de outras colónias, inglesas ou francesas, apenas estava ao alcance de um número muito reduzido de estudantes, sobretudo brancos e mestiços. Com a fundação e a pressão exercida pelos movimentos nacionalistas, e logo depois do início da luta de libertação nacional armada (Luanda, 1961), foram instalados os Estudos Gerais, de nível universitário, a partir de 1963, nas cidades angolanas de Luanda, Sá da Bandeira e Nova Lisboa, e na capital moçambicana, até hoje os únicos territórios que deles beneficiaram.
Os próprios movimentos de libertação nacional, de que resultariam os partidos no poder, após 1975, criaram o seu ensino e alfabetização, que não tiveram um verdadeiro alcance de massificação, devido a apenas atingirem os escassos milhares de militantes na clandestinidade e faixas de população que os apoiavam. O MPLA, FNLA e UNITA (Angola), o PAIGC (Guiné-Bissau e Cabo Verde) e a FRELIMO (Moçambique) não tiveram tempo nem meios para, antes da independência, poderem substituir a escola colonial. MPLA (1956), PAIGC (1956) e FRELIMO (1962) tinham essencialmente preocupações políticas e militares, mas dedicavam uma atenção especial às questões culturais. Os outros movimentos, nascidos de dissensões, nunca tiveram qualquer preocupação nesse sentido. O MLSTP (de São Tomé e Príncipe) nasceu pouco antes da independência.
 
Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (vol. 64), Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 18-21
  
 


         5. LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA:
            UM FENÓMENO DO
URBANISMO
 

 

 As literaturas africanas modernas, isto é, aquelas que se exprimem na língua de colonização, têm a sua emergência indubitavelmente ligada ao urbanismo […]
Colonização que, como é sabido, levou à Africa tradicional factores de desestruturação que actuaram em todos os níveis da organização cosmológica das sociedades negras. Sociedades cujos sistemas de valores consuetudinários foram afectados, ou mesmo destruídos, pelo cartesianismo da filosofia colonizadora que, aliada ao cristianismo de raiz urbanizante, muito fez para despaganizar a cultura negra cujo animismo jamais conseguiu entender. Essa despaganização era acompanhada pelo sacrifício da ruralidade, enquanto imanência do binómio homem-natureza governado pela força vital, pelo muntu, garante da ancestralidade geradora do iniciatismo característico da civilização africana, abalando profundamente o mundo do homem negro, que foi existencialmente agredido por «la violente césure qu’a constituée l’intrusion de l’Europe chrétienne et cartésienne, et de l’Asie musulmane, dans un monde aussi animiste», como observa Amadou Ly (1983:37). Esse sacrifício da ruralidade abria caminho para o advento do urbanismo […]
A cidade é, portanto, a realidade emblemática da colonização e do sistema colonial, a que ela conduziria, uma vez que, como referia Kane, ela, a cidade, é simultaneamente um polo catalisador e difusor dos valores culturais e civilizacionais de que os colonizadores eram portadores. Nestes termos, ela representa um centro de aliciamento para todos aqueles que, no raio da sua influência lhe sentem o efeito, sujeitos que estão, a partir daí, ao poder atractivo que a novidade da cidade e dos seus costumes implica. A cidade passa, pois, a ser uma meta a atingir por aqueles que vêem nela a possibilidade de melhoria do seu estatuto social e económico e que, por isso, vão provocar um êxodo rural considerável, que vinha instalar-se, normalmente, nas zonas circundantes dos núcleos citadinos, onde, entretanto, se forjava uma burguesia constituída por brancos, alguns negros e alguns mestiços, disposta a marcar o ritmo da evolução cultural, enquanto se engrossava o caudal de despaganizadores que, atraídos pelos empregos gerados pela actividade comercial e industrial urbana formavam os muceques ou os caniços que punham a claro as assimetrias e as injustiças do sistema colonial cuja rede se entretecia.
Transferido do seu espaço vital característico, onde a sua identidade cultural e civilizacional não era interferida por factores alienígenos, para um espaço outro, onde era forçado a outrar-se, pensando, ilusoriamente, que lhe seria permitido o ingresso na cidade e a participação na nova cultura, o homem negro vai acumulando frustrações, ao mesmo tempo em que cresce nele a revolta pela marginalidade a que o votavam, acentuando-se a sua dramática divisão interior entre a fidelidade de pertencer ao mundo tradicional e a necessidade económica de ter de viver, segundo modelos civilizacionais aniquiladores daquele. Esta dramática divisão é, por certo, a responsável pela geografia física quase labiríntica desses «bairros de areia» povoados por gentes das mais diversas proveniências etnolinguísticas e com as mais diversas ocupações, desde o operário industrial ao empregado comercial, ao amanuense, aos domésticos, às lavadeiras, aos cozinheiros, etc. O labirinto, em que se vai transformando o espaço dessas «areias babélicas», como diz Luandino Vieira, pode ser interpretado como uma garantia para os seus habitantes de que nele seria possível preservar e cultuar os valores culturais que são basicamente os seus, uma vez que o europeu, o outro, habitante da cidade de asfalto, seria incapaz de descodificar tão complexa semiótica espacial e, por isso mesmo, de perturbá-la com os ataques que, inevitavelmente, lhe dirigiria.
Reduto da defesa de valores culturais e civilizacionais comuns, apesar das diferenças etnolinguísticas que nele coabitavam, o muceque interessa-nos literariamente numa tripla dimensão. Primeiro, como apêndice social colonial, onde se desenvolveu paulatinamente um proletariado que fecundou as sementes anti-coloniais que a própria colonização gerava em si. Segundo, como cadinho do português que servia naturalmente de língua de comunicação e que, usado por falantes de diferentes regiões etnolinguísticas, seria naturalmente sujeito a influências segmentais e suprassegmentais diversas que lhe moldaram a face característica da fala mucéquica, ponto de partida para o discurso verbal das literaturas africanas de expressão portuguesa. Terceiro, como instituição cultural e socioeconómica, fonte de inspiração para textos poéticos ou narrativos denunciadores do regime colonial de que o muceque era uma exemplar vítima, enquanto lugar de exílio ou de desterro para gentes despaganizadas em processo de distanciação dramática das suas origens civilizacionais.
Esta tripla dimensão do espaço urbano — muceque — está presente, desde as origens, nas literaturas africanas de expressão portuguesa que, como outras literaturas africanas em língua de colonização, são verdadeiramente um fenómeno do urbanismo, isto é, alimentam-se essencialmente das contradições e da dialéctica sociocultural geradas pelo advento da cidade à África. Aqui poderíamos ser levados a concluir que tais literaturas nada teriam a ver com a literatura negra tradicional que, como se sabe, tem as suas raízes na ruralidade, na Terra, o que lhe dá uma marca profundamente telúrica. Todavia, conscientes de que «la voie la plus courte vers l’avenir est toujours celle qui passe par l’approfondissement du passé» (cf. Césaire), alguns escritores sempre procuraram trazer para o ambiente urbano, ou urbanizante, dos seus textos essa Africa tradicional da qual o homem negro, despaganizado pela colonização, não conseguia, nem queria, libertar-se.
Até aos princípios dos anos 1940, porém, não existia ainda a oposiçào irredutível entre a cidade e o muceque. Apesar de tudo, enquanto o asfalto não chegou, ainda foi possivel um certo diálogo entre os dois espaços, como o atestam muitos textos africanos de expressão portuguesa, onde a infância é evocada como uma idade quase edénica que se vivia despreocupada das questões rácicas e sociais que o avanço avassalador do asfalto veio a criar. A infância é, sem dúvida, um dos temas que, nas literaturas africanas de expressão portuguesa, mais evidencia a sua origem urbana. Com efeito, quase todos os poetas e ficcionistas dessas literaturas glosam o binómio cidade-infância, como plataforma para uma escrita denunciativa e insubmissa. Outros exemplos poderiam ser citados, mas bastará recordarmos o título do primeiro livro de Luandino Vieira — A Cidade e a infância (1960) —, para verificarmos até que ponto é que esse binómio teve importância na emergência das literaturas africanas lusófonas. […]
Luanda é muito mais a Luanda dos muceques do que a Luanda do asfalto, que a crescente europeização tornava cada vez mais estrangeira aos filhos do país e àqueles que a adoptavam como mátria ou pátria de criação literária. É esse, aliás, o sentido da conhecida «Canção para Luanda», de Luandino Vieira:
A pergunta no ar
no mar
na boca de todos nós:
          — Luanda onde está?
 Silêncio nas ruas
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos
 — Xé, mana Rosa peixeira
responde?
 — Mano
Não pode responder
tem de vender
correr a cidade
se quer comer!
«Ola almoço, ola alrnoçoéé
matona calapau
ji ferrera ji ferrerééé»
 — E você mana Maria quitandeira
vendendo maboques
os seios-maboque
gritando
saltando
os pés percorrendo
caminhos
de todos os dias?
«maboque m’boquinha boa
dóce dócinha»
[…]
As casas antigas
o barro vermelho
as nossas cantigas
tractor derrubou?
 Meninos nas ruas
caçambulas
quigosas
brincadeiras minhas e tuas
asfalto matou?
 — Manos
Rosa peixeira
quitandeira Maria
você também
Zefa mulata
dos brincos de lata
            — Luanda onde está?
[…]
__________
Quitandeira: vendedora de frutas, hortaliças, aves, peixes, etc.
Maboque: fruto de casca dura, verde, comido simples ou com açúcar.

 

Luandino Vieira lançou, assim, a interrogação da busca da cidade, aliada da infância, que o urbanismo colonial fez desaparecer. A «fronteira do asfalto» e o tractor, símbolos da destruição desse espaço existencial compartilhado por brancos, negros e mestiços, geraram, portanto, o homem do muceque que, empurrado para a periferia geográfica e social da língua de dominação, vingar-se-ia dela, forçando-a a africanizar-se para dizer, através da literatura, a mensagem libertadora inspirada na tradição e apontada para a revolução. O escritor africano de expressão portuguesa, senhor desta nova fala que o urbanismo gerou nos muceques, conseguia, assim, ultrapassar, em parte, o exílio das suas personagens, através duma escrita que virava contra o colonizador a sua própria língua. […]
Parece-nos bem que a «tortura», a que o muceque submeteu a língua de empréstimo, modelando-a até limites expressivos, por vezes, impensáveis, neutraliza perfeitamente o exílio em que nasceu a escrita da moderna literatura africana de expressão portuguesa. O urbanismo colonial provocou, de facto, o exílio ao homem negro, despaganizando-o e afastando-o das suas raízes culturais e civilizacionais, mas, ao mesmo tempo e em atitude, por assim dizer, suicida, criou-lhe as condições para prometeicamente se vingar dele, por meio duma genuína expressão literária que não encontra paralelo em nenhuma das outras literaturas africanas em língua de colonização.
Salvato Trigo, 1984
Ensaios
de Literatura Comparada (Afro-Luso-Brasileira), Lisboa, Vega, s/d, pp. 53-60
 
  

    
 
 
6. PRECURSORES DAS LITERATURAS AFRICANAS
 

Aparecidos em duas épocas distantes, e portadores de experiências diferentes, Costa Alegre, originário de S. Tomé, e Rui de Noronha, de Moçambique, podem ser considerados como os precursores da literatura africana de expressão portuguesa, no domínio poético.
A obra de Costa Alegre, vinda a lume em 1916, foi inteiramente escrita em Portugal, por voltas de 1880. O arquipélago de S. Tomé encontrava-se na fase decisiva de mutação das suas estruturas sociais, em que a iniciativa da direcção económica e o controle das riquezas agrícolas eram intensamente disputados pelos colonos aos «filhos da terra». A poesia de Costa Alegre não regista nenhum eco dessa tensão e não faz nenhuma menção precisa à conjuntura insular. Ela reflecte uma forma de tomada de consciência da condição do negro ferido na sua cor. Atingido no mais íntimo do seu ser pelas humilhações que sofreu num meio social que lhe era hostil, dilacerado pelo isolamento e por decepções amorosas, Costa Alegre refugia-se num universo de autocondenação racial
Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora,
Tu és o dia, eu sou a noite espessa,
Onde eu acabo é que o teu ser começa.
Não amas!... flor, que esta minha alma adora.
És a luz, eu a sombra pavorosa,
Eu sou a tua antítese frisante,
Mas não estranhes que te aspire formosa,
Do carvão sai o brilho do diamante.

 (Costa Alegre, «Aurora», in Versos, 1946, p.26)
 

Rui de Noronha exprime timidamente, nos anos trinta, os conflitos suscitados pela sociedade em que se desenrolou a sua existência. Sensível ao espectáculo da opressão, mas isolado na sua démarche, prisioneiro do seu misticismo, o poeta viveu o drama da sua impossível realização, em tanto que assimilado.
Traduz em tom brando de lamentação contemplativa a dor que lhe causava a vida das massas africanas, mas professa claramente a resignação. Rui da Noronha apela, à sua maneira, para a libertação africana, como testemunha o seu soneto «Surge et ambula»: 

Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.
Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…
O progresso caminha ao alto de um hemisfério
E tu dormes no outro o sono teu infindo...
[…]
Desperta. no alto adejam negros corvos
Ansiosos de cair e de beber aos sorvos
Teu sangue ainda quente, em carne de sonâmbula...
Desperta. O teu dormir foi mais que terreno...
Ouve a voz do Progresso, este outro Nazareno
Que a mão te estende e diz: — Africa, surge et ambula!

Rui de Noronha esteve, contudo, longe de lançar as bases de uma completa identificação com o seu povo.

 Mário de Andrade, Antologia temática de poesia Africana 1, Lisboa, Sá da Costa, 1976, pp.3-4



 
   7. MOVIMENTOS POLÍTICO-CULTURAIS DO PRINCÍPIO DO SÉCULO XX
       E SUA IMPORTÂNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO DAS LITERATURAS AFRICANAS.

 


    7.1. DOS RENASCIMENTOS NEGROS À NEGRITUDE 

A Négritude lançou as suas raízes até aos movimentos culturais protagonizados por negros, brancos e mestiços que, desde as décadas de 1910, 20 e 30, vinham pugnando por um Renascimento Negro (busca e revalorização das raízes culturais africanas, crioulas e populares) principalmente em três países das Américas, Haiti, Cuba e Estados Unidos da América, mas também um pouco por todo o lado.

       A ideia de Renascimento, Indigenismo e Negrismo surge nas Américas, principalmente nos Estados Unidos da América e nas Caraíbas, como consequência das Luzes e do Romantismo que levaram à abolição da escravatura, à assunção romântica do Volksgeist [o sentimento e o espírito do povo], à identificação da real composição do mosaico cultural de raiz popular e, logo, nacional, e, finalmente, à possibilidade de, após a Revolução Francesa, os povos supostamente poderem assumir a liberdade e a igualdade e se poderem pronunciar (ganhar voz) na ocorrência dos movimentos de independência ou do reconhecimento desta como alvará de igualdade cultural e social de todos os grupos sociais. Tal como no Renascimento europeu, os três conceitos e tipos de movimento político, cultural e literário implicam uma comum ideia de reconhecimento e revalorização do passado próprio de cada povo, este, no contexto específico das Américas, no sentido de grupo etno-social, ou seja, do negro e do indígena (este mesmo podendo ser o negro, na ausência de outro originário). De fora fica o branco, por ser considerado exactamente o causador da repressão, também cultural, que se abate sobre os outros dois, sem excluir a participação daqueles brancos que assumem como suas, mais nuns casos do que noutros, por mais ou menos tempo, as culturas deles.
O termo Négritude aparece no longo poema «Cahier d’un retour au pays natal», de Aimé Césaire, poeta da Martinica, que foi publicado na revista Volontés, 10 (1939). A palavra passou a nomear o movimento que se desenrolava por toda a década de 1930, nomeadamente em Paris, cadinho de estudantes, intelectuais e políticos que marcaram profundamente a vida política e cultural do mundo negro. […]
 Social e ideologicamente, a Négritude constituiu-se como o processo de busca de identidade, de conduta desalienatória e da defesa do património e do humanismo dos povos negros. Recusou a assimilação a modelos externos à história negro-africana, embora consciente dos contributos aculturativos, sobretudo nas cidades. A Négritude pretendia a criação de um estilo próprio, no desejo de se demarcar dos modelos e motivos históricos das literaturas ocidentais.
 A poesia da Negritude distingue-se da restante literatura africana de língua portuguesa pelo obsessivo tratamento da raça e da cor negras, qualificando-as com valores reais e simbólicos, reagindo, desse modo, ao racismo branco: «o sangue negro, o sangue bárbaro» (Noémia de Sousa). Os triunfadores e mestres negros da diáspora e do próprio continente africano são aclamados como paradigmas exemplares a seguir pelos iniciados: Joe Louis, Jesse Owens (respectivamente, pugilista e atleta norte-americanos), Louis Armstrong (jazzman norte-americano), Césaire (negritudinista da Martinica), Toussaint Louverture (revolucionário haitiano oitocentista). Langston Hughes, Claude Mckay (líderes literários do renascimento negro norte-americano), Chaka (chefe guerreiro zulu), Nzinga (rainha jaga que lutou contra os portugueses no início da colonização), Senghor (um dos autores da Négritude).
 Nega-se, dessa forma, não o valor das culturas europeias (ou quaisquer outras), mas a sua dominação sobre as culturas africanas, pelo poder imperial e colonial. Chega-se assim à recusa textual da «música fútil/das valsas de Strauss» (Noémia de Sousa), afirmando ironicamente: «cresçam sinfonias de Beethoven/e poemas que o amigo Mussunda não entende» (Agostinho Neto).
 A África, o negro e a Mãe-Negra (Mãe-África ou Mãe-Terra) ocupam nos textos um lugar de destaque, como referências, alusões ou temas, numa declaração humanística de povos até apresentados e representados (na literatura colonial) como destituídos de história, cultura e mesmo de sentimentos. Segundo a análise de Sartre, no prefácio à Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache (1948), de Senghor, dá-se a revalorização (e a sobrevalorização) das culturas e modos de vida ancestrais (tribais, clânicos), com o culto dos antepassados, o animismo e a respectiva animização retórica da natureza, o pan-sexualismo vitalista, a visão eufórica e ufanista das relações sociais e familiares nas tribos e no mundo rural e natural. Ou seja, opõe-se ao mundo tecnológico e racionalista dos europeus o mundo natural e sensitivo dos africanos, num posicionamento que receberia críticas devastadoras dos homens empenhados na abertura de África ao mundo moderno, através de revoluções socialistas.
 Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (vol. 64), Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 28-29
  



«[…] a cultura produzida pelos afrodescendentes, principalmente da América do Norte, foi sendo “absorvida” e interpretada pelos povos negros da África. Lembro rapidamente da importância que a performance do atleta norte-americano Jesse Owens, nas Olimpíadas de 1936, assumiu para a poesia do santomense Francisco José Tenreiro e a música de Paul Robenson para a poesia da moçambicana Noémia de Sousa. Ambos os personagens históricos foram paradigmáticos para construção dessas poéticas nas quais o protagonismo histórico do homem negro e da mulher negra da áfrica era tema fundamental.» (Mário César Lugarinho, Uma nau que me carrega: rotas da literariedade em língua portuguesa. Manaus, AM: UEA Edições, 2012, p. 174)

 


        7.2. LITERATURAS EMERGENTES: NACIONALISMOS E IDENTIDADE
 
Entre 1880 e os fins do século passado, num clima de acesas lutas políticas, sucederam-se duas gerações que marcaram a vida intelectual de Angola, particularmente dominada pelo jornalismo. Aproveitando as possibilidades de expressão abertas pela lei portuguesa sobre a liberdade de imprensa, aplicada efectivamente durante um certo período na colónia, os angolanos lançaram jornais e revistas literários. […]
 Fundada em Março de 1936, a revista Claridade, primeira manifestação intelectual de conjunto da elite crioula, significou uma viragem no movimento literário de Cabo Verde. Segundo os seus mais ilustres representantes, Jorge Barbosa, Baltasar Lopes (aliás Osvaldo Alcântara) e Manuel Lopes, a preocupação essencial residia na análise do processo de formação social do arquipélago e no estudo das suas raízes. […]
 Os escritores do movimento Claridade, condicionados pela sua formação ideológica, adoptaram um ângulo de visão de «classe» para abarcar o universo insular. Não se atacaram ao fundamento dos dramas da terra (a seca, a fome e a emigração) e muito menos perspectivaram a superação das atitudes resignadamente contemplativas. A sua poesia, dominada pelo tema da evasão, afastou-se do inquérito aos sentimentos populares. Como produto esteticamente acabado do elitismo, ela passou ao lado do clamor das massas das ilhas.
 Ao examinarem o processus de aculturação em Cabo Verde, os animadores de Claridade e outros autores afirmaram que as contribuições da cultura africana tendiam a reduzir-se ao nível de sobrevivências ou a diluir-se em função do grau de instrução e de urbanização do meio, enquanto os valores europeus, possuidores de uma maior capacidade de resistência, se impunham e se generalizavam. […]
 A evolução dos acontecimentos iria demonstrar como as ilhas encontraram a sua verdade histórica, através da unidade operada na luta solidária do guineenses e de cabo-verdianos, pela libertação nacional.
 Foi na linha deste pensamento que a nova geração cabo-verdiana, após o severo julgamento dos Claridosos, estabeleceu a ponte de ligação com os movimentos culturais que surgiriam em Angola e em Moçambique. […]
 Vamos descobrir Angolatal foi, nesta perspectiva, a palavra de ordem lançada em Luanda, em1948, por um grupo de estudantes e de jovens intelectuais. Coube a Viriato da Cruz o mérito da sua formulação teórica e estética:
 «O movimento», escreveu ele mais tarde, «deveria retomar, mas sobretudo com outros métodos, o espírito combativo dos escritores africanos dos fins do século XIX e dos princípios do actual. Esse movimento combatia o respeito exagerado pelos valores culturais do Ocidente (muitos dos quais caducos); incitava os jovens a redescobrir Angola em todos os seus aspectos através dum trabalho colectivo e organizado; exortava a produzir-se para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações positivas e válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas.» […]
 Tomada no seu conjunto, a evolução da moderna poesia africana de escrita portuguesa e crioula comporta três fases essenciais: a primeira, a da negritude, entendida como negação da assimilação ou, para utilizar a expressão de Aimé Césaire, como «postulação irritada e impaciente de fraternidade».
 A Ilha de Nome Santo, de Francisco José Tenreiro (colecção «Novo Cancioneiro», vol. 9, Coimbra, 1949), marca o ponto de partida. O poeta procura ligar, primordialmente, a sua condição de homem insular ao mundo dos oprimidos, e revaloriza o património cultural negro-africano. É uma voz solitária, então no exílio, que se levanta para cantar S. Tomé e exaltar a negritude em língua portuguesa: 
Quando cantas nos cabarés
fazendo brilhar o marfim da tua boca
é a África que está chegando!
Quando nas Olimpíadas
corres veloz
é a África que está chegando!
Segue em frente
irmão!
Que a tua música
seja o rumo de uma conquista!
E que o teu ritmo
seja a cadência de uma vida nova!
para que a tua gargalhada
de novo venha estraçalhar os ares
como gritos agudos de azagaia!
 […] A segunda fase, suscitada pelo alargamento e ultrapassagem da negritude, é o momento da particularização. Os poemas precisam os contornos nacionais e incidem mais profundamente no real social. A criação literária vai ritmando o desenvolvimento da consciência nacional, quando se esboça a estrutura dos movimentos políticos. De 1953 a 1960, aproximadamente, a poesia apreende a trama dos acontecimentos que caracterizam as, mutações na sociedade colonizadora. Daí a actualização da sua temática.
 O próprio enraizamento dos poetas no chão nacional determina a convergência de temas e a unidade de tom. De todas as colónias erguem-se vozes de denúncia: poetas cabo-verdianos asfixiam o desespero de querer partir / e ter que ficar, vinculando-se definitivamente aos diversos níveis das realidades africanas, Alda do Espírito Santo exige justiça para os carrascos da sua terra.
 E quando os povos de Angola, da Guiné e de Moçambique retomam pela via armada a iniciativa histórica que modela o seu devir nacional, entramos na terceira fase desta poesia: as balas começam a florir, dirá Jorge Rebelo. 

 

Mário de Andrade, Antologia temática de poesia Africana 1, Lisboa, Sá da Costa, 1976, pp. 4-10.

 

“As balas começam a florir.”
Jorge Rebelo, Moçambique, 1940

 

 

GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL

O soldado africano é apresentado como um herói libertador, confiante no futuro.

    

  
  8.  LINHAS DE AFIRMAÇÃO DA POESIA AFRICANA
 
Algumas linhas de afirmação desta poesia devem ser destacadas.
1. Há uma evidente proximidade entre a cultura africana escrita e a cultura europeia, proximidade esta bem saliente no domínio da literatura.
No caso da poesia de Cabo Verde são evidentes as afinidades com a poesia lírica portuguesa, nomeadamente nos modos como nela se exprime o sentimento de insularidade. Este facto, efeito de aculturação, visível não apenas na poesia daquelas ilhas deve-se, contudo, à difusão da cultura europeia, através dos liceus que, a partir do princípio e de meados do século, começaram a ser implantados nos pólos urbanos por toda a África.
A própria consciência de nação, que vemos ser afirmada nesta poesia, origina-se no impacto do sistema de escrita ocidental sobre uma cultura oral de origem tribal.
2. Vários movimentos e iniciativas culturais empenhados na afirmação da cultura negranão apenas africana — têm origem em centros urbanos europeus e norte-americanos. É o caso das iniciativas em torno da Casa dos Estudantes do Império sediada em Lisboa, do movimento designado por Negritude, centrado em Paris e apoiado por intelectuais europeus, como Sartre, do movimento Black Renaissance surgido em Harlem.
Estes movimentos são responsáveis por algumas linhas de sentido evidentes nestes poetas:
2.1. a intenção de denúncia da condição do negro na relação com o homem branco;
2.2. a afirmação de uma identidade própria da poesia negra, nalguns casos, especificamente expressão do homem africano e com ele do próprio continente.
A propósito do último aspecto apontado, é de notar a frequente referência a uma realidade telúrica cuja estranheza para o homem europeu (claramente o interlocutor privilegiado desta afirmação) se manifestará no léxico, sobretudo o relativo a nomes comuns. — e este aspecto é da maior importância na poesia de Craveirinha — e em múltiplas descrições, como, por exemplo, a que tem por objecto os rios de Moçambique, comparados com os grandes rios europeus, no poema Hidrografia de Alfredo Margarido.
No poema Deixa passar o meu povo da poeta moçambicana Noémia de Sousa, não é o exotismo dos nomes que desencadeia a presença de uma realidade, mas uma frase emblemática. “let my people go” capaz de convocar a riqueza de um cultura inseparável da condição de negro por esse mundo fora, da sua história e das mitologias dessa história.
Valerá a pena chamar a atenção para:
— a atmosfera em torno de uma exaltação de insónia: a noite africana, as ondas da rádio, veículo do refrão “let my people...” (frase emblemática do movimento Black Renaissance), estabelecendo uma corrente com as ondas nervosas: “Nervosamente sento-me à mesa e escrevo [...] E não sou mais que instrumento […]";
— a importância simbólica do aparelho de rádio trazendo para o interior da noite africana a música negra de outro continente: “Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro / enquanto escrevo noite adiante / com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio / [...] / E enquanto me vierem de Harlem / vozes de lamentação / [...] / Escreverei, escreverei, / com Robeson e Marian gritando comigo: / “Let my people go” / [...]“.
(Procure o CD Jazz Heritage Séries, vol. 1, Louis Armstrong, Louis and The Good Book, ed. M.C.A., 1983. A canção 3, intitulada “Go Down Moses” (espiritual negro) tem como refrão, constantemente repetido, essa mesma frase, “let my people go”. Esta canção data do tempo da escravatura.) 

Cadernos de Literatura 10º Ano. Livro do Professor, Cristina Duarte, Amadora, Raiz Editora, [1993], pp.76-77





    
     9.   
FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DAS LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

           UM
SÉCULO DECISIVO
  
Temos o privilégio de assistir à formação e desenvolvimento das literaturas africanas de língua portuguesa, em mais de um século de escrita e de publicação. É com carinho e alegria que se contabilizam todos os escritos e autores e se desenvencilham diacronias e influências. Estamos possuídos pela ilusão de que, por tudo estar tão perto e ser tão pouco, se torna fácil compreender e classificar para, ainda mais facilmente, teorizar. Convém recordar, todavia, que, até tornar-se um sistema nacional, uma literatura passa por fases de hesitação e de indefinição. As literaturas africanas dos Cinco são escritas em português, língua de colonização, não existindo tradição de escrita nas línguas africanas.
O primeiro prelo seguiu para Angola em 1849. Um ano depois saiu o Boletim Oficial, incluindo incipientes textos literários como era de uso na época. Cerca de trinta anos mais tarde, verifica-se o surto da imprensa livre angolana, na qual ensaiaram experiências literárias e terçaram armas pela democracia, republicana intelectuais africanos o portugueses. Literatura e jornalismo conviviam, no século XIX, a ponto de se influenciarem mutuamente. A crónica e o panfleto de cariz doutrinário e político faziam género. O folhetim narrativo agradava na colónia e obrigava à reedição na imprensa da metrópole colonizadora.
Africanos, portugueses e brasileiros publicavam nos espaços comuns dos almanaques, boletins, jornais, revistas a folhetos. Não tinham surgido ainda as designações de literatura angolana, moçambicana ou são-tomense com carácter de sistema nacional, mas a escrita deixara de ser espaço de europeidade absoluta para se tornar contaminação relativa de línguas. De facto, poetas portugueses o angolanos intercalavam no texto em português, mais extenso, frases, diálogos, versos, lexemas em língua banta (quase que exclusivamente o quimbundo). A integração é perfeita, na coerência do sentido e da sonoridade e na coesão dos segmentos e ritmos. Poemas há soando aos ouvidos como se produzidos numa língua natural.
O trabalho literário unifica as línguas, como que galvanoptastizando a substância da expressão. Tal efeito de produtividade é possível numa poetogénese conseguida à custa da integração antropocultural do intelectual português, ou seja, e para utilizar uma curiosíssima palavra do vocabulário colonialista, à custa da sua cafrealização. Foi o que aconteceu com o português Alfredo Troni, escritor, jornalista e advogado de filiação socialista proudhoniana e republicana, desterrado para Luanda, onde desenvolveu profícua e incalculável agitação cultural e cívica. Por seu turno, intelectuais africanos como Cordeiro da Mata empenharam-se em trabalhos de pesquisa linguística, sociológica e etnográfica que favoreceram uma atmosfera de aprofundamento do saber sobre as realidades africanas, contribuindo para que a literatura pudesse perder, a pouco e pouco, o lastro negativo do exotismo e do ultra-romantismo serôdio.
Em todos os poetas do século XIX, mantém-se a rima final e, em, grande percentagem, a medida da redondilha maior, características tradicionais de muita poesia popular europeia. Sabemos como esse tipo de procedimento literário não procede da tradição popular africana. muito mais tarde, na década de 30, é que a geração da Claridade caboverdiana abandona esses princípios poéticos, enfileirando no cultivo do verso livre, aproveitando a lição dos modernismos português e brasileiro. Mas os escritores caboverdianos, nessa altura, não reivindicavam propriamente uma especificidade africana, se bem que fosse inequívoco o seu sentido da caboverdianidade, da literatura enquanto sistema de comunicação com poder autonómico face à situação política e jurídica do arquipélago.
Depois de terem prestado homenagem à tradição literária portuguesa, de Camões ao parnasianismo, os escritores africanos, no segundo quartel do século XX, trocam de paradigma, inspirando-se nos brasileiros e norte-americanos A introdução do ensino laico nas colónias e a vinda de estudantes para Portugal incrementaram notavelmente uma nova mentalidade cultural sustentada por ideologias como o socialismo anarquista, o republicanismo, o proudhonismo e, mais tarde, o pan-africanismo. Nas colónias, a intervenção maçónica de exilados e desterrados portugueses foi decisiva no movimento operário, com repercussões na intelectualidade, como em Moçambique. A literatura ganha corpo nacional consoante vai trocando o corpo da negra e da mestiça pelos do contratado e do branco, expondo-lhes as alienações e as misérias humanas. Se tomarmos a narrativa angolana como sintoma dessa evolução progressiva e progressista, verificamos que o espaço físico e social progridem no mapa humano e geográfico à medida que se consuma a diacronia: a narrativa Nga Mutúri, de Alfredo Troni, tem como cenário principal uma Luanda permissiva e condescendente, onde se cruzam personagens típicas de todas as profissões e escalões sociais, nomeadamente o sector terciário; o romance de António de Assis Júnior O Segredo da Morta desenrola-se entra costa marítima e uma faixa interiorana que não ultrapassará os trezentos quilómetros, com percursos fluviais e terrestres, carregadores e comerciantes, episódios rocambolescos e frases em quimbundo; a acção da trilogia de Castro Soromenho (Viragem, Terra Morta e A Chaga) passa-se no interior de Angola e novas personagens afluem à narrativa angolana: chefes tribais, funcionários administrativos, exrevolucionários retraídos, comerciantes do mato, cipaios, etc.
Quando os poetas caboverdianos dispensam as alusões clássicas greco-latinas ou renascentistas (em que era pródigo um José Lopes) e assumem a modernidade discursiva e textual, configurando efeitos de referencialidade que passam pela concreticidade da denúncia frontal ou velada da exploração, opressão e repressão do sistema colonial, a literatura deixa de poder integrar pacificamente as antologias e histórias da literatura portuguesa. Marcada por transparentes desejos de emancipação, liberdade, autodeterminação e independência, a literatura africana, em geral, fala-nos de conflitos sociais, do estatuto do colonizado, de guerras (de guerrilhas) e de revolução, ainda que, muitas vezes, sob o manto diáfano da criptografia.
Até 1942, ano em que Tenreiro publica a Ilha do Nome Santo, decorre aproximadamente um século, decisivo para a formação das literaturas africanas de língua portuguesa. A escrita dessas literaturas denuncia as hesitações entre uma norma de raiz escolar europeia (lisboeta ou conimbricense) e um bilinguismo textual inusitado e causador de eleitos de estranheza no público acaciano. A intencionalidade de ruptura no circuito comunicativo preside à elaboração de alguns textos posteriores, como se pode ver nas primeiras edições de José Luandino Vieira, nas quais as epígrafes, em quimbundo, não eram traduzidas. Nos poetas do século XIX, o quimbundo é traduzido no próprio poema, como acontece, por exemplo, com Kicôla!, de Cordeiro da Mata. Nesse tempo havia condições propícias a tais práticas dialógicas, que a 1 Guerra Mundial alterou bruscamente, modificando a estratégia universal em relação às colónias.
Encerrado o ciclo da imprensa e da literatura livres de condicionalisrnos políticos, abriram-se as portas à literatura colonial, apoiada por organismos do Estado português. Uma torrente de prosa exótica sufocou a metrópole e ratificou o espírito tarzanístico. Os intelectuais africanos retiraram-se para as suas associações culturais ou políticas disfarçadas de recreativas e muito esporadicamente criaram algo de novo, na tradição do século XIX. Foi necessário esperar por 1936, em Cabo Verde, 1942, em Portugal, e 1948, em Angola, para que as literaturas africanas de língua portuguesa não mais deixassem de ter sequência. Ao surto definitivo dessas literaturas não são alheios os acontecimentos políticos e militares de 1936 a 1945.
De facto, a partir daí, é notório o enfeudamento à linha realista, «engagé» e combatente, fartamente influenciada pelo afro-americanismo, o pan-negrismo, o pan-africanismo, a negritude e o neo-realismo. Mário Pinto de Andrade, integrando o moviemento Mensageiro, ainda esboçou uma escrita poética em quimbundo, que logo abandonou, na altura talvez para não atiçar ou ratificar tribalices. O poema resultante, junto com dois outros de Bernardo de Sousa e João-Maria Vilanova, é a excepção que confirma a regra da língua portuguesa.
A edificação das literaturas africanas de língua portuguesa acompanha a construção de um novo poder político, primeiro clandestino e, depois, triunfante. Os homens que escrevem são os mesmos que pensam e que politicam. E fazem-no em português, domesticando a língua em função das suas virtualidades e finalidades, criando literaturas nacionais numa língua internacional.
O século que vai de 1850 a 1950 foi decisivo para a formação dessas literaturas. Os últimos trinta e cinco anos têm sido decisivos para o seu desenvolvimento. Com o advento da luta armada, três tendências se esboçaram, vindo a concretizar-se em obras específicas: Iiteratura de combate (de e para a guerrilha), de «ghetto» (publicada, sob a forma críptica, nas próprias colónias) e de diáspora. Os casos de Pepetela, Manuel dos Santos Lima, João-Maria Vilanova, Costa Andrade, Jorge Rebelo e Sérgio Vieira ilustram a primeira tendência. O Jofre Rocha de Tempo de Ciclo, David Mestre com Crónica do Ghetto ou Corsino Fortes documentam a literatura de «ghetto», que tanto pode ser alusão ao beco (com ou sem saída) da grande cidade colonial, como metáfora do isolamento insular. A terceira tendência tem no Coração em África, de Tenreiro, ou no poema «Havemos de voltar», de Agostinho Neto, a confirmação de que a diáspora é saudosa mesmo das terras que pouco pisou (como Tenreiro) e messiânica até à vitória final (como Agostinho Neto). também uma literatura rústica, de fundamentação etnológica, como no caso de A Konkhava de Fheti, de Henrique Abranches, ou de experiência pessoal, como em Uanhenga Xitu.
Os títulos da literatura caboverdiana elucidam-nos acerca do obsessivo terra-longismo, que Manuel Lopes caracterizou lapidarmente: «a saudade das terras que não conhece.» É o apelo da distância e do desconhecido, muito forte para quem vive e escreve nos chamados meios pequenos insulares: «Hora di bai» (poema de Eugénio Tavares) e Hora di Bai (livro de Manuel Ferreira): «Terra-Ionge», de Pedro Corsino Azevedo; Poemas de Longe, de António Nunes; Marinheiro em Terra, de Daniel Filipe; Linha do Horizonte, de Aguinaldo Fonseca; Cais Dever Partir, de Nuno Miranda; Caminhada, de Ovídio Martins; «Caminho longe», título de poemas de Ovídio Martins, Onésimo da Silveira, Gabriel Mariano e Terêncio Anahory e ainda de romance de Nuno Miranda; «Carmin lon» poema em crioulo interpretado por Bana; «Carta de longe» de Gabriel Mariano; Horizonte Aberto, livro de Sukre D’Sal; Viagem para Além da Fronteira, de Teobaldo Virgínio; Distância, também de Teobaldo Virgínio; Beija do Cais, ainda do mesmo autor. Finalmente, o percurso inverso, de retorno, em Cais-do-Sodré té Salamansa, de Orlanda Amarílis.
Apostrófica, exaltante, apologélica, virulenta, denunciadora, a literatura africana pode ser excessiva e grandiloquente como os poemas negritudinistas de Francisco José Tenreiro, reflexiva e serena como a Sagrada Esperança, de Agostinho Neto, barroca e neurótica como a ruptura discursiva e textual de Luandino Vieira, humorística e cínica como escárnio de João Pedro Grabato Dias. Contida, comedida, tranquila, expositiva, a literatura pode dar-se como fingimento extremo e simular o real por inteiro, como na máscara do Muana Puó, de Pepetela, burilar a palavra até à exaustão, para lhes extrair sugestões e alusões étnicas e oníricas, como em Angola Angolê Angolema, de Arlindo Barbeitos, conotações e ambivalências co-textuais, como em Monção, de Luís Carlos Patraquim. Enfim, a literatura africana pode vociferar «tuji, patrão», como no poema de João-Maria Vilanova, retomando as práticas bilinguistas de seus avós, ou render homenagem aos «grupos de patriotas portugueses/operando na Metrópole ou no estrangeiro – os do Socorro Vermelho/e os das Brigadas Revolucionárias, tal a nº 2,/que a base secreta da OTAN destruiu no Pinhal do Arneiro,/no lugar dito Fonte da Telha», como se pode ler no Primeiro Livro de Notcha, discurso V, do caboverdiano Timóteo Tio Tiofe.
As literaturas formam-se e desenvolvem-se como sistemas nacionais antes das independências políticas. Desde a publicação de Espontaneidades da Minha Alma, elas têm 136 anos de vida nem sempre activa. Desde a publicação de Nga Mutúri, passou pouco mais de um século. Somente meio século nos separa do primeiro número da revista Claridade. Do meio do século para , os poetas profetizaram a mudança: «veemente ressurreição!» (Osvaldo Osório); «veemente de ressurreição!» (Rolando Vera-Cruz); «nova gestação» (David Mestre); «sonhando co’a vida» (João-Maria Vilanova) «edificam novos tectos» (Cândido da Velha); «a alforria ansiada» (Jofre Rocha); Tempo do Ciclo (Jofre Rocha); «alvorecer de esperança» (Jofre Rocha); «exigindo novas vestes» (Álvaro Novais); Sagrada Esperança (Agostinho Neto); Vidas Novas (José Luandino Vieira); «nova Aurora» (Yolanda Morazzo); «llhas renascidas / nuvens libertas» (Arménio Vieira); «gritarem de esperança» (Tomás Medeiros); «fomos nós o sonho» (Costa Andrade).
Cumpriu-se a alforria ansiada e as literaturas africanas se defrontam com os novos poderes: Mayombe, de Pepetela, publica-se porque o Velho dá o seu consentimento contra ventos e marés; Os Anões e os Mendigos, do Manuel dos Santos Lima, a maior diatribe ficcional desde sempre, sai com a chancela de uma editora do Porto e o autor nunca recebeu resposta a pedidos de leitura do original que enviou a outras editoras e instituições, não de Portugal; a pretexto de uma representação (gravosa para o Presidente angolano) da peça No Velho Ninguém Toca, o autor, Costa Andrade, esteve preso durante mais de um ano em Luanda. Isto pode significar que as literaturas africanas estão mais vivas do que nunca, e os escritores, críticos como sempre. Não sei quando começou nem quando terminará o século decisivo das literaturas africanas de língua portuguesa, mas estamos a vivê-lo: une a paixão amorosa e a (pa)ciência do texto se conjuguem em verbos mais que perfeitos

 

Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Lisboa, F. C. Gulbenkian,1987.


 

10. O PÓS-COLONIAL NA POESIA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA


Inocência Mata
Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa 

 

Locha Mateso, o crítico congolês (do ex-Zaire, hoje República Democrática do Congo), refere, logo de início do seu livro La Littérature Africaine et sa Critique, de 1986,o facto de a atenção, nos estudos literários africanos, estar sobretudo centrada nos autores e suas obras, não havendo uma preocupação com a “recepção”, que constitui o outro pólo da comunicação literária. Se é verdade que hoje, quinze anos depois, a crítica de Locha Mateso talvez não tenha razão de ser, também é verdade que nos estudos literários africanos de língua portuguesa a  preocupação com a história literária é recente – apesar de, ainda sem as aquisições das teorias da história literária, ser de elementar justiça citar os trabalhos de Manuel Ferreira, de Mário Pinto de Andrade e (embora apenas no âmbito angolano) de Carlos Ervedosa. Isto é, após um longo período de estudos de natureza sincrónica, de alcance vertical, a incidência da actividade da crítica tem-se virado para a natureza das metamorfoses das estratégias textuais que apontam tanto para um novo mapeamento do discurso ideológico e cultural dominante como para novas configurações estéticas que a dinâmica da História – vale dizer sobretudo, o pós-colonialismo – tem imposto e para o desvelamento das suas suposições (suposições da História) a partir de outros “locais da cultura”. Portanto, um aspecto que remete tanto para as metamorfoses por que têm passado as formas que hoje canibalizam as próprias matrizes estéticas “da tradição” (digamos, “consagradas”, em vez de canónicas), ao mesmo tempo que propõe outro discurso, quanto para a (re)leitura como para a (re) escrita  de temáticas já sublinhadas como ainda.  
Estudos sobre o pós-colonialismo, sobretudo de tradição anglo-saxónica, ainda discutem o alcance desta idéia: alguns entendem-na como referente à situação em que vive(ra)m as sociedades que emergiram depois da implantação do sistema colonial, enquanto para outros o “pós” do significante “colonial” refere-se a sociedades que começam a agenciar a sua existência com o advento da independência. Nesta acepção, o pós-colonial pressupõe uma nova visão da sociedade que reflecte sobre a sua própria condição periférica, intentando adaptar-se à  lógica de abertura de novos espaços, de que fala Kwame Anthony Appiah. E os significantes desses (novos) espaços apontam tanto para novas corporizações e legitimidades socioculturais como para um compromisso na adaptação da tradição às exigências de um mundo cujos mecanismos de regulação ultrapassam os limites dos sujeitos dessa tradição. Assim, pode pensar-se que uma das marcas desse gesto de abertura de novos espaços, portanto, da condição pós-colonial, é tanto a recusa das instituições e significações do colonialismo como das que saíram dos regimes do pós-independência. Exemplos significativos dessa recusa, sob o signo de uma consciência pós-colonial, encontramo-la em obras emblemáticas da literatura africana, como a do escritor costa-marfinense Amadou Kourouma, Les Soleils des Indépendences publicado em 1964, do nigeriano Chinua Achebe, A Man of the People, de 1966 (cuja tradução portuguesa, pela Editorial Caminho, é Um Homem Popular, 1988), do camaronês Mongo Beti com o seu romance Remember Ruben (também há tradução portuguesa)   ou do maliano Yambo Ouologuem, autor de Le Devoir de Violence (1967).
Convencida de que, não obstante as diferenças – que decorrem de “variedades da pós-colonialidade africana” (R. Hamilton3) –, as literaturas africanas de língua portuguesa têm-nos oferecido configurações temáticas da pós-colonialidade que já vêm sendo actualizadas em outros espaços geo-poéticos. São algumas dessas marcas que pretendo trazer à consideração: é que elas me parecem motivadas pela sua condição pós-colonial sobretudo se comparadas com configurações similares do período colonial e o imediatamente pós-independência.  Esse corpus de novas configurações – que vou designar como dimensões da pós-colonialidade – operadas  no sistema literário dos Cinco revelam-se, quanto a mim, motivadas por uma consciência que evoluiu da sua condição nacionalista e sente agora necessidade de repensar o país que não mais se encontra em fase de nacionalização ou na condição de emergência mas sim do agenciamento da sua emancipação.
Por isso, tão amarga quanto a consciência anti-colonial nas literaturas africanas de língua portuguesa é também a consciência pós-colonial, na visão mais emblemática da perda inocência,  e confrontada com o começo do tempo da distopia: através de situações que representam uma reedição dos objectivos e métodos do “antigo período”, colonial, pelo “novo período”, o do pós-independência, é posto a descoberto o modo como este também participa na “larga história de crueldade em que o colonialismo é uma página a  mais.” 
 No entanto, apesar das similitudes, julgo que as literaturas africanas  têm significadores que resultam em significações que fazem a(s) sua(s) singularidades(s). Uma dessas singularidades é a existência de uma intelligentsia, uma classe de letrados – chamemos-lhe elite intelectual, para simplificar – multirracial, feita de contribuições originárias de entidades que, simbolicamente, se antagonizavam. Como assinala Aníbal, de A Geração da Utopia, “uma elite intelectual de causar inveja a qualquer país africano. Elite citadina, transitando tranqüilamente da cultura européia para a africana, acasalando-as com sucesso, num processo que vinha de séculos”. A postura ideológica anti-colonial e nacionalista dessa elite, a reivindicação cultural e política que realizava, apenas simbolicamente antagonizava os significantes negro/branco. E isso ainda no período colonial. Vários escritos corroboram essa proposta de complementaridade e de coligação contra a dominação: ainda em 1942, Francisco José Tenreiro já revela no poema “Canção do Mestiço” um sujeito poético feito do negro e do branco que, manifestando-se na figura do sujeito da enunciação, está privilegiadamente posicionado na fronteira entre os dois mundos –  isto é, na “fronteira do asfalto” (LUANDINO VIEIRA, A Cidade e a Infância, 1957) e aproxima os dois mundos: “Quando amo a branca/Sou branco/Quando amo a negra/Sou negro/ Pois é...”. Portanto a proposta, ou a possibilidade de complementaridade de opostos, ou de pseudo-divergentes, por ser recorrente, pode ler-se como uma componente da anti-colonialidade  que se vai transformar num dos parâmetros da nossa expressão literária pós-colonial.
 A demanda pós-colonial das literaturas africanas de língua portuguesa a que fiz referência anteriormente reporta-se, também, à imposição que ao escritor é feita de “consumir” os seus próprios “preconceitos”7. Esses pré-conceitos de que falo dizem respeito tanto a configurações anteriores, que enformam a “tradição literária africana” e a memória dela, como aos códigos estéticos do contexto no qual elas se afirmaram.
 E, isto, remete-nos para a segunda demanda do pós-colonial que aponta para  a reescrita e a repaginação da(s) identidade(s) cultural/ais, segundo estratégias que não apelam à ruptura, antes remetem para um processo de remitologização.  A ideologia libertária, exclusivista por natureza e necessidade, revelava-se pouco dinâmica para responder aos desafios da modernidade: não é por acaso que Mayombe, um romance escrito ainda em 1971, durante o tempo da guerrilha, só tenha sido publicado em 1980, quando os sinais da utopia político-social já começavam a manifestar-se de forma evidente. Seguem-se Quem me dera ser onda (1982), de Manuel Rui, Os Anões e os Mendigos (1984), de Manuel Lima, O Cão e os Calus (1985) de Pepetela, em Angola; Vozes anoitecidas (1986) e Cronicando (1988),  de Mia Couto, em Moçambique; O Eleito do Sol (***), de Arménio Vieira, em Cabo Verde;   A Berlinização ou Partilha de África (1987), de Aíto Bonfim, em São Tomé e Príncipe. Vale a pena não esquecer que os escritores citados são autores de obras celebrativas, eufóricas e solares em termos de afirmação da identidade cultural e dever patriótico.
Tal como a literatura anti-colonial, na fase de emergência, existência, consolidação e individualização nacional, mobilizou estratégias contra o discurso que considerava a produção literária de África como “ultramarina” – para afirmar a diferença e reivindicar a pátria –, também a actual escrita africana mobiliza estratégias contra-discursivas que visam a deslegitimização dum projecto de nação monocolor pensado sob o signo da ideologia nacionalista. Para reescrever a visão uniformizante de pátria, em que Homem e Natureza se encontravam vinculados à Pátria, como acordes de uma mesma sinfonia, a nova literatura opta por representar a alteridade, celebrando as várias raças do homem; para reescrever a visão eufórica da História dos sujeitos africanos10, as exigências da consciência contrapõem agora uma contra-epopéia política e social que visa referenciar a transformação dos ideais agónicos.  Mas, a particularidade dessa reescrita consiste não na invenção de um outro lugar totalmente outro, mas na proposta de uma deslocação dentro do mesmo lugar (Boaventura de Sousa Santos)11 , para nele agenciar tanto a catarse dos lugares coloniais como os tensões pós-coloniais, como em A Varanda do Frangipani (1996) que, deliberadamente, baralha lugares e tempos históricos para significar que a sua diferença, sendo de natureza (colonial/pós-colonial), é também de olhar: numa sociedade em que “já ninguém respeitava os velhos”, como amargamente considerava Salufo Tuco, Xidimingo, colono branco, encontrou nos outros velhos do asilo, negros, a verdadeira dimensão da solidariedade humana. Também romances como Mayombe, A Geração da Utopia (1992), Parábola do Cágado Velho (1996) ou Ventos do Apocalipse (1993), “metaficções historiográficas”, obras que buscam na História a sua própria existência simbólica, funcionam com uma lógica antiépica que acaba por referenciar os ideais agónicos da revolução e do nacionalismo, através do despertar de vozes e memórias que na utopia político-social não tinham lugar. Estamos, assim, perante um contra-discurso que intenta a  mudança no contexto do discurso dominante (e no âmbito do que tenho vindo a considerar o discurso dominante é a “literatura consagrada” com nomes emblemáticos que todos conhecemos nas quatro literaturas)12  –  gerindo as suas potencialidades e as suas limitações quanto a uma “renovação discursiva”. 
Consoante a intenção dessa renovação, as estratégias contra-discursivas tomam formas diversas. Por exemplo, em Pepetela consistem no  destecer das teias do logro e sombras da História – e nisso reside a originalidade da sua escrita. A inovação contida na obra romanesca de Pepetela reside no repovoamento da paisagem e na remitologização do espaço da utopia roída pelos descasos da revolução. Diferentemente do que acontece em Estação das Chuvas (1996), de José Eduardo Agualusa, ou no já citado Os Anões e os Mendigos, de Manuel dos Santos Lima, em Maio, Mês de Maria, de Boaventura Cardoso, e até alguns dos pequenos contos de Da Palma da Mão (1998), de Manuel Rui – nestas narrativas a morte do país anuncia-se irrevogável: “este país morreu”, diz uma das personagens de Estação das Chuvas – um  pretérito que retira a possibilidade de revitalização, de qualquer restituição vital e, portanto, a impossibilidade liminar da utopia. Mas a corroborar a idéia de que “é a imperfeição do mundo que justifica a utopia, que a torna incontornável, inevitável”13 , a obra romanesca de Pepetela, mesmo aquela em que o desencanto é intenso como em A Geração da Utopia ou em O Desejo de Kianda (1995), contorna a distopia e antecipa um outro “desejo utópico” não se esgotando um pretérito sem remissão – veja-se a reinício sugerido de A Geração da Utopia: não pode haver ponto final numa história que começa por “portanto”.  
Outra marca importante da nossa pós-colonialidade literária tem a ver com o lugar e o modo como o escritor africano trabalha e se posiciona na língua portuguesa. Do passado para o presente, a escrita já não denuncia qualquer tensão  na expressão da cultura e da vivência do falante, como em Mestre Tamoda (1974) de Uanhenga Xitu, cuja significação não se esgota na africanização da língua portuguesa mas passa também pela tematização do desfasamento entre a estruturação cultural da língua portuguesa e a expressão de uma vivência conduzida em lugares não harmoniosos de convivência de diferentes (o português e o kimbundu, a cidade e o campo, a letra e a voz). Mais do que a africanização do português, em Uanhenga Xitu o que é tematizado é a oraturização do sistema verbal português: ora, este é um processo que ultrapassa o código lingüístico e se expande por terrenos translinguísticos como a onomasiologia (a onomástica e a toponímia, sobretudo), a cenarização (o registo das vozes, a rítmica da dicção e a representação dos gestos) e a sugestão musical. Todos esses recursos de narração rubricam-lhe uma forma mimética e permitem identificar, na fala narrativa, a interacção entre a escrita e os textos não escritos incorporados na cultura local, que se dão a conhecer em português.  
Diferentemente de Uanhenga Xitu, Luandino Vieira faz emergir as suas personagens de um contexto tendencialmente monolingue, regularmente escolarizado e de uma cultura urbana e, naturalmente, resultando de um processo transculturativo. A obra de Luandino, em Angola e na literatura africana de língua portuguesa, é expoente da invenção de uma linguagem literária através da qual comunicou mensagens subversivas – uma linguagem literária que emerge de uma linguagem “letrada” e recriativa, como a de João Vêncio ou de Lourentinho. Enquanto em Uanhenga Xitu a dimensão babélica é sugerida pela confrontação de identidades sociais e culturais, que as diferenças das expressões lingüísticas das personagens encenam – diferenças que remetem semanticamente para a dispersão e para a recusa de um código de comunicação totalitário –, em Luandino Vieira a reinvenção metalingüística é uma via de resistência e atributo de consciência perante a ambiência  insuportável à volta: pressão interior e espiritual, opressão sociocultural e política. Por exemplo, em “Estória de Família (Dona Antónia de Sousa Neto)”, uma das três estórias de Lourentinho, Dona António de Sousa Neto & Eu (1981), Tomás aconselha o jovem Paulo a conhecer Assis – que este pensava tratar-se de um músico – pois “sem o Assis não haverá poesia angolana”.14 
 Se a  linguagem literária de Luandino, de intenção anti-colonial e contra a desagregação identitária, indiciando um trabalho peculiar da língua, rubrica significadores de universos socioculturais e perfis éticos e ideológicos, em Mia Couto a língua, igual para todos, permite a singularização de cada uma das personagens, enquanto o léxico desempenha um papel determinante na construção da identidade colectiva e busca uma nova geografia lingüística, isto é, uma nova ideologia para pensar e dizer o país15 . Em tempo pós-colonial, em Mia Couto a ludicidade não é o resultado de um “simples” acto gozoso, embora se sobreponha ao empenhamento político-ideológico sem, contudo, o rasurar pois que as falas do narrador e das personagens são rubricadas com atributos da representação dialógica do saber da letra e da voz, apesar  da função do prazer. A corroborar essa leitura da artesania reinventiva do verbo, o próprio Mia Couto confessa o seu fascínio pelas histórias que resulta da necessidade absoluta de brincar16 –- ele que afirma, em outra ocasião, a vantagem de ser conhecedor materno da língua.17 
 Sendo uma das marcas das culturas pós-coloniais a sua hibridez, resultado de uma situação de semiose cultural ou de relação dialéctica entre matrizes civilizacionais diversas, nunca antes como em Mia Couto a expressão literária revela a sua mestiça existência e vivência, do seu criador e suas criaturas: mestiços de cultura, de espaços, de saberes e de sabores. Esse trabalho consiste num processo de recriação de desenredos verbais a que se segue a incorporação de saberes não apenas lingüísticos mas, também, de vozes tradicionais, do saber gnómico que o autor vai recolhendo e assimilando nas margens da nação – o campo, o mundo rural – para revitalizar a nação que se tem manifestado apenas pelo saber da letra. Essa revitalização segue pela via da levedação em português de signos multiculturais transpostos para a fala narrativa em labirintos idiomáticos como forma de resistência ao aniquilamento da memória e da tradição.
 Se em Uanhenga Xitu e Luandino Vieira se pode falar da maldição de Babel – porque as personagens canibalizam os significantes do confronto com o saber cultural (Uanhenga Xitu) ou intelectual (Luandino Vieira) –, Mia Couto celebra a pluralidade em pulsações e formulações translinguísticas e desenredos de expressões idiomáticas e proverbiais através de uma prolífera reinvenção do significante e do significado, uma inventividade mais do que de uma língua, de expressão, portanto, de linguagem. Metalinguisticamente, a filosofia que se pode induzir dessa escrita (de Mia Couto) é o princípio segundo o qual a medida da vitalidade de uma entidade lingüística (seja o próprio sistema seja apenas a estrutura lexical ou uma palavra) é a freqüência da sua prática. Assim, pela recorrência a um determinado léxico que aponta para o sonho, o sono, o ar, a água as fronteiras do dito e do estatuído são esbatidas e a atmosfera de integridade do Ser alarga as margens da imaginação, transpondo as fronteiras do interdito social e da “conveniência” político-ideológica (no caso de O Último Vôo do Flamingo) e recorrendo à cultura para a reconversão do absurdo. 
Aliás, o absurdo é a minha última paragem. Pois, outra marca dessa transformação literária nos sistemas africanos dos países de língua portuguesa, que leio como uma componente da sua (nossa) pós-colonialidade, é o recurso ao insólito, ao absurdo, ao fantástico como estratégia de enfrentamento do real: de Mia Couto, que utiliza essas representações do fantástico com recorrência a Sousa Jamba de Confissão Tropical (1995); A Lonely Devil, (1994), ainda de Sousa Jamba, de Maio, Mês de Maria (1997), de Boaventura Cardoso ou, antes, de A Morte do Velho Kipacaça (1989) a O Desejo de Kianda, de Pepetela, ou a Mistida (1997) do guineense Abdulai Sila, e a O Sétimo Juramento (2000), de Paulina Chiziane, o insólito surge como a lógica possível  de uma realidade que, de tão absurda, carece de explicação a partir do real. Através de construções simbólicas, alegóricas e insólitas intenta-se recuperar o sentido da realidade, como em Terra Sonâmbula em que o percurso de Tuahir e de Muidinga/Kindzu é o do despertar da terra sonambulante; ou em O Desejo de Kianda, em que a explicação para a queda dos prédios – registro cronístico que é metáfora de uma realidade sócio-política, cultural e ética apocalíptica – só se encontra no registro lendário do cântico de Kianda, o espírito das águas, que se revolta redesenhando uma nova geografia, a primitiva, propondo a possibilidade de um novo começo. 
As literaturas africanas de língua portuguesa participam da tendência – quase um projecto – de investigar a apreensão e a tematização do espaço colonial e pós-colonial e regenerar-se a partir dessa originária e contínua representação. Os significadores desse processo, que constituem a singularidade da nossa pós-colonialidade literária, são potencialmente produtivos: sinteticamente dizem respeito a uma identidade nacional como uma construção a partir de negociações de sentidos de identidades regionais e segmentais e de compromisso de alteridades. O que as literaturas africanas intentam propor nestes tempos pós-coloniais é que as identidades (nacionais, regionais, culturais, ideológicas, sócio-econômicas, estéticas) gerar-se-ão da capacidade de aceitar as diferenças.
 biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/aladaa/mata.rtf 

 

Notas Bibliográficas: 
 * Texto apresentado no  X Congresso Internacional da ALADAA (Associação Latino- Americana de Estudos de Ásia e África) sobre CULTURA, PODER E TECNOLOGIA: África e Ásia face à Globalização – Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro – 26 a 29 de outubro de 2000.
Este texto retoma, em versão muito resumida,  algumas ideias da conferência proferida no dia 2 de junho de 2000 no Encontro Internacional “A língua portuguesa no virar do milénio – Encontro  com José Saramago” – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1 e 2 de junho de 2000.
 1 Ideia que não deve confundir-se com pós-independência – embora esta seja a antecâmara daquela.
 2 KWAME ANTHONY APPIAH, “Is the Post- in Postmodernism the Post- in Postcolonial?”.  PADMINI MONGIA (ed.), Contemporary Postcolonial Theory – a Reader, London, Arnold, 1996. p.63.
 3 RUSSEL HAMILTON,  “A literatura nos PALOP e a teoria pós-colonial”. Revista Via Atlântica – Publicação da Área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, nº 3 , São Paulo, 1999. p. 15.
 4 Apud VERONICA PEREYRA & LUIS MARÍA MORA, Literaturas africanas – de las sombras a la luz, Madrid, Editorial  “Mundo Negro”, 1998. P. 118.
 5 PEPETELA, A Geração da Utopia, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1992. p. 305.
 6 FRANCISCO JOSÉ TENREIRO, Ilha de Nome Santo, Coimbra, Colecção Novo Cancioneiro, 1942.
 7 Biases, na expressão de Wilson Harris. Apud HELEN TIFFIN, “Post-Colonial Literatures and Counter-discourse”. BILL ASHCROFT, GARETH GRIFFITHS & HELEN TIFFIN (ed), The Post-Colonial Studies Reader, London, Routledge, 1995. p. 96.
 8 Escritor são-tomense (poeta e dramaturgo) que se tem distinguido sobretudo na prática dramática: em 1995 publicou O Golpe – Uma Autópsia e é autor de A Invasão, também peça de teatro que ganhou em 1992 o Concurso “Vozes das Ilhas” e que não está publicada.
 9 Cito algumas: As Sementes da Liberdade (1965), As Lágrimas e o Vento (1975), no caso de Manuel Lima; como, para Pepetela, As Aventuras de Ngunga (1972) e Muana Puó (1978), sem esquecer a politicamente oportuna peça de teatro A Corda (1978);  Regresso Adiado (1974) Sim, Camarada! (1977), sem esquecer os seus creio que oito 11 Poemas em Novembro (pelo menos até 1988) – mesmo os mais novos, como Mia Couto e Aíto Bonfim (ambos nascidos em 1955), respectivamente, com os primeiros poemas de Raiz do Orvalho (1983) e poemas dispersos antes em A Palavra é Lume Aceso (1980) e Poemas que, embora publicados em 1992, já circulavam dispersos antes do primeiro livro do autor.
 10 Cito os poemas narrativos da literatura de combate e as narrativas de contaminação épica sobre Luanda, e as mais épicas como A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1974), Capitão Ambrósio (1975)  ou “Os Flagelados do Vento de Leste”, Caminhada (1962).
 11  BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, Pela Mão de Alice – o Social e o Político na Pós-Modernidade, Porto, Edições Afrontamento, 3ª ed., 1994,  p. 279-280.
 12 O caso da Guiné-Bissau é um pouco diferente, mas esta questão não cabe agora no âmbito das minhas reflexões. Cf. INOCÊNCIA MATA, “Guiné-Bissau”. PIRES LARANJEIRA (Org.), Literaturas  Africanas de Expressão Portuguesa, Lisboa, Universidade Aberta, 1995.
 13 EDUARDO PRADO COELHO, “A utopia num mundo imperfeito”. Jornal do Brasil. 19 de agosto de 1990. p. 4.
 14 LUANDINO VIEIRA, Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu, Luanda, UEA/Edições 70, 1981. Leia-se o diálogo entre Tomás, Paulo,  Temístocles, Damasceno e Olga nas páginas 109-110.
 15 INOCÊNCIA MATA, “A alquimia da língua portuguesa nos portos da expansão - em Moçambique, com Mia Couto”. Scripta – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e do CESPUC, vo. 1, nº 2, Belo Horizonte, 1998. p. 264.. Também: Revista Língua e Cultura, números: 5 e 6 – II Série,1997. Sociedade da Língua Portuguesa (Lisboa).  Páginas do artigo: 23-30.
 16 Entrevista a JOSÉ EDUARDO AGUALUSA, “O Gato e o Novelo”. JL – Jornal de Letras, Artes & Ideias, 8 de outubro de 1997.
 17 “Beneficio-me de uma situação privilegiada, porque tenho um pé na norma e outro na errância a que está sujeita a língua portuguesa (…) A maior parte das construções não as reproduzo mecanicamente. Tento reencontrar a lógica que leva a essa possibilidade de reconstrução” “MIA COUTO, em entrevista ao JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 18/ 8/ 1994. p. 14.



LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO, JOSÉ CARREIRO. 

1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/LA.htm, 2008-04-23.