terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Trapo: O dia deu em chuvoso (Álvaro de Campos)

 


TRAPO

 

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação? tristeza? coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser suscetível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Deem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros – isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? afetos? São memórias…
É preciso ser-se criança para os ter…
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer…
Quando foi isso? Não sei…
No azul da manhã…

O dia deu em chuvoso.

 

Álvaro de Campos, Poesia, edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002

 

Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Relacione o estado de espírito do sujeito poético com as condições meteorológicas referidas na primeira estrofe.

2. Interprete o sentido dos versos 8 a 13.

3. Explique a importância da referência às memórias da infância nos versos 20 a 27.

4. Indique quatro dos processos que contribuem para marcar o ritmo do poema, fundamentando a resposta com elementos do texto.

 

Explicitação de cenários de resposta.

(As respostas podem contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.)

 

1. Na primeira estrofe do poema, a relação entre o estado de espírito do sujeito poético e as condições meteorológicas evolui de uma relação de contraste para uma relação de semelhança:

– no início do dia, o estado de espírito do sujeito poético é de alguma tristeza (v. 4), mas o céu azul indicia alegria (v. 2);

– no decurso do dia, há uma evolução das condições meteorológicas («O dia deu em chuvoso» – vv. 1, 3 e 7), tornando-se mais parecidas com o estado de tristeza do sujeito poético.

2. Nos versos 8 a 13, o sujeito poético assume uma opinião que diverge da opinião dos outros relativamente ao conceito de elegância associado ao estado do tempo:

– os outros consideram que o tempo chuvoso é elegante e o sol vulgar e desagradável;

– o sujeito poético é indiferente a essa ideia de elegância, preferindo inequivocamente o sol e o céu azul, já que para tempo chuvoso basta o do seu mundo interior.

3. A referência às memórias da infância permite realçar o contraste entre um passado feliz e um presente infeliz.

A impossibilidade de recuperar o bem perdido da infância, metaforizada em «madrugada perdida» e «céu azul verdadeiro» (v. 22), acentua a infelicidade sentida no momento presente. De facto, os afetos, que fazem parte das memórias da infância do sujeito poético, contrastam dolorosamente com um presente opaco e triste, que se associa metaforicamente ao dia chuvoso.

4. A resposta pode contemplar os aspetos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

O ritmo do poema é marcado pela utilização de processos como:

– a repetição do verso «O dia deu em chuvoso» (vv. 1, 3, 7, 19, 23 e 28), que funciona como um refrão;

– a anáfora (vv. 8-10);

– a enumeração (vv. 5, 13 e 20);

– as repetições lexicais em final de verso (vv. 4 e 6; 8-11; 14 e 16);

– a irregularidade métrica;

– a alternância entre frases longas e frases curtas;

– as pausas no interior dos versos.

 

Fonte: Exame Nacional de Português n.º 639 - 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2013, Época Especial





Texto de apoio: O significado de verso do poema Trapo (Álvaro de Campos)

 

No poema “Trapo”, de Álvaro de Campos, qual o significado do verso «Até amaria o lar, desde que o não tivesse»?

Questão colocada por Sónia Martins  Estudante  Lisboa, Portugal

Resposta:

Importa lembrar que não se pode isolar um excerto, ou mesmo uma só palavra, de um texto literário, porque o seu sentido está intimamente ligado à totalidade do discurso poético.

Fazendo parte do 7.º verso da 2.ª estrofe — «Hoje quero só sossego. Até amaria o lar, desde que o não tivesse» — do poema Trapo, a frase «Amaria o lar, desde que não o tivesse» parece, à primeira vista, absurda, insólita, o que nos pode levar a considerá-la um paradoxo ou, usando a terminologia literária, um oxímoro. E talvez se deva à estranheza que tal frase provoca em qualquer leitor a dificuldade que a consulente sente em a interpretar.

Temos, em primeiro lugar, de ter em conta a forma como é iniciado o verso em que essa frase está inserida — «Hoje quero só sossego» —, uma frase assertiva, em que o sujeito poético evidencia claramente o seu desejo, que se resume a uma única vontade, o que está explícito pelo advérbio restritor só: sossego. Ora, essa atitude de «sossego» pressupõe a total ausência de inquietação, perturbação, ansiedade, ou seja, o não envolvimento em qualquer tipo de situação diferente da habitual. Aí está nitidamente expresso o desejo de entrega a uma passividade absoluta, a um estado tal de quietude  e de anulação de reacção que o leva(ria) a aceitar, a fazer concessões em relação a todo o tipo de situações, mesmo as mais improváveis, como é o caso da de «amar o lar».

E, para realçar a ideia de excecionalidade da concessão, o sujeito poético introduz essa frase com o advérbio até, preocupando-se em marcar bem a ideia de que «amar o lar» se encontraria no domínio do hipotético, de algo não real, pois utiliza a forma do condicional amaria, sem deixar de evidenciar que a existência de tal sentimento estaria intimamente ligada à certeza da impossibilidade da sua concretização.

Este jogo entre a verbalização de uma concessão e a sua anulação imediata — «desde que não o tivesse» — transparece a atitude irónica com que este sujeito poético encara o leitor e, naturalmente, a sociedade. Porque ele tem consciência do desconcerto que esta frase provoca no outro que a lê. Mas é precisamente essa a intenção deste sujeito poético: a de se afirmar como diferente, a de ostentar o seu desprezo pelas condutas e pelos códigos sociais, a de negar a sua identificação com os demais. Assim, o que para os outros é natural e desejável — ter um lar e amá-lo —, para ele, é algo desnecessário, inútil e, até mesmo, marca de infantilidade, de imaturidade.

Se analisarmos a estrofe seguinte, apercebemo-nos de que ele associa o carinho e o afeto às crianças, relegando a afetividade para o plano da imaturidade, da ingenuidade, de algo que não deseja para si e que despreza.

Eunice Marta, 10-02-2010

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/o-significado-de-verso-do-poema-trapo-alvaro-de-campos/27648 [consultado em 24-02-2023]


Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos (Álvaro de Campos)

 



 

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,

 

E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.

 

A minha vida passada misturou-se-me com a futura,

 

E houve no meio um ruído do salão de fumo,

5

Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.

 

 

 

Ah, balouçado

 

Na sensação das ondas,

 

Ah, embalado

 

Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,

10

De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,

 

De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,

 

Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.

 

 

 

Ah, afundado

 

Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,

15

Irrequieto tão sossegadamente,

 

Tão análogo de repente à criança que fui outrora

 

Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,

 

Nem as outras álgebras com x e y’s de sentimento.

 

 

 

Ah, todo eu anseio

20

Por esse momento sem importância nenhuma

 

Na minha vida,

 

Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos –

 

Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,

 

Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender

25

E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.

Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos, Lisboa, IN-CM, 1992

 

I - Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário sobre o texto lido.

1. No poema, o sujeito evoca uma viagem de barco. Caracterize o espaço físico representado.

2. Explicite os efeitos de ritmo e de sentido produzidos pela repetição da interjeição «Ah» (vv. 6, 8, 13, 19, 22).

3. Interprete a comparação entre o «eu» e «um livro» (vv. 11-12).

4. Comente o sentido da alusão à infância (vv. 16-18).

5. Explique por que razão o sujeito poético anseia «por esse momento, como por outros análogos» (v. 22).

 

Explicitação de cenários de resposta

1. O espaço físico evocado é o convés dum navio, numa viagem marítima, em noite de luar.

A «cadeira de convés», em que o sujeito se representa recostado para trás, o «ruído do salão de fumo», onde «acabara a partida de xadrez» (vv. 4 e 5), a alusão à «sueca» (v. 12) são elementos indiciadores do ambiente requintado e cosmopolita dos paquetes de luxo. O movimento cadenciado das ondas, balouçando a cadeira de convés (vv. 6-7), e a presença do «luar» (v. 25) completam o quadro com a sugestão de um mar tranquilo.

2. A interjeição «Ah» ocorre, anaforicamente, nos versos 6, 8, 13, 19 e 22. Esta anáfora marca o ritmo do poema.

Por outro lado, pela associação aos adjetivos «balouçado», «embalado», «afundado», o repetir da interjeição «Ah» assinala um crescendo no estado de torpor em que o sujeito se encontra.

As duas ocorrências finais, em que esta anáfora se expande em unidades maiores («Ah, todo eu anseio / Por esse momento», «Ah, todo eu anseio por esse momento»), tornam mais claro o sentimento expresso pela interjeição: o desejo de reencontro, por parte do sujeito, desse instante e de «outros análogos» do passado.

3. A comparação entre o «eu» e «um livro» é interpretável de vários modos, nomeadamente:

• a casualidade banal do livro ali deixado é aproximada à sensação de estar ali, esquecido de si, liberto de cuidados e de obrigações;

• ao rever-se na imagem do livro deixado ali por acaso, o «eu» sublinha o seu desejo de quietude ou de anonimato – ele está ali na «cadeira de convés» como uma coisa em que ninguém repara;

• ...

Nota – A apresentação de uma linha de interpretação plausível é considerada suficiente para a atribuição da totalidade da cotação referente aos aspetos de conteúdo.

4. A alusão à infância é suscitada pela analogia entre o estado de espírito do sujeito lírico – recostado na «cadeira de convés» – e a criança que fora «outrora», «Quando brincava na quinta». Ignorante dos saberes e das convenções dos adultos, o «eu» da infância vivia o presente com a despreocupação da sua inocência. Essa pureza original é como que recuperada naquele instante privilegiado de semiadormecimento que permite ao sujeito abandonar-se à simples vivência do momento.

5. No final do poema, o sujeito poético expressa, reiteradamente, o seu anseio por aqueles momentos da sua vida em que, tal como na «cadeira de convés», se entregou, sem preocupações, ao presente, vivido e apreciado enquanto tal.

O anseio do sujeito poético por estes momentos «sem importância nenhuma» – em que nada acontece e a própria consciência do «eu» está como que suspensa, semiadormecida – funda-se, nomeadamente, nas seguintes razões:

– tais instantes possibilitam ao «eu» experienciar o próprio «vácuo da existência», sem o problematizar ou questionar dentro de si;

– esses momentos significam repentinas aproximações do «eu» adulto à sua infância perdida, quando viver fora, simplesmente, fruir em pleno cada instante.

Em suma, nestes momentos realiza-se o anseio do sujeito poético pelo abrandamento da racionalidade, pela vivência do imediato apreendido pelos sentidos («Na sensação das ondas», v. 7; «sentir-me ali», v. 11).

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2000, Prova Modelo (baseada na Prova n.º 139 de 1999, 1.ª fase, 2ª chamada)

  


II – Comentário de texto

Elabore um comentário global do poema transcrito, tendo em conta os níveis formal, fónico, morfossintático e semântico, de modo a evidenciar, entre outros, os seguintes aspetos:

- o confronto de uma situação concreta com o sentimento intimo de vida expresso;

- a dialética temporal na sua relação com uma determinada vivência do 'eu ';

- as marcas de expressão do desejo de um "momento sem importância nenhuma";

- relação com a poesia de Álvaro de Campos por si estudada.

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 134. 12.º Ano de Escolaridade - Via de Ensino (4.º curso). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, 1997, 1.ª fase, 2.ª chamada


Sugestão de comentário textual:

O poema "Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos" de Álvaro de Campos apresenta um confronto entre a situação concreta em que o eu lírico se encontra (no convés de um navio) e o sentimento íntimo de vida do eu-lírico, que se assemelha a um "precipício" (v. 2). A vida passada mistura-se com a futura (v. 3), e o eu lírico encontra-se num estado de transição entre o que foi e o que ainda será. A sensação de balanço das ondas (v. 6) e a ideia de que hoje ainda não é amanhã (v. 9) oferecem uma sensação de conforto e segurança para o eu lírico.

O ruído do salão de fumo, onde a partida de xadrez acabara, é o único som que o eu-lírico ouve, e ele sente-se balançado pela sensação das ondas, embalado na ideia reconfortante de que hoje ainda não é amanhã e que, pelo menos neste momento, ele não tem nenhuma responsabilidade.

A dialética temporal na relação com a vivência do eu é uma característica marcante do poema. O eu lírico encontra-se num estado de transição, em que o passado e o futuro se fundem e se confundem. A alusão à infância (v. 16) sugere a presença de um eu primordial, livre da responsabilidade e das preocupações adultas. Esse eu primordial é como que recuperado no momento presente em que o eu lírico se encontra, em que ele anseia por um "momento sem importância nenhuma" (v. 23), em que possa se entregar à vivência do imediato apreendido pelos sentidos.

As marcas de expressão do desejo por um "momento sem importância nenhuma" (v. 23) são uma constante ao longo do poema. O eu lírico anseia por um momento de abrandamento da racionalidade, em que possa se entregar à vivência do presente de forma simples e despreocupada. Ele deseja sentir-se como um livro deixado na cadeira de convés por alguém que joga sueca (v. 12), sem personalidade propriamente dita, mas sentindo-se presente ali, em cima da cadeira. Esse desejo de um momento sem importância nenhuma é expresso de forma intensa, como uma ânsia que percorre todo o poema.

O poema "Encostei-me para trás na cadeira de convés" contém várias características típicas da última fase do heterónimo Álvaro de Campos. A seguir, listarei algumas delas:

Sensação de vazio e angústia existencial: O poema reflete a sensação de vazio e de uma existência sem sentido que permeia a última fase da obra de Álvaro de Campos. Isso fica evidente nos versos "A minha vida passada misturou-se-me com a futura, / E houve no meio um ruído do salão de fumo" (vv. 4-5) e "Ah, todo eu anseio / Por esse momento sem importância nenhuma / Na minha vida" (vv. 19-21).

O poema reflete a preocupação de Álvaro de Campos com a falta de sentido da vida e a inevitabilidade do vazio existencial, como indicado pela referência ao "vácuo da existência" (v. 24) e à "solidão" (v. 25).

Consciência da fugacidade do tempo: No poema, há uma forte consciência da passagem do tempo e da fugacidade da vida, como indicado pela mistura da vida passada com a futura e o anseio por momentos sem importância, em que o sujeito é capaz de se livrar das responsabilidades e sentir-se como uma criança novamente.

Desejo de escapar da racionalidade e da rotina: O poema reflete o desejo de Álvaro de Campos de escapar da rotina e da racionalidade da vida quotidiana e se entregar à simples vivência do momento. Essa necessidade de escapar é representada pela imagem do sujeito lírico recostado na cadeira de convés, balançando suavemente com o movimento das ondas, e pela analogia com a criança que brinca na quinta.

Em suma, o poema de Álvaro de Campos apresenta uma reflexão sobre a passagem do tempo e a pressão da responsabilidade na vida adulta. O sujeito poético procura, através do desejo pelo "momento sem importância nenhuma", escapar a essa pressão e regressar a um estado de inocência e despreocupação. No entanto, o confronto entre a situação concreta e o sentimento interno revela a complexidade e a inevitabilidade da dialética temporal.

 

ChatGPT (Feb 13 Version), disponível em https://chat.openai.com/chat, 2023-02-20 (texto adaptado)


Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.


domingo, 26 de fevereiro de 2023

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos (Álvaro de Campos)

 


Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!

Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não são eu.

As crianças, que brincam às sacadas1 altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.

As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.

Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta –
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.

Que grande felicidade não ser eu!

Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.

Os outros nunca sentem.
Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.

Nada? Não sei...
Um nada que dói...

 

Álvaro de Campos, Poesia, edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002

 

___________

1 sacadas (verso 5) – varandas pequenas

 

Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. As sensações do sujeito poético são determinantes para a construção de uma certa ideia de quotidiano feliz.

Identifique duas sensações representadas nas quatro primeiras estrofes, citando elementos do texto para fundamentar a sua resposta.

2. Caracterize o tempo da infância tal como é apresentado na terceira estrofe do poema.

3. Explique a relação que o sujeito poético estabelece com os «outros» nas seis primeiras estrofes do poema, fundamentando a sua resposta em referências textuais pertinentes.

4. Relacione o conteúdo da última estrofe com as reflexões apresentadas nas duas estrofes anteriores.

 

Explicitação de cenários de resposta.

(As respostas podem contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.)

 

1. Nas quatro primeiras estrofes do poema, encontram-se representadas sensações visuais e auditivas, através dos elementos seguintes:

– «que já vi mas não vi» (v. 3) – sensação visual;

– «As crianças, que brincam às sacadas altas, / Vivem entre vasos de flores» (vv. 5-6) – sensação visual;

– «As vozes, que sobem do interior do doméstico, / Cantam sempre» (vv. 8-9) – sensação auditiva.

2. Na terceira estrofe do poema, o tempo da infância é caracterizado:

– por um ambiente de despreocupação feliz, sugerido pelo ato de brincar («As crianças, que brincam às sacadas altas, / Vivem entre vasos de flores» – vv. 5-6);

– pela não consciência da passagem do tempo («Sem dúvida, eternamente.» – v. 7).

3. A relação que o sujeito poético estabelece com «os outros» nas seis primeiras estrofes é marcada pela diferença:

– os «outros» são felizes, como se deduz dos elementos referidos no texto – alegria aparente (v. 2 e v. 4), brincadeira (v. 5), flores (v. 6), canto (vv. 8 a 10), festa (v. 11);

– o sujeito poético considera-se à parte e diferente deles – «São felizes, porque não são eu.» (v. 4), «Que grande felicidade não ser eu!» (v. 14).

4. A dor e o vazio expressos na última estrofe, particularmente no verso «Um nada que dói...» (v. 26), decorrem das reflexões desenvolvidas nas duas estrofes anteriores.

O sujeito poético questiona-se quanto aos «outros» (v. 15) e aos seus sentimentos, concluindo que:

– cada outro é um eu (v. 16); só é possível sentir enquanto «eu» ou «nós» (vv. 21-24);

– não se pode saber o que eles, os «outros», sentem (vv. 17-20); existe uma incomunicabilidade essencial entre os seres humanos, de que resulta a consciência individual separada de cada eu.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2011, 1.ª Fase


Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.


sábado, 25 de fevereiro de 2023

Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo. (Álvaro de Campos)

 



Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo.
São – tictac visível – quatro horas de tardar o dia.
Abro a janela diretamente, no desespero da insónia.
E, de repente, humano,
O quadrado com cruz de uma janela iluminada!
Fraternidade na noite!

Fraternidade involuntária, incógnita, na noite!
Estamos ambos despertos e a humanidade é alheia.
Dorme. Nós temos luz.

Quem serás? Doente, moedeiro falso1, insone2 simples como eu?
Não importa. A noite eterna, informe, infinita,
Só tem, neste lugar, a humanidade das nossas duas janelas,
O coração latente das nossas duas luzes,
Neste momento e lugar, ignorando-nos, somos toda a vida.

Sobre o parapeito da janela da traseira da casa,
Sentindo húmida da noite a madeira onde agarro,
Debruço-me para o infinito e, um pouco, para mim.

Nem galos gritando ainda no silêncio definitivo!
Que fazes, camarada, da janela com luz?

Sonho, falta de sono, vida?
Tom amarelo cheio da tua janela incógnita…
Tem graça: não tens luz elétrica.
Ó candeeiros de petróleo da minha infância perdida!

 

Álvaro de Campos, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002

____________

1 moedeiro falso: pessoa que falsifica moeda.

2 insone: pessoa que tem insónias.

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Identifique os sentimentos do «eu» expressos nas três primeiras estrofes.

2. Refira as sensações representadas no poema, transcrevendo os elementos do texto em que se fundamenta.

3. Apresente uma interpretação possível para o seguinte verso: «O coração latente das nossas duas luzes» (v. 13).

4. Comente o sentido da apóstrofe do último verso, tendo em conta a globalidade do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta.

1. Os sentimentos do «eu» expressos nas três primeiras estrofes são, nomeadamente, os seguintes:

– «desespero» pela «insónia» que o afeta, em plena noite;

– surpresa e júbilo, quando abre a janela e depara com luz na janela de uma casa, sinalizando a presença de outro ser humano acordado àquela hora;

– interesse pelo desconhecido também em vigília noturna;

– «Fraternidade» face a esse outro ser, também acordado àquela hora da noite.

2. No poema, encontram-se representadas sensações visuais, auditivas e tácteis, nomeadamente, através dos seguintes elementos do texto:

– «O quadrado com cruz de uma janela iluminada!» (v. 5), «Tom amarelo cheio da tua janela» (v. 21), «luz» (v. 9), «nossas duas luzes» (v. 13), «janela com luz» (v. 19), elementos relativos a sensações visuais;

– «no silêncio todo» (v. 1), «tictac visível» (v. 2), «Nem galos gritando ainda no silêncio definitivo!» (v. 18), elementos relativos a sensações auditivas;

– «Sobre o parapeito da janela da traseira da casa, / Sentindo húmida da noite a madeira onde agarro» (vv. 15-16), elementos relativos a sensações tácteis.

3. O verso referido pode ser interpretado nos seguintes termos:

– a perceção das «duas luzes» e do seu tremeluzir convoca a ideia de um «coração» que pulsa, unindo aqueles dois seres, na solidão da noite;

– as «duas luzes» assinalam a presença do humano na noite «eterna, informe, infinita» e apelam a um sentimento de partilha de «humanidade» entre os dois únicos seres acordados;

– as «duas luzes» são sinal da presença de duas consciências despertas na noite «informe»;

– ...

4. A apóstrofe «Ó candeeiros de petróleo da minha infância perdida!» faz intervir, no final do poema, a nostalgia da infância e a consciência da sua perda, por parte do «eu». Este facto pode ter, entre outras, as interpretações seguintes:

– o texto encerra, tal como se inicia, com a representação de uma atitude interior negativa (ou disfórica) do sujeito poético. Deste modo, a apóstrofe do último verso instaura (ou reinstaura), no final do poema, a angústia do «eu» como o eixo central dos sentidos expressos no texto;

– o verso final traz a lembrança, ou a saudade, da infância como novo sentimento despertado pela sensação visual da luz ao longe, pois essa luz é, tal como na infância do sujeito poético, produzida por um candeeiro a petróleo. A apóstrofe é, assim, a irrupção dessa recordação nostálgica num ambiente marcado por sensações e por considerações sobre o presente;

– ... 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto – Programas novos e Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Português / Português B - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2007, 1.ª Fase

 



Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Ah a frescura na face de não cumprir um dever! (Álvaro de Campos)


 


 

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

 

Faltar é positivamente estar no campo!

 

Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!

 

Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros.

5

Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,

 

Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha.

 

Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.

 

Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.

 

É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,

10

Deliberadamente à mesma hora ...

 

Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.

 

É tão engraçada esta parte assistente da vida!

 

Até não consigo acender o cigarro seguinte ... Se é um gesto,

 

Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

 Álvaro de Campos, Poesias, Lisboa, Ática, 1993

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Indique as relações de sentido que se estabelecem entre os quatro primeiros versos.

2. Explique como se concretiza a atitude de «deliberação do desleixo» (v. 5).

3. Explicite dois valores expressivos da antítese «vestida» / «nu» (vv. 7 e 8).

4. Caracterize os lugares representados pelos advérbios «lá» (v. 6) e «aqui» (v. 11).

5. Comente a importância dos dois últimos versos no contexto global do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta.

1. A satisfação de «não cumprir um dever», expressa no primeiro verso, é reiterada em cada um dos três versos seguintes, com diferentes modulações.

Esse sentimento de satisfação, que a interjeição e a tonalidade exclamativa sublinham, é traduzido, no primeiro verso, pelo evocar de uma sensação física agradável, «a frescura na face», que é amplificada na imagem do segundo verso - «estar no campo» -, e em cada um dos dois versos seguintes: «refúgio», «Respiro melhor».

O não cumprimento de «um dever», referido no primeiro verso como causa de autocomprazimento ou de agrado, é, sucessivamente, concretizado no acto de «Faltar» (v. 2), realçado na sua consequência - «não se poder ter confiança em nós» (v. 3) - e identificado, por fim, com o facto de o «eu» ter falhado encontros - «agora que passaram as horas dos encontros» (v. 4).

2. A atitude de «deliberação do desleixo» concretiza-se através dos seguintes atos do sujeito poético:

- faltar deliberadamente a todos os encontros marcados, deixando passar as «horas» combinadas e fingindo estar a aguardar o que «saberia» ser impossível: «a vontade de ir para lá»;

- marcar deliberadamente para a mesma hora encontros em dois locais diferentes (cf. vv. 9 e 10), inviabilizando, à partida, a sua comparência;

- …

3. A antítese «vestida» / «nu», marcando a oposição entre a «sociedade organizada e vestida» e o estar «nu» do sujeito poético, evoca, entre outros valores expressivos, a tensão entre:

- aparência / verdade;

- prisão (conveniências, regras exteriores) / liberdade (interior);

- organização / devaneio;

- sociedade / indivíduo;

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de dois valores expressivos.

4. O advérbio «lá» refere o lugar dos «encontros», da «sociedade», das regras, das conveniências, do exterior, dos «outros».

O advérbio «aqui» representa o lugar do «eu» que é «assistente da vida», do «eu» sonhador, do «eu» como sujeito da imaginação, do «eu» poeta, criador, livre, descomprometido.

O contraste entre «lá» e «aqui» é homólogo da oposição entre o longe (aquilo de que o sujeito se quer afastado) e o perto (aquilo que ele define como o mundo interior da imaginação poética e do sonho - «ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico»).

5. Os dois últimos versos desenvolvem até ao absurdo a recusa do «eu» em sair do seu lugar de «assistente da vida», em se comprometer com a ação exterior, prescindindo até do gesto de «acender o cigarro seguinte», porque este, como gesto que é, participa da exterioridade e da ação, pertence ao mundo da «sociedade organizada e vestida», dos «outros» que esperam o «eu» nos «encontros» sempre falhados. A ausência de tal gesto é uma imagem que conota (para além da suspensão no tempo) a recusa de participação na vida social balizada pelo «dever».

O comentário «Se é um gesto, / Fique com os outros», apresentando, em registo irónico, tal «gesto» recusado como um símbolo do «desencontro que é a vida», constitui uma opção (aparentemente definitiva) pela vida de devaneio, de imobilidade e de solidão, apesar de o sujeito poético saber que terá de regressar ao «desencontro».

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2003, 1.ª fase, 1.ª chamada

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.