“Sabidamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural. A razão é muito simples: não sabemos o
que é o universo”.
Jorge Luis Borges,
In O idioma analítico de John
Wilkins
A poesia de Manuel António
Pina procura dissolver as dicotomias entre eu/ outro, fora/dentro, sujeito/objeto, que só ocorrem
de maneira artificial. Pina aprende com a mecânica quântica
que a realidade não existe
sem interação; ela é um complexo entre o observado
e o observador: “como podemos distinguir a dançarino
da dança”71. Desta forma,
“aquilo que existe
nunca é estável;
não passam de um saltar de uma interação a outra” (ROVELLI,
2015, p. 41). No entanto,
nosso olhar e nossa linguagem interferem nessa
interação,
suspendem
esse
emaranhado
e
decidem em favor de um ponto de vista fixado.
Por isso, acreditar que é possível capturar a "realidade em si” só pode funcionar como uma utopia
metafísica:
O que o realista
metafísico sustenta é que podemos pensar e falar sobre as
coisas como são, independentemente de nossas mentes,
e que nós podemos fazer isso pela virtude de uma relação de “correspondência" entre termos em nossa linguagem
e alguns tipos de entidades
não dependentes da mente
(PUTNAM, 1996, p.205).
Mas Pina não é um metafísico, seu realismo é outro. Diríamos,
com António Saez Delgado
(2017), que ele busca um "realismo integral” (2017, p. 981), em que ser
e possiblidade, real e ilusão
(literatura), sonho e realidade formam
um entrelaçamento. Esse é o termo usado por Erwin Schrödinger para caracterizar a principal propriedade dos sistemas
quânticos: entrelaçamento. Para ele, não é
possível descrever exatamente o estado de duas partículas ou sistemas depois
de terem interagido. Considerados fora da interação, só podemos saber algo aproximado sobre essas entidades, elas são apenas
uma “função de onda” – uma
representação matemática e abstrata que nos dá a probabilidade de encontrar o objeto
em um determinado lugar. A teoria do entrelaçamento confirma novamente a intuição de que as “observações não só perturbam o que deve ser medido, observações
na verdade produzem o resultado
medido” (ROSENBLUN & KUTTNER, 2017, p.116). O resultado é uma criação,
ou melhor, descriação (no sentido que discutimos na seção anterior).
Para ilustrar a ideia em um nível
macroscópico, o físico
austríaco criou o famoso
experimento mental, conhecido
posteriormente como o gato de Schrödinger. Mais uma vez voltemos aos gatos, agora um outro tipo de “gato inconcreto” (PINA, 2012, p. 358) ou “gatos-abstractos" (PINA, 2012, p. 271). Imaginemos que um
gato é colocado no interior
de uma caixa. Lá dentro há um mecanismo que, ao ser ativado
pelo decaimento de um átomo de um elemento radioativo, libera um gás letal. O átomo tem o que se chama de “meia-vida”, ou seja, durante um período x de tempo, ele tem cinquenta
porcento de chance de decair. Porém, segundo a teoria do entrelaçamento, antes
da medição (da nossa interferência) o átomo decaiu
e não decaiu; o gato está morto e vivo ao mesmo tempo. Somente quando abrimos a caixa
é que o sistema colapsa e é decidido o destino do animal. De modo semelhante
ao coelho-pato de Wittgenstein, em que a imagem dos dois animais
não é percebida em simultâneo, não somos capazes
de ver o gato em um estado morto-vivo. Antes do colapso, só temos cálculos
probabilísticos sobre o acontecimento de um ou outro
evento. Desse modo, estar vivo ou morto (pelo menos para o malfadado animal hipotético) não passa de uma questão
de probabilidade. Essa é – para usar a
expressão de Pina na entrevista que abrimos o texto – uma “pedrada
muito forte” para o nosso senso comum. Afinal,
não existe uma lei intrínseca na natureza?
Por que a equação
de Schrödinger aplica-se
apenas quando a medição não está
ocorrendo? Não parece ser assim que as leis da natureza trabalham
– pensamos nas leis da natureza
como algo que se aplica o tempo todo, não importando o que estamos
fazendo. Se uma folha cai de uma árvore, ela cairá esteja alguém olhando
ou não (BECKER, 2018, p. 36).
Pina coloca esta questão,
que é sobretudo identitária, ou mesmo ontológica, da seguinte maneira:
Como não estareinem não estareiem nenhum sítio, voltandoabsolutamente pra casa?
(PINA, Todas as Palavras, 2012, p. 150).
O “eu" está em “nenhum
sítio” (também é o título
do seu terceiro livro de poesia, de 1984), pois só tem um lugar
concreto enquanto uma exterioridade que podemos observar. Mas, esse “eu”, que se imiscui com o outro interpelado (a quem se destina a pergunta contida
nesses quatro versos?),
torna-se uma sobreposição que poderíamos chamar de “nós”. No entanto, aquele que diz “eu”, essa voz
concreta (de palavras escritas e sons), é uma interferência nessa sobreposição, cria um
terceiro elemento: “Eu sou nós os dois. Ou melhor, nós os dois somos nós os dois, eu sou o terceiro.
Sou eu quem está a falar de nós” (PINA, 2012, p.259). Nas
palavras de Eduardo Prado Coelho:
”aquele que escreve
(ou talvez seja preferível
dizer: aquele que escreve por intermédio daquele que julga escrever) seja um Lugar Terceiro,
um “eu" sobranceiro que se inclina sobre a vacilação interminável entre tu e eu.” (2010, p. 89). Estar a falar de nós não é ser nós. É ser uma imagem fixa, a ilusão
de que o gato está somente vivo ou somente
morto. O acesso
que temos à exterioridade é, paradoxalmente, ilusão ou: "Literatura. Tornam-nos, tu e eu, e
também aquelas terríveis quatro horas da tarde, literatura. (PINA, 2012, p.265).72 Na escrita de Pina, a construção da realidade do ser é feita de palavras: “o que é feito
de nós senão/ as palavras
que nos fazem?” (2012, p.12) ou “Literatura que faço, me
fazes” (2012, p. 23). Na interferência do olhar e da linguagem que busca fixar
o objeto "Já tudo e eu próprio somos
literatura” (PINA, 2012, p. 149),
pois, “sem que palavras uma coisa é real?” (2012,
p. 137).
A linguagem é o nosso
único espaço possível, um entrelugar diante do mundo e suas possibilidades:
“Entretanto dobrar-se-ia o
mundo / (o teu mundo: o teu
destino, a tua idade) / entre ser e possibilidade” (PINA, 2012, p. 273). A “vida real”, esse é o título
do poema citado,
é uma “dobra" do mundo,
duplicação ("o teu mundo”), mas também multiplicação de estados sobrepostos ("entre ser e possibilidade”) onde a nossa linguagem e observação não chegam.
No entanto, e apesar do caráter disfórico
de sua linguagem, a poesia de Pina busca sempre a exterioridade, encontrar um “sítio onde pousar
a cabeça” para poder, através
da linguagem/ilusão, tocar o real. Nesse sentido,
a abstração da interioridade existe
à medida que ganha alguma
forma concreta, pode ser olhada:
"Manuel António
Pina é um dos raros poetas do meu conhecimento que não confere ao que chamamos
interioridade uma qualquer
consistência e faz dela
a essência mesma da nossa identidade. Para ele tudo – mesmo o mais subtil e efêmero – é pura exterioridade” (LOURENÇO, 2012, p.103).
Essa "pura exterioridade” é a impossibilidade de qualquer solipsismo, a constatação de que captamos e somos captados
pelo olhar. Na epígrafe
que abre a segunda seção do primeiro
livro de poemas de Pina, lemos (em inglês): “'well, now
that we have seen each other', said the Unicorn,
'if you’ll believe in me, I’ll believe in
you. Is that a bargain?’”73 (2012, p. 29). Esse trecho é retirado
de um momento, em Através do espelho e o que Alice encontrou por lá, em que Alice encontra-se com um Unicórnio que sempre supôs que as crianças fossem
algum tipo de monstro fabuloso e imaginário. Ora, a mesma coisa pensa Alice sobre os unicórnios. Somente após o encontro do olhar (daquele
que “vê e é visto” [PINA, 2012, p. 113]), isto é, pela interação com o outro, é que a existência concreta surge. Voltando aos princípios da mecânica quântica:
A questão da identidade é mais que filosófica; é um dos eixos da mecânica
quântica: as partículas elementares, os constituintes do átomo, são absolutamente indistinguíveis uma das outras. Cada átomo de carbono seu é idêntico aos meus; cada elétron carece
de individualidade. E mais: no mundo
quântico, cada partícula não é só indistinguível das demais, mas também, de um modo peculiar,
é indistinguível de si mesma.
Um elétron dentro de um átomo
existe simultaneamente em infinitos lugares
perto do núcleo do atômico, e esses infinitos gêmeos se constituem em um único elétron definido ao serem detectados, ao serem observados (ROJO, 2011, p.51).
Qual seria a nossa realidade
sem sermos olhados?
“Fala-me, não pares de
falar. Ouvindo-te tenho a certeza de que sou real, e de que também tu és, fora de mim, real” (PINA,
2012, p. 264).
Assim como o “Fale para que eu te veja”
de Sócrates, a realidade visível, a exterioridade, da poesia de Pina depende
dessa demanda à interação. Sem a interação
o real é “como uma paisagem entrando
pela janela de um quarto vazio” (PINA, 2012, p. 249). Daí a importância do verso “Somos seres olhados” (2009, p. 82), de Ruy Belo, que Pina usa como epígrafe para o
seguinte poema:
O jardim das oliveiras
Somos seres olhados
Ruy
Belo
Se
procuro o teu rosto
no meio do ruído das vozes
quem procura o teu rosto?
Quem fala obscuramente
em qualquer sítio das minhas
palavras
ouvindo-se a si próprio?
Às vezes suspeito
que me segues,
que não são meus os passos
atrás de mim.
O que está fora de ti, falando-te?
Este é o teu caminho,
e as
minhas palavras os teus passos?
Quem me olha desse lado
e
deste lado de mim?
As minhas dúvidas, até elas te pertencem? (2012, p. 136).
O título
do poema, como explica Inês Fonseca (2015, p. 121), alude ao jardim, ou monte das Oliveiras, lugar onde “Jesus
se recolheu para rezar na noite
que precedeu a sua prisão.
Foi lá que o Messias,
unindo-se a Deus pelo poder da
oração, decidiu manter-se fiel e cumprir
a sua missão”. A passagem
revela um momento de dúvida. Jesus se pergunta
qual é a sua missão,
ou se sua vontade, na verdade, é a vontade
de um outro, de Deus: “Pai, se queres, afasta de mim este
cálice! Contudo, não a minha vontade, mas a tua seja feita!”
(BÍBLIA, Lucas, 22, 43).
Outras referências a Cristo aparecem
na poesia de Pina, quase sempre acompanhadas pela dúvida. Em “A poesia vai”: “Uma pergunta numa cabeça/ – Como
uma coroa de espinhos (2012,
p. 38) e no poema “A ferida”,
novamente a indagação: “Real, real, porque me abandonaste?” (2012, p.307).
Em todos esses poemas, Pina coloca a voz poética em comparação a Jesus
nos momentos em que sua fé é indagada. Porém, na poesia secular de Pina, não é
mais a um Deus que o poeta recorre ou com ele deseja se unir, mas um onipresente “real" que nos olha. Quem fala, quem diz eu? A que ponto essa voz pode ser uma
interioridade separada desse
outro exterior? Ou ela é pura exterioridade? "O que está fora de ti, falando-te?”
A voz que fala "em qualquer
sítio das minhas
palavras” é também o grande olho ubíquo ("Quem me olha desse lado e deste lado de mim?”).
É uma visão que não se separa do eu/outro mesmo quando os olhares não coincidem: "Às
vezes suspeito que me segues,/ que não são meus os passos/ atrás de mim”. A ubiquidade desse olho aparece também
no poema “Imorais
e puros”: “E eu sou uns grandes
olhos que em isto tudo há” (2012,
p. 188). É importante notar:
“isto tudo” existe.
O que quer que “isto" signifique: o “eu”, o real, o outro,
a literatura? (voltaremos aos usos desse pronome
típico da linguagem
dubitativa no próximo
capítulo). Se tudo está
contido na exterioridade desse olhar, até que ponto é possível dizer “eu”? Se a "minha vontade" é a “tua vontade”, logo até a suspeita identitária é desse outro? "As minhas dúvidas até elas te pertencem?”
No entanto,
essas perguntas são uma forma de relação com a poesia, são o
caminho de passos-palavras a que alude o poema, um "paradoxal combate no seio da
literatura e mesmo
contra a literatura” (LOURENÇO, 2012, p. 102). São uma
tentativa de atingir pela linguagem
uma coincidência que ela não é capaz de
conseguir, por isso mesmo, como o próprio Pina coloca, a poesia não é essa coincidência, mas sim a busca por ela:
Oh, a questão da identidade! Tenho uma impressão
de inconsciência. É como uma imagem desfocada que está sempre a fugir, permanentemente a desfocar-se. Nós tentamos focá-la
mas não é possível. A minha relação com a poesia é um pouco assim também. É a procura de uma coincidência, de uma identidade. Que rosto é aquele que me olha do lado de lá do espelho? (2016, p. 96).
O autor equaciona a poesia com uma procura identitária jamais alcançada. A identidade é uma imagem
desfocada, próxima demais
ou demasiado distante
para ganhar uma nitidez.
Além disso, nossas
lentes-linguagem a embaçam,
ou melhor, emudecem-na: “as minhas palavras
não me deixando falar” (PINA,
2012, p. 249). Aquele que suspeitosamente fala no poema são palavras,
“insubstanciais seres” (2012, p.232) que vivem no meio do caminho entre estar e ser, mudança e permanência: "Eu,
isto é, palavras falando,/ e falando me perdendo/ entre estando e sendo”
(2012, p. 275).
O “eu” não está em um lugar
específico, está em múltiplos
lugares – a única coincidência possível é a da perda:
Há em todas as coisas uma mais-que-coisa
fitando-nos como se dissesse: “sou eu”, algo que já lá não está ou se perdeu antes da coisa, e essa perda é que é a coisa (PINA,
2012, p.356).
Também todas
as coisas que nos espreitam, que nos fazem
esses ”seres olhados”, possuem
uma identidade, “uma mais-que-coisa”. Porém, ao pronunciar as palavras “sou eu”, não há revelação. A determinação da linguagem é uma imagem fantasmagórica, é aquilo que não está mais lá, ausência, perda de identidade. Por isso a poesia de Pina só pode oscilar entre ser e possibilidade: “não estou dentro de
mim/ e fora de mim,/ e o fora de mim dentro de mim? (PINA, 2012, p. 145).
Nesse
sentido, é interessante pensar na noção
de deslocamento proposta por
Paola Poma (2008). Para a autora, o “eu" da poesia de Pina é um
sujeito que oscila entre identidade e alteridades e, radicalizada na poesia, promove, simultaneamente, a neutralização dos sujeitos presentes
e a sua devolução à cena através da mesma
linguagem, num tipo de ilusionismo, ou como
o poeta diria uma 'poesia
cheia de truques’
(POMA, 2008, p.229).
Como numa espécie
de salto quântico,
o sujeito flutua entre identidade e alteridades sem estar em nenhum lugar preciso. Deslocamento, interação, simultaneidade, sobreposição, noções que atravessam uma poesia que cria a ilusão
de momentaneidade, de existir em um tempo que vive impossivelmente apenas
no presente. Mas que, por outro lado, é altamente consciente de seus “truques”,
de que a linguagem
nada mais faz do que perder (“E o que fala falta-me”
[PINA, 2012, p. 140]), ou melhor,
ir perdendo, pois não há qualquer estado
fixo que possa ser encontrado. Por isso, abundam formas verbais no gerúndio,
só nos poemas citados nessa seção encontramos diversos
exemplos: "as minhas palavras
não me deixando falar”, "O que está fora de
ti, falando-te?”, ”em nenhum sítio, voltando/ absolutamente pra casa?” ou "Entre estando e sendo”.
Isso como uma escolha deliberada de marcar a ideia de continuidade, prolongamento no tempo. A poesia de Pina vive da relação, ela vai sendo. Quem diz “eu" também diz outro, e tudo aquilo
que é exterior, ou seja, também diz mundo.
Estamos presos no real, somos parte dele. Não há regresso
ao real, porque nunca saímos dele: “estamos
condenados ao real’ – “como é que se sai do real?” (PINA, 2016, p. 200). Essa é também uma possível conclusão
que se pode tirar das ideias
da mecânica quântica:
“somos parte integrante
da natureza, somos natureza, em uma de suas inumeráveis e variadíssimas expressões. É isso que nosso
conhecimento crescente das coisas do mundo nos ensina” (ROVELLI,
2015, p.84). Por isso, a busca de Pina por uma pura exterioridade é também, para voltarmos a ideia
de
Delgado (2017), uma forma de lidar com um
realismo integral – uma reintegração do ser com todas as suas possibilidades:
O aquário de Bohm
Em algum sítio onde és um só
como dois gémeos divididos,
entre o nó da vida e o nó
da morte, um sonho dos sentidos;
em algum passado
invivido,
em algum princípio, em algum modo
da memória ou do olvido,
em alguma estranheza, em algum sono;
ou em alguma espécie de saudade
física e inicial
de seres real,
pura exterioridade (PINA,
2012, p.247).
O aquário de Bohm é mais uma narrativa-experimento quântico
que Pina traz à tona para descrever a relação da sua poesia com o mundo. Nesse experimento, o físico
David Bohm
apresenta a analogia de um peixe dentro de um aquário
projetado em duas telas de TV, via duas câmeras separadas e de dois diferentes ângulos. Como resultado dessa configuração, cada movimento do peixe é produzido
nas telas por duas imagens
aparentemente separadas. No entanto, essas duas imagens têm uma suspeita relação
instantânea uma com a outra
– muito parecida com a relação
não local entre partículas emaranhadas em um nível quântico. Nessa analogia, a relação crucial
é entre “realidade" tridimensional do peixe e a bidimensionalidade das imagens do peixe na TV, sendo essas últimas vistas como projeções
desdobradas
de
uma
mais
fundamental realidade tridimensional. De maneira semelhante, afirma Bohm, nosso mundo tridimensional – incluindo partículas
emaranhadas em um laboratório – se manifestam como uma projeção
de uma realidade multidimensional ainda mais fundamental (NICHOL,
2005, p. 79).
O poema, assim
como a analogia de Bohm,
propõe uma reencontro das partes com o todo, a existência de "algum sítio onde és um só”. Como o peixe
projetado em duas imagens, exterior e interior, mente e matéria,
só são aparentemente duas entidades, “como
dois gémeos divididos”. Dentro do aquário,
em uma realidade mais profunda
a qual não temos acesso,
observador, peixe e mesmo o aquário são um contínuo de um todo que é o mundo material: “se estamos emaranhados com o que existe lá fora, esse “lá fora” não existe mais; existe apenas
um todo indiferenciado” (GLEISER, 2014, p. 231). Pois, nesse caso, qual seria “o lado
de fora de o lado de fora” (PINA, 2012, p. 142)?
Nossos instrumentos limitados
separam e criam inúmeras divisões,
sem isso poderia-se realizar
o “sonho dos sentidos” no qual, alguém como que liberto dos grilhões que o prendiam
na caverna, pode ver uma realidade mais profunda. Contudo,
onde está esse lugar,
em que “passado" e “princípio", memória e esquecimento podem tornar-se “pura
exterioridade”? Onde, citando
o poema “Volto de novo ao princípio”, “eu sou o lugar onde tudo isto se passa fora de mim” (PINA, 2012, p. 78).
Essa hesitação, manifestada pelo repetido
uso dos pronomes indefinidos
“algum e alguma”, converge para uma "espécie de saudade física
e inicial” expressada na última quadra. Lugar que remete mais uma vez à infância,
lugar “sem palavras e sem memória", encontro possível, porque inconsciente, entre sujeito e objeto:
“o quarto eu não o via/ porque era ele os meus olhos” (PINA, 2012, p. 160). Depois disso, a pura exterioridade, a coincidência entre o “eu” e o outro, “eu" e o mundo, torna-se
apenas uma espécie
de projeção, um holograma de uma realidade mais fundamental que só existiria se não fosse atravessada pela consciência das palavras. Sobra ao poeta o desejo
de ouvir a “alma" do universo, uma essência
perdida que se tornou música:
Teoria das cordas
Não era isso que eu queria dizer,
queria dizer que na alma
(tu é que falaste da alma),
no fundo da alma, e no fundo
da ideia de alma, há talvez
alguma vibrante música
física
que só a Matemática ouve,
a mesma música simétrica que dançam
o quarto, o silêncio,
a memória, a minha voz acordada,
a tua mão que deixou
tombar o livro
sobre a cama, o teu sonho, a coisa sonhada;
e que o sentido que tudo isto possa ter
é ser assim e não diferentemente,
um vazio no vazio, vagamente
ciente
de si, não haver resposta
nem segredo (PINA, 2012, p. 289).
A teoria das cordas é uma teoria unificadora, uma tentativa de ser uma
explicação de tudo em uma expressão “que só a Matemática ouve”,
uma ideia que contem o cerne, a alma, de todas as coisas. Ela talvez nunca possa ser comprovada, mas existe como busca utópica
em dar sentido a tudo que existe.
Se as partículas elementares que nos compõe
(e tudo a nossa volta)
vibram como cordas, nenhum
vazio é realmente vazio. Tudo
seria som (até mesmo o
silêncio). Em algum incerto
lugar, ouviríamos a música
do mundo. Ao poeta, cabe tocar o som articulado das palavras: “Pouca
coisa são as palavras/ e é o que me resta” (2012, p.223).
_________
71 Tradução livre do verso final do poema “Among school children”, de W. B. Yeats: “How can we
know the dancer from the dance?” (2008,
p. 185).
72 No texto “Para que serve a Literatura infantil?”, Pina (1999)
atribui a Blanchot
a ideia (que reverbera em seus próprios poemas)
de literatura como ilusão.
73 Na tradução de Maria Luiza X. de A. Borges:
"'Bem, agora que nos vimos um ao outro’, disse o
Unicórnio, ‘se acreditar em mim, vou acreditar
em você. Feito?’”(CARROLL, 2009, p. 264).
“Entre ser e possibilidade: o "eu" fora de si” in Entre nomes supostos: ceticismo linguístico na poesia de
Fernando Pessoa e Manuel António Pina, Thiago Queiroz. Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - Departamento
de Letras Clássicas e Vernáculas, 2021