Muito obrigada, Senhor Presidente da República, por me ter convidado a juntar-me às Celebrações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, neste ano de 2025. Não estava no meu horizonte, mas agradeço-lhe.
Os países escolhem datas de referência para celebrarem a sua História, contemplando memórias de batalhas, acções de independência, encontros civilizacionais, momentos importantes em torno dos quais concitam a unidade dos cidadãos e promovem o orgulho patriótico. Mas em Portugal é a data da morte de um poeta que protagoniza o nosso momento cívico de unidade mais relevante.
Muito se tem discorrido sobre o significado desta nossa singularidade. E muitas vezes é difícil explicar que não se trata de um sinal de melancolia, mas sim do seu oposto – a assunção de que um poeta do século XVI nos legou uma obra tão vigorosa que acabou por ser adoptada no seu conjunto como exemplo da vitalidade de um povo. E que a própria biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de um percurso português, mas se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação prometeica sobre a Terra. A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando se encontrava em paragens remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como exemplo da proximidade que os portugueses, que se encontram longe, mantêm com a sua cultura de origem. O país retribui-lhes reconhecendo desde há muito que as Comunidades Portuguesas são corpo essencial do nosso ser identitário.
Mas as Celebrações deste ano de 2025 têm um cunho muito particular. Em primeiro lugar porque voltam a ter lugar na cidade de Lagos. No século passado foi cidade anfitriã em 1996. Passados vinte e nove anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre, próspera. O que mudou, e o que justifica que de novo tenha sido escolhida para ser palco das celebrações, foi a nova consciência de que Lagos passou a representar um lugar obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao longo dos séculos.
É sabido que Lagos, lugar de saída para África, e lugar do comércio prático, tem como símbolo complementar o Promontório de Sagres. A escassos quarenta quilómetros de distância, Sagres e Lagos representam historicamente uma dualidade contrastiva cujo papel se encontra em avaliação. A comunicação digital que se afirmou a partir dos anos noventa, permite agora uma divulgação ampla dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores estão a realizar neste espaço geográfico antes designado por Terras do Infante. Era altura de atribuir a Lagos, de novo, o estatuto de cidade merecedora de acolher estas celebrações, e de fazer reflectir a sua importância como polo aglutinador de interesse cultural.
Mas há outro motivo para que este ano a Celebração deste Dia seja particular. Desde há dois anos que estamos a evocar o nascimento de Camões, ocorrido há quinhentos anos, presume-se que entre 1524 e 1525. Calcula-se que assim tenha sido, mas vale a pena reflectir sobre o facto, pois tal como não sabemos como decorreu a sua infância nem a sua formação, também desconhecemos o local e o dia em que o poeta nasceu. Para sermos justos, sobre a sua vida inicial, apenas podemos dizer o que um célebre maestro disse sobre Beethoven – Um dia Camões nasceu e nunca mais morreu.
2.
Nunca mais morreu.
Provam-no a forma como passados cinco séculos tem sido revisitado ao longo destes dois últimos anos. As escolas, a academia, o mundo da edição, os vários campos das artes e das ciências humanísticas em Portugal têm dado rosto a toda uma espécie de comemoração espontânea e informal em torno do nosso poeta maior. Novos autores têm surgido actualizando a exegese sobre os seus poemas e o conhecimento acumulado em torno da vida de Camões. O jovem ensaísta Carlos Maria Bobone pôs recentemente em relevo o papel decisivo que Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um pensamento novo, que resultaria definitivamente na Língua Portuguesa Moderna que hoje usamos. Demonstrou como a Língua Portuguesa, manobrada no seu esplendor, resultou como uma dádiva que devemos ao “grande cantor do Oceano” como lhe chamou Baltazar Estaço.
Por sua vez, a biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita recente profusamente documentada que faz à vida de Camões, no final, não deixa de se comover com os testemunhos sobre os últimos dias do poeta, demonstrando que as histórias que correm sobre certos passos da sua vida afinal não são lendas, são verdades. O receio de sermos românticos não nos deveria afastar da realidade testemunhada. E assim, a mim não me pareceria errado que os adolescentes portugueses conhecessem o comentário que Frei José Índico redigiu na margem de um exemplar de Os Lusíadas presumivelmente oferecido pelo próprio autor na hora de partir. Escreveu o frade – “Yo lo vi morir en un hospital en Lisboa, sin tener una sabana con que cubrirse (…) después de haber navegado 5.500 leguas per mar.”
Assim foi, sem um lençol. Terá sido um amigo quem lhe enviaria a sabana, já depois de morto. Não me parece que daí se devam retirar conceitos patrióticos ou antipatrióticos. Conceitos sobre a vida humana e o seu mistério, isso talvez. Entretanto, por contraste, sobre a obra que deixou, milhares de páginas de novo têm sido escritas, confirmando a dimensão invulgar do poeta que foi. Hélder Macedo, um dos seus leitores mais subtis, disse recentemente numa entrevista que se Camões tivesse continuado a viver, ninguém mais em Portugal teria sido capaz de escrever um verso. Essa hipérbole é linda.
Assim como é reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças epigramas, redondilhas e vilancetes de Camões como se fossem filmes modernos feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados do seu poeta maior.
3.
Mas se o patrono destas Celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e teológico como é em Sobolos Rios que Vão, e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar, ao regressarmos a todos esses versos escritos há quase quinhentos anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender os tempos duros que atravessamos, tão em conformidade com os tempos em que ele próprio viveu.
Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo, e sobre a consciência dessa mudança, no conjunto das mil cento e duas oitavas que compõem Os Lusíadas, vinte e duas delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então. Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo enquanto género. O paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado na criação de um Império e, em sentido oposto conter a condenação das práticas que passados cinquenta anos impediam a manutenção desse mesmo império. E nesse campo, pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica que o Dia de Portugal seja o Dia de Camões, expressa corajosas verdades, dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.
É bom lembrar que entre os séculos XVI e XVII três dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante dezasseis anos, e no entanto os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram testemunhas. Foram eles Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos, e entre eles os mecanismos universais do poder, corpus que continua válido e intacto até aos nossos dias. Sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, e o poder temeroso e o poder laxista.
No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da História para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então? Queixava-se da degradação moral. Mencionava o vil interesse e sede immiga/ do dinheiro, que a tudo nos obriga, e evocava entre os vários aspectos da degradação o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado o mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer fortuna. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento. Queixava-se da falta de seriedade intelectual que resultava, depois, na prática, na degradação dos actos do dia a dia. Escreve o poeta no final do Canto VIII – Este deprava às vezes as ciências, /Os juízos cegando e as consciências (…) Este interpreta mais do que sutilmente/Os textos; este faz e desfaz leis; / Este causa os perjúrios entre a gente/E mil vezes tiranos torna os Reis…
4.
Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios em que viveram. Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra dizia-se que lutavam entre si pelo domínio do Globo Terrestre. Ou, mais concretamente, dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a Terra ao pescoço como se fosse um berloque. Os três autores perceberam bem que em dado momento é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência. Escreveu Shakespeare no Acto IV do Rei Lear – É uma infelicidade da época que os loucos guiem os cegos.
Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de la Mancha que até hoje perdura entre nós como o nosso irmão ensandecido. Por seu lado, Camões, no corpo de Os Lusíadas não falou da loucura, mas a vida haveria de lhe demonstrar que as páginas escritas por si mesmo haviam sido proféticas em resultado dela, a insanidade. O desastre de Alcácer Quibir, ocorrido em 1578, estava assinalado numa das últimas estrofes do canto X. Era a História, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela Literatura. No entanto, o fim de ciclo que neste caso aqui interessa não é mais uma transição localizada que diga apenas respeito a três reinos da Europa. Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global.
Porque nós, agora, somos outros, deslocamo-nos à velocidade dos meteoros, e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam pelo Espaço. Mas alguma coisa desse outro fim de ciclo que se seguiu ao tempo da Renascença malograda, relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a Terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque. E os cidadãos? São público que assiste a espectáculos em écrans de bolso. Por alguma razão os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas. É contra isso, e por isso, que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono.
5.
Por isso mesmo, também, vale a pena regressar a Lagos.
Sobre estes areais aconteceram momentos decisivos para o mundo. No início da Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. O Promontório e a silhueta do Infante austero que sonhou com achamento de ilhas e outros descobrimentos, como parte de uma guerra santa antiga, e tudo realizou a poder de persistência férrea e sagacidade empresarial, transformou-se numa figura de referência como criador de futuros. À sua figura anda associado um sonho que se realizou e depois se entornou pela Terra inteira, e a lenda coloca-o a meditar em Sagres. Numa referência um tanto imprecisa mas que permite a sua evocação, Sophia escreveu – Ali vimos a veemência do visível/ O aparecer total exposto inteiro/E aquilo que nem sequer ousáramos sonhar/Era o verdadeiro.
Esta ideia de que na mente do Infante se processou uma epifania anda-lhe associada enquanto mentor de uma equipa, mais ou menos informal, que teve a capacidade de motivar e dirigir. Sagres passou assim para a História e para a mitologia como o lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o Mundo. Mas existe uma outra perspectiva, como é sabido, e hoje em dia, o discurso público que prevalece é sem dúvida sobre o pecado dos Descobrimentos não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora.
É verdade que a deslocação colectiva que permitiu estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes, e o encontro entre povos, obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na actualidade. É preciso sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um processo de dominação cruel tão antigo quanto a Humanidade, o que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade. E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo de escravização longo e doloroso. Lagos, precisamente, oferece às populações actuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico. Fá-lo com o sentido justo da reposição da verdade, e do remorso, pelo facto de aqui se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, com polos de abastecimento nas Costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX.
6.
Lagos expõe a memória desse remorso. Mostra como num dia de Agosto de calor tórrido de 1444, aqui desembarcaram 235 indivíduos raptados nas costas da Mauritânia, e como foram repartidos e por quem. Alguém que muito prezamos encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o seu quinhão de 46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o Infante Dom Henrique. Lagos não se furta a expor essa verdade histórica. Lagos também mostra o local onde depois, em levas sucessivas, iriam ser mercadejados os escravos. E mais recentemente relata-se como eram atirados ao lixo, quando morriam, sem um pano a envolver os corpos. Até agora foram retirados desse monturo os restos mortais de 158 indivíduos de etnia banta. Lagos mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez por isso estejamos aqui no Dia de hoje.
Aliás, a Unesco criou a Rota do Escravo, e inscreveu Lagos na Rota da Escravatura para que saibamos como os seres humanos procedem uns com os outros, mesmo quando se fundamentam em religiões fundadas sobre os princípios do Amor e sob a Lei dos Direitos Humanos. Lagos mostra esse filme e faz-se parente de quem escreveu na porta de um lugar de extermínio moderno o pedido solene – “Homens não se matem uns aos outros”.
7.
É verdade que só conhecemos o que sucedeu naquele dia 8 de Agosto de 1444 porque o cronista do Infante Dom Henrique o narrou. Eanes Gomes de Zurara não conseguiu evitar um sentimento de compaixão e comentou, de forma comovida, como a chegada e a partilhas dos escravos era cruel. Felizmente que dispomos dessa página da Crónica dos Feitos da Guiné para termos a certeza de que havia quem não achasse justo semelhante degradação e o dissesse. Aliás, sabemos que sempre houve quem repudiasse por completo a prática e o teorizasse. Numa das paredes de um dos museus de Lagos está escrito o testemunho de um autor quinhentista que denuncia a injustiça – “… eles não nos ofendem, não nos devem, nem temos justa causa para lhes fazer guerra, e sem justa guerra, não os podemos cativar nem comprar”.
O que significa que Lagos, a cidade dos sonhos do Infante, de que Sagres é a metáfora, passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros. Esta tornou-se, pois, uma cidade contra a indiferença. É uma luta nossa, contemporânea. Em Lagos, hoje em dia, está presente, de outro modo, a mensagem do cartoon de Simon Kneebone datado de 2014 que tem corrido mundo – A cena é nossa contemporânea, passa-se no mar. Num navio enorme, aparelhado com armas defensivas, no alto da torre está um tripulante que avista ao longe uma barca frágil, rasa, carregada de migrantes. O tripulante da grande embarcação pergunta – De onde vêm vocês? Da lancha apinhada alguém responde – Vimos da Terra. Sugiro que os jovens portugueses, descendentes de cavadores braçais, marujos, marinheiros, netos de emigrantes que partiram descalços à procura de trabalho, imprimam este cartoon nas camisas quando vão ao mar.
8.
Consta que em pleno século XVII, dez por cento da população portuguesa teria origem africana. Essa população não nos tinha invadido, os portugueses os tinham trazido arrastados. E nos miscigenámos. O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro, a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e de migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizava, filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.
A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos, nos dias de hoje, um pouco por toda a parte, agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte. A pergunta é esta – Quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos, e os pilares de relação de inteligência homem/máquina entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um ser humano?
9.
Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.
Regresso à sua obra para procurar entender que conceito tinha o poeta sobre o que era um ser humano. Sobre si mesmo, toda a sua obra o revela como vítima da perseguição de todas as potestades conjugados. A sua obra lírica é uma resposta a esse abandono essencial. Em conformidade com essa mesma ideia, ao terminar o Canto I de Os Lusíadas”, Camões define o ser humano como um ente perseguido pelos elementos – “Onde pode acolher-se um fraco humano,/ onde terá segura a curta vida,/Que não se arme e se indigne o Céu sereno/Contra um bicho da Terra tão pequeno?”
Nestes versos se reconhece o conceito renascentista, o da grandeza da solidão do ser humano e a sua luta estoica centrada na confiança em si mesmo. Mas, na prática, essa atitude representava uma orfandade orgulhosa, que facilmente a fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da vida, o corpo de Camões só teve um lençol, e oferecido, a separá-lo da terra. A sorte do seu corpo não difere muito daquela que mereceram os corpos dos escravos de Lagos. Mas, entretanto, no século XIX, o direito à protecção beneficiada pelo estado começou a emergir, criaram-se documentos essenciais tendo em vista o respeito pelos cidadãos. Depois da duas Guerras Mundiais do século XX, foi redigida e aprovada a Carta dos Direitos Humanos, e durante algumas décadas foi tentado implantá-los como código de referência um pouco por todo o mundo. Só que ultimamente regride-se a cada dia que passa.
O conceito da representatividade respeitável da figura de chefe de estado oriundo do povo grego, princípio que sustentou a trama purificadora das tragédias clássicas, a que se juntou, depois, o princípio da exemplaridade colhida dos Evangelhos, essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos, está a ser subvertida. A cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende. Um chefe de estado de uma grande potência durante um comício pôde dizer – Adoro-vos! Adoro os pouco instruídos! E os pouco instruídos aplaudiram. Pergunto, pois, qual é o conceito hoje em dia do ser humano? Como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais?
Hoje, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, não será legítimo perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?
Nós, portugueses, não somos ricos, somos pobres e injustos, mas ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura, e terminámos com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos, e com eles estabelecemos novas alianças, e criámos uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa, e fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma União de países livres e prósperos que desejam a paz. Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força.
Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino, porque, se alguma coisa tenho em comum com ele, que foi génio, e eu não sou, é a certeza de que partilho da sua ideia de que um ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa.
Muito obrigada.
Lagos, 10 de Junho, 2025.
Lídia Jorge
A agonia dos puros
Os discursos do 10 de Junho foram sobre o passado e isso é, como disse Francisco Mendes da Silva no debate semanal que tenho com ele, sinal de bloqueio. Só que os discursos políticos sobre o passado nunca são bem sobre o passado. Por isso a história, eternamente reescrita, sempre foi disputada. O discurso de Lídia Jorge foi sobre o que queremos ser. É isso a identidade de um povo: uma autorrepresentação construída com base em factos, mitos, lendas e heróis que projetam os nossos desejos e frustrações como comunidade. A nossa identidade, moldada por décadas de propaganda lusotropicalista, baseava-se numa ideia de miscigenação bondosa, determinada por um colonialismo excecional. Apesar de o tráfico negreiro transatlântico ser um dos nossos maiores legados à humanidade, conseguimos fazer da preservação deste mito, que desafia a nossa história e a forma como os outros povos olham para ela, uma espécie de compromisso entre o passado colonial autoritário e o presente democrático. Serviu-nos quando estávamos ocupados a construir a democracia e um país mais moderno.
Com a chegada a Portugal dos debates do mundo, ajudada por uma nova geração de intelectuais afrodescendentes, fomos obrigados a sair do confortável casulo das nossas fantasias. E com a polarização que estes novos debates causaram, nascida de décadas de silêncio e de traumas adiados (e, reconheço, de alguma importação intelectual das causas identitárias), o nacionalismo português tornou-se menos idiossincrático. Ou talvez, sendo mais justo, se tenha despido das vestes lusotropicalistas de que a pequena nação imperial precisava, mostrando a sua nudez étnica e racista. É natural que assim seja. A função deste nacionalismo já não é justificar um império anacrónico e preso por arames. Não é justificar a nossa expansão imperial, mas sim uma vontade de fechamento atávico às migrações. São momentos diferentes na nossa história e na história da Europa. Ascensão e queda. Já não estamos a fazer um ajuste de contas com o passado para seguirmos em frente. Já nem sequer é um debate nosso, em que a particular fraqueza da metrópole obrigava a alguma ginástica simbólica. O papel deste nacionalismo nativista já não é o de justificar uma força centrífuga imperial, mas o de impedir uma força centrípeta migratória. É o de saber como vamos lidar com o aumento intenso de fluxos humanos, que as alterações climáticas, a proximidade imaterial de tudo e o enorme desequilíbrio demográfico e económico entre Sul e Norte globais vão continuar a acentuar. Só abrandará se a Europa e os EUA perderem relevância e atratividade. O recuo civilizacional a que assistimos no Ocidente pode tratar disso.
A extrema-direita tem um plano e o centro político segue-o aos tropeções: fechar portas e janelas. Para quem julgava que o debate alguma vez tivesse sido sobre condições para integrar, André Ventura deu a resposta, recorrendo às mentiras habituais e declarando guerra ao mais poderoso instrumento de integração dos imigrantes: o reagrupamento familiar. É natural que o faça. A integração reduz o conflito de que os autoritários dependem para reforçarem o seu poder. Basta acompanhar o que se passa na Califórnia para perceber como a perseguição aos imigrantes serve para alimentar o caos, justificar o clima de exceção, aplacar todos os contrapoderes e reforçar os instrumentos repressivos que eternizam os autoritários no poder. Fechar fronteiras não serve apenas para deixar os imigrantes de fora. Serve para prender os nacionais cá dentro. A ilusão dos democratas irrefletidos é pensarem que esta caminhada vai parar quando eles decidirem.
Claro que a alternativa não é suprimir as fronteiras. Como não deveria ser para os mercados financeiros ou para o comércio, mas isso é mais difícil de explicar aos liberais. A resposta começa pela síntese que Lídia Jorge tentou fazer na projeção da nossa identidade, rompendo, sem esconder nada, com a clivagem entre “nós” e “eles”: “Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou.” Somos, enfim, fruto das nossas glórias e crimes que nos fazem, sem qualquer pureza, humanos. Chegar a esta conclusão é condição para uma resposta moralmente aceitável ao inevitável aumento do fluxo migratório. O realismo não se resume à evidência de que quase tudo se regula. É saber que se nos fecharmos ao mundo, em pânico, seremos nós os prisioneiros. Olhem para a caminhada autoritária que se iniciou na Califórnia.
"A agonia dos puros", Daniel Oliveira. Expresso, 12/06/2025
CANÇÃO DO MESTIÇO
Mestiço!
Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.
Mestiço!
E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição
como 1 e 1 são 2.
Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso: — mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.
Ah! Mas eu não me danei…
e muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor!...
Mestiço !
Quando amo a branca sou
branco
Quando amo a negra sou
negro. Pois é…
Francisco
José Tenreiro, Ilha de Nome Santo. Tipografia da Atlântida de Coimbra, 1942.
Série Novo Cancioneiro
Suspiros inflamados, que cantais
a tristeza com que eu vivi tão ledo!
Eu mouro e não vos levo, porque hei medo
que, ao passar do Lete, vos percais.
Escritos para sempre já ficais,
onde vos mostrarão todos co dedo,
como exemplo de males; que eu concedo
que para aviso de outros estejais.
Em quem, pois, virdes falsas esperanças
de Amor e da Fortuna, cujos danos
alguns terão por bem-aventuranças,
dizei-lhe que os servistes muitos anos;
e que em Fortuna tudo são mudanças,
e que em Amor não há senão enganos.
Luís
de Camões, Lírica completa - II [Sonetos], org., pref. e notas de Maria
de Lurdes Saraiva, 2.ª ed., revista, Lisboa: INCN, 1994, p. 105
Azulejo, Marinha Grande, Portugal
O SONETO COMO PREÂMBULO
CONFIDENCIAL NA POESIA CAMONIANA
[…]
Na última composição
qualificada como de carácter prologal, “Sospiros inflamados, que cantais”, é
exequível apreciar com clareza o propósito de se apresentarem aos leitores as
criações próprias como experto aviso acautelado. Trata-se de uma nova palinódia
poemática com alguns traços pertencentes ao subgénero soneto-prologo em que o amante, como
manifesto responsável da escrita dos textos na qualidade de autor implicado, se arrepende dos seus
antigos erros passionais e solicita que o resto das peças sejam compreendidas
de uma perspectiva exemplar e instrutiva102. Numa altura em que a
morte já não está longe como remédio da doença amorosa, neste caso o emissor lírico
dirige-se aos seus versos com a apóstrofe sospiros inflamados, dizendo-lhes que o seu
destino há-de ser ficar neste mundo como ilustração perante outros dos males
que a vivência o amor origina. Desta maneira, lendo uns escritos em que se
patenteiam os prejuízos que causa um sentimento falso, eles conhecerão as
manobras traiçoeiras do Amor e da Fortuna sofridas por uma experiência alheia103:
“Sospiros inflamados, que cantais
a tristeza com que vivi tão ledo!
Eu mo[u]ro e não vos levo, porque hei medo
que, ao passar d[o] Lete, vos percais.
Escritos p[e]ra sempre já ficais,
onde vos mostrarão todos com o
dedo,
como exemplo de males; que eu concedo
que, pera aviso(s) de outros, estejais.
E em quem virdes falsas [e]speranças
do Amor e da Fortuna, cujos danos
alguns terão por bem-aventuranças,
deze[i]-lhe que os servistes muitos
anos,
e que em Fortuna tudo são mudanças,
e que em Amor não há senão
enganos.”104
A primeira quadra abre-se
já com uma apóstrofe enfática referida aos próprios versos, «Sospiros
inflamados, que cantais / a tristeza com que vivi tao ledo!», em que através de uma
expressão paradoxal de natureza conceituosa é revelado o tempo pretérito, quando
o emissor lírico vivia feliz no meio das mágoas. A ponto de morrer, indica-lhes
que não o irão acompanhar na viagem que está prestes a fazer, porque tem medo
de que desapareçam no transe de passarem o rio Lete105. A oportuna
alusão mitológica lembra, efectivamente, o perigo ameaçador das águas de tal
rio para a memória, capaz de fazer perder todas as lembranças. Porém a intenção
do emissor lírico é precisamente que não se esqueça o passado, de tal jeito que
o seu testemunho poetizado possa ficar para sempre como mostra desesperada
diante dos leitores106. É na segunda quadra que se exprime essa
vontade de dar às criações próprias a oportunidade de não partir deste mundo,
pois assim terão fama servindo de magnífica lição da desilusão e da dor
amorosa.
Nos dois tercetos,
interligados sem nenhuma pausa, surge o convite do amante aos suspiros acesos
que nascem dos seus males, isto é, aos versos que brotam da sua pena, a fim de
ensinarem aos que moram ainda no engano, cuidando ingenuamente que as desgraças
são boas venturas, que o Amor e a Fortuna só consentem esperanças incertas. Em
suma, cumpre que declarem com firmeza, a partir do exemplo que procede do submisso
trato individual do emissor lírico com o Amor e a Fortuna durante muito tempo,
as falsidades e as mudanças que estes fornecem107. […]
Xosé Manuel
Dasilva, “O soneto como preâmbulo confidencial na poesia camoniana”, Actas da
VI reunião internacional de camonistas. Imprensa da Universidade de Coimbra,
2012, pp.173-216. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316.2/11944,
DOI:10.14195/978-989-26-0569-2_15
___________________
Notas:
102 Não obstante isso, Wilhelm Storck julgou
que, em vez de prólogo, o soneto poderia ser melhor contemplado como um epílogo
poético, composto de caso pensado para fechar a colecção de peças amorosas criadas
por Camões. Cfr. Storck, ed., Camões, Sammtliche..., t. II, p.
383. Em certa forma, é possível ligar essa consideração do erudito alemão com o
seguinte juízo de M.ª Vitalina Leal de Matos em volta do texto: «Soneto
“testamentario”, por assim dizer, ja que, perante a situacao de morte iminente,
se dirige a obra em conjunto, impondo-lhe um sentido ultimo, e, para alem deste
sentido, a encarrega de uma mensagem» (Leal de Matos, O
canto na poesia..., p. 501).
103 Nas anotações que Faria e Sousa dedica a
este poema, pode-se ler um surpreendente trecho em que o editor seiscentista e
escritor desvenda a sã inveja com que examina em muitas ocasiões o alcance estético
da obra camoniana. Assim, em clara lisonja à categoria literária do Poeta,
Faria e Sousa confessa, a propósito de “Sospiros inflamados, que cantais”, que
se trata de um texto que o obriga a aceitar as suas próprias carências
artísticas como criador literário: «Yo siempre estoy confessando que si a
caso se alguna cosa, lo devo a este Monstro de ingenio, de estudio, y de
juizio; pero a toda verdad el me lo descuenta bien, porque por otra parte me
esta siempre martirizando; porque si el no ubiera nacido, o, ya que naciesse,
no obrara tanto, yo no estubiera siempre rabiando de embidia; y este Soneto me
la haze de modo que me como las manos. Pero si el divino Apolo assi lo quiso,
no ay sino tener paciencia: mas no se yo que la pudiesse tener sino con no
aspirar a ser Poeta» (Faria e Sousa, em Camões, Rimas..., pp.
147-148).
104 Azevedo Filho, Lirica
de Camoes. 2.Sonetos, t. II, p. 913.
105 «Tal coza como esta nadie penso
dezirla jamas. Yo, suspiros mios (dize) me estoy muriendo; y no quiero llevaros
conmigo al otro mundo, porque tengo miedo de que os perdays al passar el rio
del Olvido, en cuyo passaje perecen todas las memorias; y quiero que las aya
siempre de vosotros; por tanto quedaos aca, para que siempre, como immortales
seays oidos. Quiere dezir que si bien el ha de morirse, no se moriran jamas sus
Poemas, y singularmente estos de sus amorosas tristezas» (Faria e
Sousa, em Camões, Rimas..., p. 148).
106 O desejo de alcançar fama póstuma através
da poesia, um motivo temático que, embora esteja também sugerido na imagem
mitológica do esquecimento que provoca o rio Lete, aparece presente nesta composição
principalmente nos vv. 5-6, constitui um tópico de proveniência horaciana com
ampla influência na literatura dos séculos XVI e XVII. O modelo primigénio bem
pode ser a Ode IV-3 do autor latino, em que agradece muito satisfeito à Musa o
favor de lhe ter outorgado a fama como poeta (Manuel Fernández-Galiano; Vicente
Cristóbal, eds., Horacio, Odas y Epodos, Madrid,
Cátedra, 1990, p. 328):
“Quem tu,
Melpomene, semel
nascentem placido lumine videris,
illum non labor Isthmius
clarabit pugilem, non equus impiger
curru ducet Achaico
victorem, neque res bellica Deliis
ornatum foliis ducem,
quod regum tumidas contuderit minas,
ostendet Capitolio:
sed quae Tibur aquae fertile praefluunt
et spissae nemorum comae
fingent Aeolio carmine nobilem.
Romae principis urbium
dignatur suboles inter amabilis
vatum ponere me choros,
et iam dente minus mordeor invido.
O, testudinis aureae
dulcem quae strepitum, Pieri, temperas,
o mutis quoque piscibus
donatura cycni, si libeat, sonum,
totum muneris hoc tui est,
quod monstror digito praetereuntium
Romanae fidicem lyrae;
quod spiro et placeo, si placeo, tuum est.”
107 Como um exemplo apropriado das tentativas
que com diversos critérios pretenderam fixar a cronologia dos poemas
camonianos, é conveniente registar que “Sospiros inflamados, que cantais” foi
considerado por Maria de Lurdes Saraiva, do ponto de vista temático, um soneto
de composição tardia em função do tom pessimista e dramático que revela. Vid.
Saraiva,
ed., Camões, Lirica..., vol. II,
pp. 87-88. Contrariamente, Azevedo Filho julga que a data do texto, de acordo
com fundamentos métricos, teria de ser em princípio menos tardia, porquanto
nele são ainda perceptíveis encontros vocálicos da natureza arcaizante: «Tal hipótese
[Maria de Lurdes Saraiva] e provavel, mas encontra uma dificuldade metrica na
ocorrencia de encontros vocálicos arcaizantes, ao contrario do que se ve nos
sonetos do ciclo de Dinamene, sonetos de plena maturidade poetica, onde o
regime dos encontros vocalicos, normalmente, obedece ao uso moderno. Por isso,
se o soneto pode ser um dos ultimos, tambem pode ser um dos primeiros, pois e
sabido que os poetas jovens tambem cantam desenganos amorosos e pensam na
morte, prematuramente, deixando a sua obra e a sua experiencia para meditacao
postuma» (Azevedo
Filho, Lirica
de Camoes. 2.Sonetos, t. II, p. 930).
Luís de Camões, Rimas,
edição de Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994, p. 19.
NOTAS
apartar (mote) – afastar.
abrolhos (mote) – planta com
frutos espinhosos.
paceis (verso 2) – pastais.
Amor (verso 19) – deus ou
personificação do amor na mitologia clássica.
giolhos (verso 20) – joelhos.
Questionário:
1.
Estabeleça uma relação entre o mote e os versos 5 a 9, destacando dois aspetos
pertinentes.
2.
Refira dois dos efeitos expressivos da apóstrofe presente no verso 2.
3.
Releia os versos 10 e 11: «se isto faz nos montes, / que fará nas vidas?».
Explicite
a importância destes versos no desenvolvimento temático do poema.
4.
Explique de que modo o poder de Helena é caracterizado na última estrofe, com
base em dois exemplos.
Explicitação dos cenários de respostas:
1.
Estabelece uma relação entre o mote e os versos 5 a 9, desenvolvendo,
adequadamente, os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.
A relação entre o mote e os versos 5 a 9
pode ser estabelecida com base nos aspetos seguintes:
− nos versos 6 e 7, a relação entre os olhos
de Helena e a natureza, sugerida no mote, é retomada através do par
«olhos»/«abrolhos», revelando o poder transfigurador dos olhos da figura
feminina;
− nos versos 5, 8 e 9, são enunciados os
efeitos do poder de Helena sobre outros elementos naturais («Os ventos», as «serras»
e «as fontes»), expandindo, assim, o tema proposto no mote.
2.
Refere dois efeitos expressivos da apóstrofe, desenvolvendo, adequadamente, dois
dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.
Os efeitos expressivos da apóstrofe
presente no verso 2 («gados, que paceis») podem ser referidos com base nos
aspetos seguintes:
− a interpelação aos «gados» (v. 2) adquire
um valor descritivo, contribuindo para sugerir um cenário campestre;
− os «gados» (v. 2) são constituídos
destinatários imediatos do poema;
− o sujeito poético assume uma intenção
pedagógica («sabei que» ‒ v.
3), procurando transmitir uma lição
aos «gados» (v. 2);
− o poder da figura feminina sobre a
natureza é destacado, sendo conferido um valor genesíaco aos «olhos d’ Helena»
(v. 4), de onde procede «a verdura amena» (v. 1) que alimenta os «gados» (v.
2).
3.
Explicita a importância dos versos 10 e 11 no desenvolvimento temático do
poema, desenvolvendo, adequadamente, os dois tópicos seguintes, ou outros
igualmente relevantes.
Os versos 10 e 11, «se isto faz nos montes,
/ que fará nas vidas?»:
− constituem um ponto de viragem no
desenvolvimento temático do poema, na medida em que a descrição dos efeitos
causados pelos olhos de Helena na natureza será substituída pela descrição das
suas consequências na vida de quem com ela se cruza;
− acentuam o poder dos olhos de Helena, ao
destacar que os seus efeitos se aplicam tanto à natureza como à vida dos
homens.
4.
Explica de que modo o poder de Helena é caracterizado na última estrofe,
desenvolvendo, adequadamente,
dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.
A caracterização do poder de Helena, na
última estrofe, pode ser explicada com base nos exemplos seguintes:
− Helena é descrita como tendo uma «graça
inhumana» (v. 16), o que remete para o campo temático da mitologia e para a
associação da figura feminina a uma divindade;
− Helena afeta as «vidas» (v. 11) dos seres
humanos, tornando-os vassalos («Os corações prende» ‒ v. 15), tal a força do seu fascínio («de
cada pestana / ũ’ alma lhe pende» ‒
vv. 17-18);
− os efeitos do poder de Helena
manifestam-se através de expressões que sugerem a submissão do próprio Amor
(«rende» ‒ v. 19; «posto em giolhos»‒
v. 20).
Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa | Prova
734 | 2.ª Fase | Ensino Secundário - 11.º Ano de Escolaridade | República Portuguesa – Educação, Ciência e Inovação / Instituto
de Avaliação Educativa, I. P. (IAVE), 2024 (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de
julho | Decreto-Lei n.º 62/2023, de 25 de julho)
Da infância em Inglaterra, da
impenetrabilidade de ler Camões em português ainda menino regressado de Oxford,
passando pela licenciatura em Estudos Clássicos - onde finalmente se fez luz
nos meus estudos camonianos - até aos dias de hoje, com o lançamento de
«Camões. Uma antologia», com comentários meus a diversos momentos da sua obra.
A minha intenção com «Camões. Uma
antologia» é ajudar a perceber mais e melhor a obra do nosso maior Poeta. E na
condição de alguém que conheceu muito bem a dificuldade de ler Camões, este
livro é também um convite, a quem nunca o leu, para ingressar no fascinante
mundo que é a sua obra, de mão dada comigo.
“A minha
história com Camões”, Frederico Lourenço, Coimbra, 28-05-2024