sábado, 27 de julho de 2024

Pastoral, António Gedeão


 

PASTORAL

Não há, não,
duas folhas iguais em toda a criação.

Ou nervura a menos, ou célula a mais,
não há, de certeza, duas folhas iguais.

Limbo todas têm,
que é próprio das folhas;
pecíolo algumas;
bainha nem todas.
Umas são fendidas,
crenadas, lobadas,
inteiras, partidas,
singelas, dobradas.
Outras acerosas,
redondas, agudas,
macias, viscosas,
fibrosas, carnudas.
Nas formas presentes,
nos atos distantes,
mesmo semelhantes
são sempre diferentes.

Umas vão e caem no charco cinzento,
e lançam apelos nas ondas que fazem;
outras vão e jazem
sem mais movimento.
Mas outras não jazem,
nem caem, nem gritam,
apenas volitam
nas dobras do vento.

É dessas que eu sou.

 

António Gedeão, Teatro do mundo. Coimbra: Oficinas da Atlântida, 1958

 

Sobre o poema

António Gedeão começa por constatar que não há duas folhas iguais em todo o Universo, aludindo desta forma à grande diversidade biológica que também nelas se manifesta. Mesmo naquelas que parecem ser iguais, há com certeza uma diferença: é o que o poeta pretende dizer quando afirma “ou nervura a menos, ou célula a mais, não há, de certeza, duas folhas iguais”.

Depois passa à descrição da morfologia da folha e à sua classificação quanto ao recorte da margem, à forma da folha e à consistência. Na quadra seguinte reafirma que, apesar de as folhas poderem ser classificadas e separadas, mesmo entre aquelas que têm mesma forma − “semelhantes”− há sempre diferenças que as tornam únicas.

António Gedeão revela neste poema um bom conhecimento da morfologia e classificação botânica das folhas, mas comete um lapso comum ao afirmar que todas as folhas têm limbo. Embora seja verdade para a maioria, há algumas exceções, como por exemplo, as folhas da acácia.

Recorda que as folhas podem cair e …”jazem sem movimento”, referindose às folhas caducas, e às outras que “nem jazem, nem caem” as folhas perenes.

Por fim classificase a si próprio como pertencendo ao grupo das folhas que “não jazem, nem caem, nem gritam, apenas volitam nas dobras do vento”, isto é, como uma pessoa resistente e com personalidade.

 

Maria Cristina Gusmão Pinheiro, Ciência em poetas portugueses do século XX:

implicações na comunicação da Ciência. Universidade de Aveiro, 2007

 

Classificação das folhas quanto à constituição


De acordo com a leitura do poema “Pastoral”, de António Gedeão, classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas.

1. O poema “Pastoral” celebra a diversidade e singularidade das folhas.

2. O poema destaca que não há duas folhas iguais em toda a criação e enfatiza a individualidade de cada ser.

3. O poema sugere que todas as folhas possuem limbo sem exceção.

4. No poema sugere-se que todas as folhas têm bainha.

5. As folhas que "jazem sem movimento" no poema referem-se às folhas perenes.

6. A enumeração é uma técnica estilística presente no poema, especialmente na descrição das diferentes formas das folhas.

7. As folhas mencionadas no poema representam apenas características botânicas, sem nenhuma alegoria para a condição humana.

8. As folhas que “não jazem, nem caem, nem gritam” representam a efemeridade da vida.

9. O poema sugere que as folhas que "volitam nas dobras do vento" são um símbolo de resignação e derrota.

10. O sujeito poético descreve folhas que se adaptam e resistem, comparando-as à sua própria personalidade.

 

Respostas:

1. Verdadeiro

2. Verdadeiro

3. Verdadeiro. Embora Gedeão escreva isso no poema, na realidade, há exceções como mencionado na análise de Maria Cristina Gusmão Pinheiro.

4. Falso. Afirma-se que "bainha nem todas," indicando que nem todas as folhas possuem bainha.

5. Falso. No poema, as folhas que "jazem sem movimento" referem-se às folhas caducas, que caem e ficam imóveis.

6. Verdadeiro.

7. Falso. As folhas simbolizam também diferentes formas de existência e individualidade humana.

8. Falso. Essas folhas simbolizam a resistência e a persistência diante das adversidades.

9. Falso. Estas folhas simbolizam resiliência e a capacidade de adaptação, qualidades com as quais o sujeito poético se identifica.

10. Verdadeiro.

 

sexta-feira, 26 de julho de 2024

O rio, Vinicius de Moraes

Big Bend National Park Texas. - NPS Photo/Ann Wildermuth


 

O RIO

Uma gota de chuva
A mais, e o ventre grávido
Estremeceu, da terra.
Através de antigos
Sedimentos, rochas
Ignoradas, ouro
Carvão, ferro e mármore
Um fio cristalino
Distante milénios
Partiu fragilmente
Sequioso de espaço
Em busca de luz.

Um rio nasceu.

 

Vinicius de Moraes, Rio de Janeiro, 1954

Disponível em: https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/o-rio

 


Leitura orientada do poema "O rio", de Vinicius de Moraes

Em "O rio", Vinicius de Moraes apresenta uma descrição poética da formação de um rio. No início do poema, o nascimento do rio é simbolizado por "uma gota de chuva". Esta gota, que fertiliza o "ventre grávido da terra", sugere o processo de infiltração da água no solo, crucial no ciclo hidrológico. A metáfora do "ventre grávido" evoca a ideia de fertilidade e criação, estabelecendo um elo entre o fenómeno natural e a gestação da vida.

A descrição dos "antigos / Sedimentos, rochas / Ignoradas, ouro, / Carvão, ferro e mármore" indica que o rio percorre diversas camadas geológicas, desde os sedimentos mais recentes até aos minerais mais antigos do subsolo. Esta passagem sugere um processo lento de erosão e sedimentação, moldando a paisagem ao longo de milénios e criando o leito por onde o rio fluirá. Aliás, a escolha de palavras como "antigos", "distante milénios" e "sequioso de espaço" sublinha a ideia de que o nascimento de um rio é um evento que transcende gerações e até eras geológicas

O rio é retratado como um ser vivo, com uma trajetória e um propósito. O sujeito poético atribui características humanas ao rio nascente, descrevendo-o como "fragilmente / Sequioso de espaço / Em busca de luz". Essas expressões conferem ao rio desejos e necessidades humanas, como a sede ("sequioso") e a busca por luz, que simboliza vida, crescimento e direção. 

O poema termina com o verso "Um rio nasceu" que marca o culminar do processo descrito no poema. Ele representa o momento em que todas as forças e elementos naturais se combinam para dar origem ao rio. Esse nascimento é o resultado de uma série de eventos e transformações, desde a gota de chuva inicial até à passagem por sedimentos e rochas.

O poema de Vinicius de Moraes ilustra como um pequeno começo pode levar a algo grandioso. O nascimento do rio representa não apenas o início de uma nova entidade, mas também o culminar de um processo de transformação e crescimento. É um ponto de partida que carrega consigo a história e a energia de tudo o que veio antes. Neste sentido, o poema pode ser interpretado, ainda, como uma metáfora para a vida humana. Assim como o rio, cada pessoa nasce de uma pequena mudança e atravessa desafios e obstáculos em busca de crescimento e realização. A busca por “luz” pode ser vista como a busca por conhecimento, verdade ou propósito.


quinta-feira, 25 de julho de 2024

Balada do rei das sereias, Manuel Bandeira


 

BALADA DO REI DAS SEREIAS

O rei atirou
Seu anel ao mar
E disse às sereias:
- Ide-o lá buscar,
Que se o não trouxerdes
Virareis espuma
Das ondas do mar!

Foram as sereias,
Não tardou, voltaram
Com o perdido anel
Maldito o capricho
De rei tão cruel!

O rei atirou
Grãos de arroz ao mar
E disse às sereias:
- Ide-os lá buscar,
Que se os não trouxerdes
Virareis espuma
Das ondas do mar!

Foram as sereias
Não tardou, voltaram,
Não faltava um grão.
Maldito capricho
De mau coração!

O rei atirou
Sua filha ao mar
E disse às sereias:
- Ide-a lá buscar,
Que se a não trouxerdes
Virareis espuma
Das ondas do mar!

Foram as sereias...
Quem as viu voltar?...
Não voltaram nunca!
Viraram espuma
Das ondas do mar.

 

Manuel Bandeira, Lira dos Cinquent’Anos, 1940

 

Leitura orientada da "Balada do rei das sereias", de Manuel Bandeira 

A "Balada do rei das sereias" é um poema de crítica social em que o sujeito poético conta a história de um rei que, na sua crueldade e arrogância, desafia as sereias do mar.

O texto inicia com o rei a atirar o seu anel ao mar e a ordenar às sereias que o recuperem, sob a ameaça de transformá-las em espuma caso falhem. Este gesto inicial estabelece o tom de tirania do monarca, que usa o seu poder para impor tarefas absurdas e desumanas. As sereias, figuras mitológicas associadas ao encanto e à sedução, aqui são reduzidas a serviçais, obedecendo aos caprichos do rei. O anel, símbolo de poder e aliança, é recuperado sem demora, o que demonstra a competência e a submissão das sereias ao poder régio.

A situação repete-se com grãos de arroz, um símbolo de fertilidade e vida, atirados ao mar. Novamente, as sereias cumprem a tarefa dificílima ao retornarem com todos os grãos, reforçando, assim, o domínio do rei e a extensão da sua crueldade. Este segundo ato do poema intensifica a sensação de injustiça e abuso de poder, enquanto as sereias continuam a cumprir as suas ordens, agora sem o mesmo significado de resistência ou contestação.

É na terceira e última parte do poema que se revela o verdadeiro clímax da narrativa. O rei, na sua insensatez máxima, joga a própria filha ao mar, exigindo que as sereias a tragam de volta. Este ato extremo de desumanidade não é atendido; as sereias desaparecem, transformando-se na espuma das ondas. A metamorfose das sereias em espuma pode ser interpretada como um ato de vingança e liberdade final contra a tirania do rei. Elas escolhem não retornar, não aceitar mais as ordens absurdas, e assim subvertem a relação de poder que o rei imaginava imutável.

A conclusão do poema, com a ausência das sereias e a transformação em espuma, evoca a lenda do nascimento de Afrodite, a deusa grega do amor e da beleza, que surgiu da espuma do mar. Esta referência mitológica adiciona uma camada de profundidade ao poema, sugerindo que há forças e poderes além da compreensão e controle do rei, e que a beleza e a justiça podem surgir dos atos de resistência e sacrifício.

Manuel Bandeira, através desta balada, tece uma crítica àqueles que abusam do seu poder e não percebem a resiliência e a força daqueles que eles subjugam. O poema é uma alegoria sobre a ilusão do controlo absoluto e a inevitável consequência da opressão. O jogo de submissão revela-se uma armadilha para o próprio rei, que perde algo infinitamente mais valioso do que um anel ou grãos de arroz: a sua própria filha e a fidelidade das sereias. Portanto, o autor alerta para os perigos da arrogância e da crueldade, mostrando que o verdadeiro poder reside na liberdade e na justiça.


quarta-feira, 24 de julho de 2024

Neologismo: teadoro, Teodora, Manuel Bandeira

(teadoro, Teadora, in Diálogos 7.
Ilustração: Luís Henriques, Manuel Cruz/WHO, Maria Fernand)

 

NEOLOGISMO

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana1.
inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo
Teadoro, Teodora.

 

Manuel Bandeira, Petróplis, 1947

Poesias completas, acrescidas de Belo belo. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1948

_________

1 A palavra “cotidiana” corresponde a “quotidiana”, na variedade do português europeu (isto é, português de Portugal).

 


Questionário sobre o poema "Neologismo", de Manuel Bandeira

1. O poema chama-se “Neologismo”, pois:

a) dá ideia de coisa ultrapassada;

b) encerra uma mensagem otimista;

c) apresenta características de versos soltos;

d) introduz palavras novas na língua.

e) contesta as regras gramaticais.

 

2. Manuel Bandeira é um dos nomes mais importantes da poesia da primeira fase do modernismo brasileiro; em seu poema “Neologismo”, o eu lírico

a) fala de situações inusitadas da vida do ser humano.

b) expressa a abundância em seu quotidiano.

c) denota acanhamento em suas atitudes.

d) demonstra falta de produtividade.

e) encontra reciprocidade em seus sentimentos.

 

3. “Beijo pouco, falo menos ainda” (verso 1)

3.1. Considerando estas palavras do “eu” poético, como o caracterizas?

3.2. De que forma exprime, então, o sujeito poético os seus sentimentos?

4. O sujeito poético inventou o verbo teadorar, que afirma ser um verbo intransitivo. Justifica esta classificação.

 

Respostas

1. Chave de correção: D

(Fonte: https://exercicios.brasilescola.uol.com.br/exercicios-gramatica/exercicios-sobre-neologismo.htm)

2. Chave de correção: C

A alternativa A está incorreta, pois o eu lírico inventa palavras que traduzem a “ternura mais funda e mais cotidiana”, ou seja, não traduzem situações inusitadas e incomuns, falam de situações do dia a dia.

A alternativa B está incorreta, pois o eu lírico utiliza os termos “pouco” e “menos”, revelando parcimônia e moderação no beijar e no falar, demonstrando uma postura de humildade em seu dia a dia.

A alternativa C está correta, pois o eu lírico declara que beija pouco e fala menos ainda, o que pode ser entendido como timidez e acanhamento, permitindo, ainda, a inferência de que há um certo constrangimento; conhecendo a história de Manuel Bandeira, da tuberculose que o acometeu ainda jovem, debilitando-o durante toda a vida, também, podemos entender o poeta expressa, através desse eu lírico, a convivência com uma debilidade que o impede de viver plenamente.

A alternativa D está incorreta, pois o eu lírico inventa palavras que traduzem os sentimentos do cotidiano, elaborando uma metáfora sobre o fazer poético; portanto, há produtividade.

A alternativa E está incorreta, pois o eu lírico criou um verbo intransitivo, ou seja, que não tem um complemento; desse modo, entende-se que não há reciprocidade, não há correspondência para o verbo que criado, o verbo “teadorar”.

(Fonte: https://vestibulares.estrategia.com/public/questoes/Neologismo-Beijo-pouco523c4356e7/ Elisabete Ana)

3.1. O “eu” poético apresenta-se como tímido, introvertido.

3.2. O sujeito poético inventa palavras “Que traduzem a ternura mais funda / E mais cotidiana.” (versos 3-4).

4. O verbo teadorar é intransitivo, porque nele aparece “incorporado” o ser adorado: teadorar significa adorar Teodora. Isto é, pode-se “adorar” qualquer pessoa, mas teadorar designa uma ação exclusiva, que não transita.

(Fonte: Diálogos 7, Fernanda Costa e Luísa Mendonça. Porto Editora, 2011, p. 199)

 

Texto de apoio

No poema "Neologismo" de Manuel Bandeira, o eu-poético começa com uma confissão: "Beijo pouco, falo menos ainda." Esta declaração inicial sugere uma introspeção que revela a dificuldade em demonstrar afeto através de gestos comuns e da fala. A seguir, o sujeito poético revela a sua solução para essa limitação: "Mas invento palavras que traduzem a ternura mais funda e mais cotidiana." Aqui, é introduzida a ideia central do poema: a criação de palavras como meio de expressar sentimentos que a linguagem quotidiana não consegue captar plenamente.

A invenção do verbo "teadorar" é o ápice do poema. Esta palavra combina o pronome pessoal átono "te" e o verbo "adorar", criando um neologismo que, segundo Eduardo Guimarães, no seu artigo Sentidos no texto - uma análise de “Neologismo”, de Bandeira, é formado a partir da expressão de um sentimento específico ("dizer te adoro") e não simplesmente pela combinação de palavras existentes. Assim, "Teadoro, Teodora" não é apenas um jogo de palavras, mas uma manifestação de amor e afeto entre o eu-lírico e a amada.

Pasquale Cipro Neto afirma que “ao inventar a palavra teadorar, nosso grande poeta inclui nesse verbo o objeto (o alvo) da adoração, daí uma das razões da intransitividade de teadorar. O verbo é intransitivo porque já contém seu suposto objeto.” (…) E por que eu disse uma das razões? Porque outra delas talvez seja o facto de que, sendo intransitiva, a adoração não se materializa, fica presa, contida, fechada no interior de quem a sente. A adoração existe, mas, por alguma razão, não transita, não chega ao ser adorado. Não custa lembrar que, em ‘Beijo pouco, falo menos ainda, o próprio poeta dá uma pista dessa intransitividade de seus sentimentos.” (Folha de São Paulo22-05-2003).

A estrutura do poema também é relevante. Começando com a constatação de limitações pessoais, seguido por uma adversativa que introduz a criação linguística, e culminando com o neologismo que encerra o poema, o sujeito poético guia o leitor através de um processo de autoconhecimento e expressão. Essa progressão estrutura o poema de forma a enfatizar a inovação linguística como um meio essencial de expressão emocional.

terça-feira, 23 de julho de 2024

As meninas, Vasco Graça Moura

 

Snorkellers, William Ireland

as meninas

as minhas filhas nadam. a mais nova
leva nos braços boias pequeninas,
a outra dá um salto e põe à prova
o corpo esguio, as longas pernas finas:

entre risadas como serpentinas,
vai como a formosinha numa trova,
salta a pés juntos, dedos nas narinas,
e emerge ao sol que o seu cabelo escova.

a água tem a pele azul-turquesa
e brilhos e salpicos, e mergulham
feitas pura alegria incandescente.

e ficam, de ternura e de surpresa,
nas toalhas de cor em que se embrulham,
ninfinhas sobre a relva, de repente.

 

Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessenta Anos. Porto, Edições Asa, 2002

 

Leitura

A estrutura clássica deste soneto contrasta com a leveza e espontaneidade do conteúdo, que celebra a alegria e a inocência da infância.

Na primeira quadra, o sujeito poético descreve as suas filhas a nadar, cada uma com as suas particularidades. A mais nova, que ainda precisa de boias, e a mais velha, já mais confiante e destemida, figuram diferentes fases da infância. O uso de termos como "boias pequeninas" e "corpo esguio" revela a ternura e o cuidado com que o sujeito poético observa as suas filhas.

Na segunda quadra, o sujeito poético continua essa descrição, enfatizando a alegria e a leveza das meninas, cujas risadas são comparadas a serpentinas. Essa comparação transmite visualmente a vivacidade das crianças e remete para uma atmosfera de festa. 

No primeiro terceto, a descrição da água como tendo "a pele azul-turquesa" e "brilhos e salpicos" eleva a cena a um nível quase mágico, em que o ambiente envolvente parece refletir a pureza e a alegria das crianças. A expressão "feitas pura alegria incandescente" sugere que as meninas são a personificação da felicidade, irradiando uma luz interna.

O poema encerra com uma imagem de serenidade e ternura: as meninas embrulhadas em toalhas coloridas, deitadas na relva. A palavra "ninfinhas" evoca seres mitológicos, sublinhando a ideia de que essas crianças são vistas pelo sujeito poético como criaturas mágicas e preciosas. O uso da palavra "de repente" no final do poema captura a surpresa e a beleza efémera desses momentos, realçando a importância de valorizar cada instante de felicidade e inocência.

Nesta composição, o poeta transformou o quotidiano em poesia, fazendo de «as meninas» um canto à infância, ao amor paterno e à beleza dos momentos fugazes eternizados na memória.

 

"as meninas,2", Vasco Graça Moura, 2003.


as meninas, 2

lavam os dentes, já tomaram banho,
e em suas camisinhas de flanela
dão boas noites numa tarantela,
são cinco-réis de gente no tamanho.

as meninas estão a bom recato.
não queriam ir dormir. choramingaram.
houve histórias de fadas em que entraram.
depois, tombou o livro num sapato.

amanhã de manhã levam vestida
a blusinha de lã azul xadrez,
a saiinha encarnada, as meias pretas,

mas no país da bela adormecida
há flores e pintainhos e talvez
um gato, um peixe, um cão e borboletas.

 

Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessenta Anos. Porto, Edições Asa, 2002

 

De acordo com a leitura do poema “as meninas, 2”, de Vasco Graça Moura, classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas.

1. As meninas são retratadas antes do banho e da escovagem dos dentes, vestindo camisinhas de flanela.

2. As meninas tomaram banho e lavaram os dentes antes de colocar as suas camisinhas de flanela.

3. As “camisinhas de flanela” simbolizam a inocência e a proteção das meninas.

4. As meninas despedem-se com uma tarantela após tomar banho e lavar os dentes.

5. A despedida das meninas, feita em forma de "tarantela", sugere vivacidade.

6. A expressão "cinco-réis de gente no tamanho" é usada para destacar a resistência das meninas à hora de dormir.

7. As meninas choramingaram porque queriam ouvir histórias de fadas antes de dormir.

8. As histórias de fadas servem como um ritual de transição entre a agitação do dia e o repouso noturno.

9. Depois de ouvir as histórias de fadas, o livro caiu da mesa.

10. O detalhe do livro que "tombou num sapato" evoca a ordem e a organização do mundo infantil.

11. O detalhe do livro que “tombou num sapato” sugere uma interrupção abrupta da fantasia.

12. No poema, o sujeito poético descreve minuciosamente as roupas que as meninas usarão no dia seguinte.

13. A expressão "país da bela adormecida" refere-se ao local onde as meninas brincam durante o dia.

14. No poema celebra-se a relação entre o sujeito poético e as suas filhas através de uma linguagem complexa e distante.

15. O poema "as meninas, 2" capta a essência da infância e a ternura da relação pai-filhas.

16. O poema reflete a visão do sujeito poético sobre a infância como um período de inocência e proteção.

17. Apesar do rigor da sua forma fixa, o soneto "as meninas, 2" é construído com uma fluidez que reflete a naturalidade dos momentos descritos.

 

as meninas,2 - ilustração de João Caetano (in Plural 7, Raiz editora, 2011)


Respostas:

1. Falso. As meninas são retratadas após o banho e a escovagem dos dentes.

2. Verdadeiro.

3. Verdadeiro

4. Verdadeiro.

5. Verdadeiro.

6. Falso. A expressão é usada para destacar a pequenez e a preciosidade das crianças.

7. Falso. Choramingaram porque não queriam ir dormir.

8. Verdadeiro.

9. Falso. O livro caiu num sapato.

10. Falso. Evoca a desordem e a espontaneidade do mundo infantil.

11. Verdadeiro

12. Verdadeiro.

13. Falso. Refere-se à imaginação das meninas, povoada por elementos encantados.

14. Falso. Celebra a relação através de uma linguagem simples e afetuosa.

15. Verdadeiro.

16. Verdadeiro

17. Verdadeiro.


segunda-feira, 22 de julho de 2024

Não quero, não, Eugénio de Andrade


"Não quero, não" | cantarmais.pt, 06-03-2022


NÃO QUERO, NÃO

Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.

Quero um cavalo que é só meu,
seja baio ou alazão,
sentir o vento na cara,
sentir a rédea na mão.

Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.

Não quero muito do mundo:
quero saber-lhe a razão,
sentir-me dono de mim,
ao resto dizer que não.

Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.

 

Eugénio de Andrade, Aquela nuvem e outras. Porto, Asa, 1986

 

Leitura

O poema "Não quero, não" de Eugénio de Andrade é uma expressão clara da busca pela liberdade individual e da rejeição do militarismo. A repetição do verso "não quero, não quero, não" reforça a negação de uma vida militar e, por conseguinte, da guerra. Este refrão cria uma musicalidade que atrai leitores de todas as idades, cumprindo o objetivo de cativar tanto crianças quanto adultos.

O cavalo, figura central do poema, simboliza a liberdade e a autonomia. O desejo do eu lírico de possuir um cavalo "seja baio ou alazão" e de "sentir o vento na cara" e "a rédea na mão" expressa uma aspiração por uma vida livre, em que ele é o dono do seu próprio destino. Este anseio por independência e contato com a natureza contrasta com a vida regimentada de um soldado ou capitão. A negação do militarismo, sustentada pela repetição enfática do verso central, é evidente no desejo do eu lírico por uma vida simples e autêntica, livre das imposições externas.

O poema “Não quero, não”, expressão lírica que revela a busca pela liberdade individual e a recusa de certos papéis sociais, combina elementos da tradição literária escrita e oral. Através do uso de rimas, aliterações, reiterações e estribilhos, evoca a musicalidade típica das canções e poesias orais. A métrica de sete sílabas e a simplicidade da linguagem ligam o leitor à cadência da fala quotidiana e às narrativas populares. 

 

Textos de apoio

Trata-se de um poema no qual, para além da «reivindicação da liberdade individual» (José António Gomes, Figurações do Desejo e da Infância em Eugénio de Andrade. Porto: Tropelias & Cª, 2010, p. 45), conotada com a figura do cavalo a galope e a «rédea na mão» (ANDRADE, 1999, p. 44), se pressente a negação, sustentada estilisticamente pela repetição do verso «não quero, não quero, não», do materialismo, do militarismo e, por consequência da guerra, como aponta José António Gomes.

Sara Silva, “Conflitos bélicos, literatura para a infância e sistema educativo: uma reflexão necessária” in Devir Educação, v.1, n.1, p. 17-40, 2017.

***

Diz Eugénio de Andrade, no breve mas substancial texto «À maneira de explicação, se tal for necessário», com que encerra o seu livro de poemas Aquela Nuvem e Outras (1986), consagrado à infância (mesmo se é, como todas as boas obras destinadas a uma receção por parte da infância e da juventude, de leitura cativante e proveitosa para todas as idades): «a simples matéria sonora – rimas, aliterações, reiterações, estribilhos, consonâncias – é fonte de sedução e razão de encantamento desde que o homem se demorou, pela primeira vez, a escutar o vento entre os ramos» (servimo-nos da 11.ª ed., Vila Nova de Famalicão, Edições Quasi, 2005, sem numeração de páginas; com cores e ilustrações que de imediato arrebatam os sentidos do leitor ou do simples utente do livro, materializando em corpos icónico -empíricos a construção poética que, com a imagem, transfigura a legibilidade do mundo conhecido e desconhecido). De certo modo, cumpre-se a cada leitura (silenciosa ou em voz alta) o desejo formulado pelo poeta exatamente no fim do posfácio: «Quis misturar a minha voz às vozes anónimas da infância – oxalá ela venha a tornar-se anónima também». E, para isso, nem é necessário que se exija destes poemas a disseminação e a persistência na memória coletiva oral, a contaminação com outros textos e o desdobramento em variantes, a sua adequação, numa palavra, às leis da tradicionalidade: não só porque, ainda nas palavras do poeta, a «uma retórica de fogo de artifício» se opõe aqui «uma poética da luz, articulando a nudez e a transparência com a simplicidade de quem fala para que outros o escutem – daí o uso frequente das sete sílabas contadas que é o ritmo natural e português da nossa fala, se não for também o dos nossos passos», mas igualmente porque em cada um destes textos se cumpre a utopia de uma voz literária primordial; uma voz de vozes, forte e total, que, no caso, pelo recurso ágil à arte poética própria das obras literárias orais e pela convocação de uma memória literária (oral e escrita) que modela um tecido intertextual muito rico e diverso, faz de cada um destes textos um monumento já tradicional (com o que, diríamos, quase deixa de ser funcional o conceito de popularizante ou de popularismo estético, tal é a verdade destes textos, em si mesmos alheios às categorias com que muitas vezes partimos para a análise de certas obras: oral/escrito, popular/culto, tradicional/não tradicional, etc.).

 

Carlos Nogueira, Aspectos do Cancioneiro Infantil e Juvenil de transmissão oral. Lisboa, Apenas Livros Lda., 2007

 



Análise musical da canção

Características melódicas 

 

A melodia está na tonalidade de Mi M e tem um âmbito de 8ª Perfeita [Si 2 – Si 3].

Na 1ª parte é constituída por notas repetidas e intervalos melódicos de 2ª (m e M) e 3ª menor. Na 2ª parte tem intervalos de 2ª (m e M), 3ª (m e M) e uma 4ª P e uma 5ª diminuta.

As duas partes começam e terminam na Tónica (Mi). A 1ª parte é inteiramente composta por três notas: o 1º grau (tónica de Mi M), e os graus superior e inferior (Fá# e Ré#, que é a Sensível de Mi Maior). A 2ª parte, apesar de oferecer uma maior variedade melódica, arpejando os acordes de Tónica e da Sensível (ou da 7ª da Dominante com a fundamental omitida), pode ser vista como uma versão mais elaborada da parte anterior, já que, não só a harmonia e o ritmo harmónico se mantêm, como a Tónica e a Sensível surgem nos mesmos tempos dos compassos.

Destaca-se nesta parte a utilização dos referidos arpejos do acorde de tónica, um arpejo Perfeito Maior (“cavalo só”) e da Sensível, um arpejo diminuto (“ou alazão”), e o intervalo de 5ª diminuta descendente,  em “só meu”.

 

Características rítmicas

 

A melodia está escrita no compasso 2/4, binário de tempos de divisão binária.

É composta por duas partes A e B, apresentando a segunda uma variação rítmica, aquando da sua repetição (B’). O ritmo é silábico e quase exclusivamente escrito em colcheias e semínimas, destacando-se a célula rítmica, [colcheia duas semicolcheias], presente em todas as frases da canção, e a célula [colcheia pontuada semicolcheia], que aqui surge como uma transformação da célula anterior.

O andamento é moderado (Andante), sem variações. 

 

Forma

 

Forma ternária (ABA).

A melodia divide-se em duas partes organizadas no esquema formal AA BB’ AA BB’ AA, funcionando a parte A como um refrão. A parte A é constituída por (aa’), a parte B por (bc) e a parte B’ por (bd).

 

Arranjo/Instrumentação

 

O arranjo segue o plano formal seguinte: Introd. AA BB’ AA BB’ AA

O presente arranjo foi concebido para ser interpretado por voz acompanhada ao piano. Entretanto, na versão áudio aqui apresentada e interpretada pelo autor do arranjo, foram acrescentados outros instrumentos que julgou poderem enriquecer a sonoridade da canção.

Partitura da canção

Partitura completa da canção (em formato pdf), aqui.

  

Poema “Não quero, não” de Eugénio de Andrade, com música de Manuela Encarnação e arranjo de Carlos Garcia. Ciclo Eugénio de Andrade – Encomenda da Associação Portuguesa de Educação Musical para o Cantar Mais @cantarmais.pt Disponível em: https://www.cantarmais.pt/pt/cancoes/teatromusical/cancao/ciclo-eugenio-de-andrade-nao-quero-nao?