Ó Mãe, eu nasci num país Nasci num país que me odeia Dizem: "Deixa passar a louca" Dizem: "Deixa passar a feia" Ó Mãe, eu nasci num país Nasci num país que me odeia Dizem: "Deixa passar a louca" Dizem: "Deixa passar a feia"
A extrema direita que eu assumo é ter na mão direita um punho que carrega uma caneta Voz armada com bala de chumbo, tiro seguido de fumo, sou mulher e sou poeta Querem voltar atrás no tempo, plantar o medo cá dentro, gritam "Deus, Pátria е Família" E um marido que traga sustento ou mais um olho cinzento, diz quе foi contra a mobília
Ó Mãe, eu nasci num país Nasci num país que me odeia Dizem: "Deixa passar a louca" Dizem: "Deixa passar a feia" Ó Mãe, eu nasci num país Nasci num país que me odeia Dizem: "Deixa passar a louca" Dizem: "Deixa passar a feia"
Vocês odeiam as mulheres e quando matam as mulheres, querem chorar e acender velas Mas metade do mundo são mulheres e a outra metade do mundo é feita dos filhos delas Um país sem casa nem conforto, querem falar do aborto, querem nos tirar os livros Sou filha de Abril, saí do esgoto, nasci pronta para o confronto e eles gritam-me aos ouvidos
Ó Mãe, eu nasci num país Nasci num país que me odeia Dizem: "Deixa passar a louca" Dizem: "Deixa passar a feia" Ó Mãe, eu nasci num país Nasci num país que me odeia Dizem: "Deixa passar a louca" Dizem: "Deixa passar a feia"
Ó Mãe, eu nasci Ó Mãe, eu nasci Ó Mãe, eu nasci Num país Ó Mãe, eu nasci Ó Mãe, eu nasci Ó Mãe, eu nasci Deixa passar a feia
Segredo
Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça
nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa
Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço.
Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar
Maria Teresa Horta, Minha Senhora de Mim. Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1971
Teresa
acreditava que a escrita lhe pertencia por direito, mas queria fazer algo de
novo. E assim surgiu Minha Senhora de Mim. Procurava outras
possibilidades na escrita. E não descartava o risco de escrever algo que fosse
um vendaval, uma proposta em oposição à regra. Os poemas revelam a sexualidade feminina,
a mulher enquanto orientadora da acção que leva ao prazer. Mal terminou a
escrita, consciente de que os poemas escritos formavam um conjunto passível de
ser publicado num único volume (seria o seu nono livro de poemas), pediu a Luís
de Barros: «Quero que tu leias, por favor, estamos numa altura em que as coisas
estão complicadas, e quero que saibas o que sinto por ti. Ele disse: "Que
parvoíce, eu amo-te. Que disparate, não preciso de ler."» E não leu.
O
livro foi publicado, dedicado ao marido, e ele não leu um único poema. Não
mostrou interesse e Teresa optou por não o interpelar. Trata-se de um livro que
revela a paixão que Teresa então sentia, assumindo uma voz diferente, plena de
desejo, de ânsia e de sonho, procurando inspiração e rasgo na poética medieval,
nas canções de amor e de amigo. O livro começa com uma epígrafe de Marguerite
Duras: «J'ai le temps, que c'est long!»
A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, p. 206
Minha
Senhora de Mim (1971) compõe-se de cinquenta e nove poemas.
Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a
literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status
quo (neste caso, o pensamento patriarcal). Ao mesmo tempo, o seu conteúdo é
subvertido (viria a acontecer o mesmo com Novas Cartas Portuguesas). Nas
cantigas de amigo medievais, escritas por homens, a voz era feminina e versava
quase sempre o sofrimento por amor, regra geral devido à ausência do “amigo”,
deixando as mulheres no estado de absoluta dependência em relação aos homens.
Contudo, na obra de Maria Teresa Horta, a mulher é o centro da narrativa dos
poemas, sendo ainda o centro do desejo sexual. Não raras vezes, o sujeito
poético usa o modo imperativo, comanda a relação heterossexual, não só rejeita
a submissão como submete.
Ana
Maria Domingues de Oliveira, em Quarenta anos de Minha Senhora de Mim,
fala precisamente da influência trovadoresca na obra:
Em
seus 59 poemas, Minha senhora de mim propõe uma releitura do
Trovadorismo português, sobretudo no que se refere às cantigas de amigo. (…) Ao
tomar as cantigas de amigo a partir de uma perspectiva crítica e paródica,
portanto, Maria Teresa Horta acabava por atingir de modo igualmente crítico a identidade
nacional, em razão sobreposição entre os conceitos de identidade literária e
identidade nacional (in Anais do XVI Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário
Internacional Mulher e Literatura).
Assim,
ao alterar a relação entre os sexos da forma como o Estado Novo a preconizava,
instalava um novo modelo de estrutura social, ou sugeria-o, desafiando a moral
instituída. A moral do fascismo, ao mesmo tempo, era afrontada pela
independência e pela liberdade das mulheres – estas seriam donas de si, não se
confinando ao quadro de dominação em que o Estado Novo as arrumava. Assim,
contra a dominação patriarcal, apresentada como prática política do regime,
Maria Teresa Horta, através da produção simbólica geralmente atribuída aos
homens, reclamou para si e para as outras mulheres um lugar social. Ao mesmo
tempo, Minha Senhora de Mim, pelas pontes que faz, evidencia o
patriarcado enquanto base da cultura ocidental. Afinal, traz para o seu tempo a
Idade Média, com a tradição literária que esta acarreta, que se mostra nas
cantigas.
Nos
poemas de Minha Senhora de Mim, a novidade não está apenas em dar-se voz
à sexualidade das mulheres, mas no tom imperativo que é usado nos poemas,
pondo-se a mulher a comandar a acção, dizendo ao homem o que deve fazer para
agradar-lhe. Para além disso, é a mulher quem toma a iniciativa e chega a
descrever como agradar ao parceiro. O sexo torna-se numa busca pelo prazer,
esvazia-se do seu carácter procriador ou, ao reclamar o prazer para a mulher,
de uma relação de poder do homem sobre a mulher. Recorde-se que, à época,
Portugal estava tolhido por uma moral católica: ainda que o prazer masculino
fosse permitido ou socialmente aceite, o da mulher, por motivos de moral
imposta ou religiosos, não o era. A vida pública regia-se pela ideia de que as
mulheres deviam reger-se por um espírito de sacrifício, e que este devia verificar-se
também no sexo. Por isso, a mulher devia estar subjugada. Foi contra isto que
Maria Teresa Horta criou uma voz de comando feminina, uma voz que ordena e
orienta. Com ela, precisa, incisiva, a procura pelo prazer sexual é clara,
indisfarçada, indisfarçável.
O
poema “O meu desejo” trará essa buscar de forma clara. Note-se:
Afaga devagar as
minhas
pernas
Entreabre devagar os meus
joelhos
Morde devagar o que é
negado
Bebe devagar o meu
desejo
(HORTA, 1971, p. 82)
Aqui, revela-se
aquilo a que já nos referimos previamente: a utilização do modo imperativo em
prol de uma relação de forças em prol da mulher. Para além disso, a acção é
explícita e, por sê-lo, rejeita o papel presumivelmente assexuado das mulheres.
Já no “Poema ao desejo”, que transcreveremos de seguida, em que existe o
mesmo modo imperativo, vê-se que está no cerne do poema uma relação erótica
mais violenta.
Empurra a tua
espada
no meu ventre
enterra-a devagar até ao cimo
que eu sinta de ti a queimadura
e a tua mordedura nos meus rins
deixa depois que a tua boca
desça
e me contorne as pernas de doçura
Ó meu amor a tua língua
prende
aquilo que desprende de loucura
(HORTA, 1971, p. 84)
A
“espada” como símbolo do homem será ainda uma metáfora recorrente na poesia de
Horta. Vemo-la, aliás, no poema que se intitula precisamente “Minha espada”:
Solidão de terra
ferida
feita
planta ou jornada
ignorada e perdida
ou nos meus seios
entornada
Em retorno da partida
amigo de sua amada
Vazio que habito esquecida
Com meu ventre e sua espada
(HORTA, 1971, p. 24)
Aqui,
o título do poema, através do pronome possessivo usado, já revela uma
transgressão. O sujeito feminino, ao assumir a posse, é quem domina e manuseia,
recusa a subjugação. Contudo, isto contrastará com a imagem da terra, que
representa uma imagem de submissão, já que espera ser fertilizada, e cujos
abandono e solidão causam sofrimento. Para além disso, a última estrofe gira em
torno do símbolo fálico e a mulher é vista como um objecto, como o “repouso da
espada”. Esta, entornada, por sua vez revelará o sacrifício e o sofrimento do
sujeito poético.
Finalmente,
cabe aqui uma referência ao poema “As nossas madrugadas”, que encontrará
paralelo em textos prosaicos presentes em Novas Cartas Portuguesas:
Desperta-me de
noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito
pois suspeitas
que com ele me visto e me
defendo
É a raiva
então ciúme
a tua boca
é dor e não
queixume
a tua espada
é rede a tua língua
em sua teia
é vício as palavras
com que falas
E tomas-me de força
não o sendo
e deixo que o meu ventre
se trespasse
E queres-me de amor
e dás-me o tempo
a trégua
a entrega
e o disfarce
E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes
na pressa de teres o que só sentes
e possuíres de mim o que não sabes
Despertas-me de noite
com o teu corpo
tiras-me do sono
onde resvalo
e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite
e tu dentro de mim
vais descobrindo vales
(HORTA,
1971, p. 86/87/88)
Este
poema refere-se a um domínio físico, por parte do homem, que termina em
violação. Na primeira estrofe, a mulher é acordada para a satisfação do homem.
É o desejo dele que a desperta, indiferente ao facto de ela dormir, “vergando”
o sono dela, suspeitando que é usado para defender-se dele (a contraposição de
vontades e o domínio dele sobre a dela já é a violação do desejo dela). De
seguida, mostra-se a condição de objecto do sujeito poético, mulher: o homem
tem “pressa de ter[es] o que só sente[s]”, quer possuir dela “o que não
sabe[s]”. Finalmente, descreve-se a relação sexual involuntária, mostrando-se a
condição de subjugação física, emocional e psicológica a que o sujeito poético está
submetido: o corpo do homem desperta-a até que ela, saindo “do sono/onde
resvala [resvalo]”, repila a noite. O homem, por sua vez, terá o que almeja
desde o início, ainda que contra os desejos da mulher: “vais descobrindo
vales”.
Maria
Teresa Horta traz, assim, para a poesia, um novo sujeito poético – só rompendo
com a tradição literária podia romper-se com a condição da subjugação das
mulheres, até porque a primeira compactuava com o silêncio, anulava sujeitos.
Até que aquelas que pareciam trazer sujeitos novos – as cantigas de amigo –
eram, na verdade, escritas por homens, e eram portanto estes quem moldava, na
tradição literária, as relações afectivas e sexuais. Os poemas que compõem este
livro são, portanto, veículos de actos políticos indispensáveis: afinal, eles
mesmos são actos políticos, é a apropriação da linguagem que funciona como
desafio ao instituído.
O
rastilho deixado por Minha Senhora de Mim não se apagou depressa e
causou inúmeros dissabores. Teresa vivia no bairro social do Arco do Cego, na
Rua Caetano Alberto. Certa vez, saia de casa para ir ter com o marido, iam
beber um copo algures – expressão usual, embora Teresa nunca bebesse álcool – depois
do fecho do jornal. Era sexta-feira, o filho estava em segurança em casa dos
avós paternos. Teresa atravessou a rua na direcção da estátua de José de
Almeida, a fim de apanhar um táxi. Quando chegou à curva da Rua Caetano Alberto
viu um carro, estacionado à sua frente, que acendeu as luzes. Teresa não lhe
deu importância. O automóvel arrancou. Subitamente, em pânico, percebeu que
vinha na sua direcção, que a ideia era esmagá-la contra a parede. Felizmente
estava perto de um dos candeeiros de rua e conseguiu evitar o embate do carro. «Para
trás eu não podia ir, não podia correr para casa, portanto tinha de andar para
a frente, para a estátua, que era onde eu queria chegar, na esperança de que
existisse por ali mais gente.» Teresa apressou o passo, quase a correr. Ouviu
as portas do automóvel baterem, dois homens vieram na sua direcção, um outro
ficou dentro do automóvel que se movia agora devagar, sempre na sua direcção.
Os dois homens alcançaram-na. Deitaram-na ao chão. Teresa caiu de costas e eles
ficaram em cima dela a espancá-la. Disseram-lhe: «Isto é para aprenderes a
não escrever como escreves.» Pareceu-lhe que tudo aquilo durou horas, os
murros, os tabefes, mas devem ter sido minutos. Cada vez que se queria
levantar, batiam-lhe na cara, na cabeça. Teresa sentiu que tinha a cabeça
aberta atrás e à frente, havia sangue e um prenúncio de várias dores no corpo.
Um vizinho do bairro começou a subir a rua, gritou, pensava que eram ladrões.
Os dois homens aperceberam-se da sua presença e entraram no automóvel. O
trabalho estava feito. O vizinho gritou por ajuda. Teresa recorda-se de o ouvir
dizer: «O que é isto?! Roubaram-na, roubaram-na, que horror... Está toda cheia
de sangue!» O vizinho não a queria deixar sozinha. Teresa insistiu, ele que
fosse a casa telefonar a Luís de Barros, receava que já tivesse saído do jornal
e só queria ver o marido. Felizmente não foi o caso e Luís de Barros encontrou-se
com ela já no Hospital de Santa Maria. «Ficámos convencidos, mesmo
politicamente, de que eles eram legionários, a PIDE não trabalhava assim, não
batia na rua. Não era o modo deles. Os legionários eram um braço fascista. Até
hoje acho isto. Combinaram serem eles, saíra o livro e estavam ofendidos. Foi
uma desgraça. Não fiquei deprimida, nada disso, a PIDE e os fascistas não
têm esse poder sobre mim. Isso queriam eles, nem pensar.»
Teresa
foi para o Hospital de Santa Maria de táxi com o vizinho. Possui uma lembrança
muito vaga da viagem até lá. Fez radiografias, levou uma série de pontos na
cabeça. Tinha o corpo coberto de hematomas, as pernas e os braços com escoriações.
Não se recorda de chorar, nunca foi muito de chorar. «Uma escritora não tem
de ser sensata nem prudente, tem de ter consciência do que se faz, mas não se
autocensura.»
A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 219-221
Muito obrigada, Senhor Presidente da República, por me ter convidado a juntar-me às Celebrações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, neste ano de 2025. Não estava no meu horizonte, mas agradeço-lhe.
Os países escolhem datas de referência para celebrarem a sua História, contemplando memórias de batalhas, acções de independência, encontros civilizacionais, momentos importantes em torno dos quais concitam a unidade dos cidadãos e promovem o orgulho patriótico. Mas em Portugal é a data da morte de um poeta que protagoniza o nosso momento cívico de unidade mais relevante.
Muito se tem discorrido sobre o significado desta nossa singularidade. E muitas vezes é difícil explicar que não se trata de um sinal de melancolia, mas sim do seu oposto – a assunção de que um poeta do século XVI nos legou uma obra tão vigorosa que acabou por ser adoptada no seu conjunto como exemplo da vitalidade de um povo. E que a própria biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de um percurso português, mas se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação prometeica sobre a Terra. A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando se encontrava em paragens remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como exemplo da proximidade que os portugueses, que se encontram longe, mantêm com a sua cultura de origem. O país retribui-lhes reconhecendo desde há muito que as Comunidades Portuguesas são corpo essencial do nosso ser identitário.
Mas as Celebrações deste ano de 2025 têm um cunho muito particular. Em primeiro lugar porque voltam a ter lugar na cidade de Lagos. No século passado foi cidade anfitriã em 1996. Passados vinte e nove anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre, próspera. O que mudou, e o que justifica que de novo tenha sido escolhida para ser palco das celebrações, foi a nova consciência de que Lagos passou a representar um lugar obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao longo dos séculos.
É sabido que Lagos, lugar de saída para África, e lugar do comércio prático, tem como símbolo complementar o Promontório de Sagres. A escassos quarenta quilómetros de distância, Sagres e Lagos representam historicamente uma dualidade contrastiva cujo papel se encontra em avaliação. A comunicação digital que se afirmou a partir dos anos noventa, permite agora uma divulgação ampla dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores estão a realizar neste espaço geográfico antes designado por Terras do Infante. Era altura de atribuir a Lagos, de novo, o estatuto de cidade merecedora de acolher estas celebrações, e de fazer reflectir a sua importância como polo aglutinador de interesse cultural.
Mas há outro motivo para que este ano a Celebração deste Dia seja particular. Desde há dois anos que estamos a evocar o nascimento de Camões, ocorrido há quinhentos anos, presume-se que entre 1524 e 1525. Calcula-se que assim tenha sido, mas vale a pena reflectir sobre o facto, pois tal como não sabemos como decorreu a sua infância nem a sua formação, também desconhecemos o local e o dia em que o poeta nasceu. Para sermos justos, sobre a sua vida inicial, apenas podemos dizer o que um célebre maestro disse sobre Beethoven – Um dia Camões nasceu e nunca mais morreu.
2.
Nunca mais morreu.
Provam-no a forma como passados cinco séculos tem sido revisitado ao longo destes dois últimos anos. As escolas, a academia, o mundo da edição, os vários campos das artes e das ciências humanísticas em Portugal têm dado rosto a toda uma espécie de comemoração espontânea e informal em torno do nosso poeta maior. Novos autores têm surgido actualizando a exegese sobre os seus poemas e o conhecimento acumulado em torno da vida de Camões. O jovem ensaísta Carlos Maria Bobone pôs recentemente em relevo o papel decisivo que Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um pensamento novo, que resultaria definitivamente na Língua Portuguesa Moderna que hoje usamos. Demonstrou como a Língua Portuguesa, manobrada no seu esplendor, resultou como uma dádiva que devemos ao “grande cantor do Oceano” como lhe chamou Baltazar Estaço.
Por sua vez, a biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita recente profusamente documentada que faz à vida de Camões, no final, não deixa de se comover com os testemunhos sobre os últimos dias do poeta, demonstrando que as histórias que correm sobre certos passos da sua vida afinal não são lendas, são verdades. O receio de sermos românticos não nos deveria afastar da realidade testemunhada. E assim, a mim não me pareceria errado que os adolescentes portugueses conhecessem o comentário que Frei José Índico redigiu na margem de um exemplar de Os Lusíadas presumivelmente oferecido pelo próprio autor na hora de partir. Escreveu o frade – “Yo lo vi morir en un hospital en Lisboa, sin tener una sabana con que cubrirse (…) después de haber navegado 5.500 leguas per mar.”
Assim foi, sem um lençol. Terá sido um amigo quem lhe enviaria a sabana, já depois de morto. Não me parece que daí se devam retirar conceitos patrióticos ou antipatrióticos. Conceitos sobre a vida humana e o seu mistério, isso talvez. Entretanto, por contraste, sobre a obra que deixou, milhares de páginas de novo têm sido escritas, confirmando a dimensão invulgar do poeta que foi. Hélder Macedo, um dos seus leitores mais subtis, disse recentemente numa entrevista que se Camões tivesse continuado a viver, ninguém mais em Portugal teria sido capaz de escrever um verso. Essa hipérbole é linda.
Assim como é reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças epigramas, redondilhas e vilancetes de Camões como se fossem filmes modernos feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados do seu poeta maior.
3.
Mas se o patrono destas Celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e teológico como é em Sobolos Rios que Vão, e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar, ao regressarmos a todos esses versos escritos há quase quinhentos anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender os tempos duros que atravessamos, tão em conformidade com os tempos em que ele próprio viveu.
Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo, e sobre a consciência dessa mudança, no conjunto das mil cento e duas oitavas que compõem Os Lusíadas, vinte e duas delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então. Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo enquanto género. O paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado na criação de um Império e, em sentido oposto conter a condenação das práticas que passados cinquenta anos impediam a manutenção desse mesmo império. E nesse campo, pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica que o Dia de Portugal seja o Dia de Camões, expressa corajosas verdades, dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.
É bom lembrar que entre os séculos XVI e XVII três dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante dezasseis anos, e no entanto os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram testemunhas. Foram eles Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos, e entre eles os mecanismos universais do poder, corpus que continua válido e intacto até aos nossos dias. Sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, e o poder temeroso e o poder laxista.
No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da História para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então? Queixava-se da degradação moral. Mencionava o vil interesse e sede immiga/ do dinheiro, que a tudo nos obriga, e evocava entre os vários aspectos da degradação o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado o mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer fortuna. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento. Queixava-se da falta de seriedade intelectual que resultava, depois, na prática, na degradação dos actos do dia a dia. Escreve o poeta no final do Canto VIII – Este deprava às vezes as ciências, /Os juízos cegando e as consciências (…) Este interpreta mais do que sutilmente/Os textos; este faz e desfaz leis; / Este causa os perjúrios entre a gente/E mil vezes tiranos torna os Reis…
4.
Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios em que viveram. Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra dizia-se que lutavam entre si pelo domínio do Globo Terrestre. Ou, mais concretamente, dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a Terra ao pescoço como se fosse um berloque. Os três autores perceberam bem que em dado momento é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência. Escreveu Shakespeare no Acto IV do Rei Lear – É uma infelicidade da época que os loucos guiem os cegos.
Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de la Mancha que até hoje perdura entre nós como o nosso irmão ensandecido. Por seu lado, Camões, no corpo de Os Lusíadas não falou da loucura, mas a vida haveria de lhe demonstrar que as páginas escritas por si mesmo haviam sido proféticas em resultado dela, a insanidade. O desastre de Alcácer Quibir, ocorrido em 1578, estava assinalado numa das últimas estrofes do canto X. Era a História, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela Literatura. No entanto, o fim de ciclo que neste caso aqui interessa não é mais uma transição localizada que diga apenas respeito a três reinos da Europa. Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global.
Porque nós, agora, somos outros, deslocamo-nos à velocidade dos meteoros, e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam pelo Espaço. Mas alguma coisa desse outro fim de ciclo que se seguiu ao tempo da Renascença malograda, relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a Terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque. E os cidadãos? São público que assiste a espectáculos em écrans de bolso. Por alguma razão os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas. É contra isso, e por isso, que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono.
5.
Por isso mesmo, também, vale a pena regressar a Lagos.
Sobre estes areais aconteceram momentos decisivos para o mundo. No início da Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. O Promontório e a silhueta do Infante austero que sonhou com achamento de ilhas e outros descobrimentos, como parte de uma guerra santa antiga, e tudo realizou a poder de persistência férrea e sagacidade empresarial, transformou-se numa figura de referência como criador de futuros. À sua figura anda associado um sonho que se realizou e depois se entornou pela Terra inteira, e a lenda coloca-o a meditar em Sagres. Numa referência um tanto imprecisa mas que permite a sua evocação, Sophia escreveu – Ali vimos a veemência do visível/ O aparecer total exposto inteiro/E aquilo que nem sequer ousáramos sonhar/Era o verdadeiro.
Esta ideia de que na mente do Infante se processou uma epifania anda-lhe associada enquanto mentor de uma equipa, mais ou menos informal, que teve a capacidade de motivar e dirigir. Sagres passou assim para a História e para a mitologia como o lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o Mundo. Mas existe uma outra perspectiva, como é sabido, e hoje em dia, o discurso público que prevalece é sem dúvida sobre o pecado dos Descobrimentos não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora.
É verdade que a deslocação colectiva que permitiu estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes, e o encontro entre povos, obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na actualidade. É preciso sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um processo de dominação cruel tão antigo quanto a Humanidade, o que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade. E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo de escravização longo e doloroso. Lagos, precisamente, oferece às populações actuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico. Fá-lo com o sentido justo da reposição da verdade, e do remorso, pelo facto de aqui se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, com polos de abastecimento nas Costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX.
6.
Lagos expõe a memória desse remorso. Mostra como num dia de Agosto de calor tórrido de 1444, aqui desembarcaram 235 indivíduos raptados nas costas da Mauritânia, e como foram repartidos e por quem. Alguém que muito prezamos encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o seu quinhão de 46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o Infante Dom Henrique. Lagos não se furta a expor essa verdade histórica. Lagos também mostra o local onde depois, em levas sucessivas, iriam ser mercadejados os escravos. E mais recentemente relata-se como eram atirados ao lixo, quando morriam, sem um pano a envolver os corpos. Até agora foram retirados desse monturo os restos mortais de 158 indivíduos de etnia banta. Lagos mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez por isso estejamos aqui no Dia de hoje.
Aliás, a Unesco criou a Rota do Escravo, e inscreveu Lagos na Rota da Escravatura para que saibamos como os seres humanos procedem uns com os outros, mesmo quando se fundamentam em religiões fundadas sobre os princípios do Amor e sob a Lei dos Direitos Humanos. Lagos mostra esse filme e faz-se parente de quem escreveu na porta de um lugar de extermínio moderno o pedido solene – “Homens não se matem uns aos outros”.
7.
É verdade que só conhecemos o que sucedeu naquele dia 8 de Agosto de 1444 porque o cronista do Infante Dom Henrique o narrou. Eanes Gomes de Zurara não conseguiu evitar um sentimento de compaixão e comentou, de forma comovida, como a chegada e a partilhas dos escravos era cruel. Felizmente que dispomos dessa página da Crónica dos Feitos da Guiné para termos a certeza de que havia quem não achasse justo semelhante degradação e o dissesse. Aliás, sabemos que sempre houve quem repudiasse por completo a prática e o teorizasse. Numa das paredes de um dos museus de Lagos está escrito o testemunho de um autor quinhentista que denuncia a injustiça – “… eles não nos ofendem, não nos devem, nem temos justa causa para lhes fazer guerra, e sem justa guerra, não os podemos cativar nem comprar”.
O que significa que Lagos, a cidade dos sonhos do Infante, de que Sagres é a metáfora, passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros. Esta tornou-se, pois, uma cidade contra a indiferença. É uma luta nossa, contemporânea. Em Lagos, hoje em dia, está presente, de outro modo, a mensagem do cartoon de Simon Kneebone datado de 2014 que tem corrido mundo – A cena é nossa contemporânea, passa-se no mar. Num navio enorme, aparelhado com armas defensivas, no alto da torre está um tripulante que avista ao longe uma barca frágil, rasa, carregada de migrantes. O tripulante da grande embarcação pergunta – De onde vêm vocês? Da lancha apinhada alguém responde – Vimos da Terra. Sugiro que os jovens portugueses, descendentes de cavadores braçais, marujos, marinheiros, netos de emigrantes que partiram descalços à procura de trabalho, imprimam este cartoon nas camisas quando vão ao mar.
8.
Consta que em pleno século XVII, dez por cento da população portuguesa teria origem africana. Essa população não nos tinha invadido, os portugueses os tinham trazido arrastados. E nos miscigenámos. O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro, a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e de migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizava, filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.
A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos, nos dias de hoje, um pouco por toda a parte, agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte. A pergunta é esta – Quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos, e os pilares de relação de inteligência homem/máquina entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um ser humano?
9.
Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.
Regresso à sua obra para procurar entender que conceito tinha o poeta sobre o que era um ser humano. Sobre si mesmo, toda a sua obra o revela como vítima da perseguição de todas as potestades conjugados. A sua obra lírica é uma resposta a esse abandono essencial. Em conformidade com essa mesma ideia, ao terminar o Canto I de Os Lusíadas”, Camões define o ser humano como um ente perseguido pelos elementos – “Onde pode acolher-se um fraco humano,/ onde terá segura a curta vida,/Que não se arme e se indigne o Céu sereno/Contra um bicho da Terra tão pequeno?”
Nestes versos se reconhece o conceito renascentista, o da grandeza da solidão do ser humano e a sua luta estoica centrada na confiança em si mesmo. Mas, na prática, essa atitude representava uma orfandade orgulhosa, que facilmente a fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da vida, o corpo de Camões só teve um lençol, e oferecido, a separá-lo da terra. A sorte do seu corpo não difere muito daquela que mereceram os corpos dos escravos de Lagos. Mas, entretanto, no século XIX, o direito à protecção beneficiada pelo estado começou a emergir, criaram-se documentos essenciais tendo em vista o respeito pelos cidadãos. Depois da duas Guerras Mundiais do século XX, foi redigida e aprovada a Carta dos Direitos Humanos, e durante algumas décadas foi tentado implantá-los como código de referência um pouco por todo o mundo. Só que ultimamente regride-se a cada dia que passa.
O conceito da representatividade respeitável da figura de chefe de estado oriundo do povo grego, princípio que sustentou a trama purificadora das tragédias clássicas, a que se juntou, depois, o princípio da exemplaridade colhida dos Evangelhos, essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos, está a ser subvertida. A cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende. Um chefe de estado de uma grande potência durante um comício pôde dizer – Adoro-vos! Adoro os pouco instruídos! E os pouco instruídos aplaudiram. Pergunto, pois, qual é o conceito hoje em dia do ser humano? Como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais?
Hoje, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, não será legítimo perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?
Nós, portugueses, não somos ricos, somos pobres e injustos, mas ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura, e terminámos com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos, e com eles estabelecemos novas alianças, e criámos uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa, e fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma União de países livres e prósperos que desejam a paz. Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força.
Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino, porque, se alguma coisa tenho em comum com ele, que foi génio, e eu não sou, é a certeza de que partilho da sua ideia de que um ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa.
Muito obrigada.
Lagos, 10 de Junho, 2025.
Lídia Jorge
A agonia dos puros
Os discursos do 10 de Junho foram sobre o passado e isso é, como disse Francisco Mendes da Silva no debate semanal que tenho com ele, sinal de bloqueio. Só que os discursos políticos sobre o passado nunca são bem sobre o passado. Por isso a história, eternamente reescrita, sempre foi disputada. O discurso de Lídia Jorge foi sobre o que queremos ser. É isso a identidade de um povo: uma autorrepresentação construída com base em factos, mitos, lendas e heróis que projetam os nossos desejos e frustrações como comunidade. A nossa identidade, moldada por décadas de propaganda lusotropicalista, baseava-se numa ideia de miscigenação bondosa, determinada por um colonialismo excecional. Apesar de o tráfico negreiro transatlântico ser um dos nossos maiores legados à humanidade, conseguimos fazer da preservação deste mito, que desafia a nossa história e a forma como os outros povos olham para ela, uma espécie de compromisso entre o passado colonial autoritário e o presente democrático. Serviu-nos quando estávamos ocupados a construir a democracia e um país mais moderno.
Com a chegada a Portugal dos debates do mundo, ajudada por uma nova geração de intelectuais afrodescendentes, fomos obrigados a sair do confortável casulo das nossas fantasias. E com a polarização que estes novos debates causaram, nascida de décadas de silêncio e de traumas adiados (e, reconheço, de alguma importação intelectual das causas identitárias), o nacionalismo português tornou-se menos idiossincrático. Ou talvez, sendo mais justo, se tenha despido das vestes lusotropicalistas de que a pequena nação imperial precisava, mostrando a sua nudez étnica e racista. É natural que assim seja. A função deste nacionalismo já não é justificar um império anacrónico e preso por arames. Não é justificar a nossa expansão imperial, mas sim uma vontade de fechamento atávico às migrações. São momentos diferentes na nossa história e na história da Europa. Ascensão e queda. Já não estamos a fazer um ajuste de contas com o passado para seguirmos em frente. Já nem sequer é um debate nosso, em que a particular fraqueza da metrópole obrigava a alguma ginástica simbólica. O papel deste nacionalismo nativista já não é o de justificar uma força centrífuga imperial, mas o de impedir uma força centrípeta migratória. É o de saber como vamos lidar com o aumento intenso de fluxos humanos, que as alterações climáticas, a proximidade imaterial de tudo e o enorme desequilíbrio demográfico e económico entre Sul e Norte globais vão continuar a acentuar. Só abrandará se a Europa e os EUA perderem relevância e atratividade. O recuo civilizacional a que assistimos no Ocidente pode tratar disso.
A extrema-direita tem um plano e o centro político segue-o aos tropeções: fechar portas e janelas. Para quem julgava que o debate alguma vez tivesse sido sobre condições para integrar, André Ventura deu a resposta, recorrendo às mentiras habituais e declarando guerra ao mais poderoso instrumento de integração dos imigrantes: o reagrupamento familiar. É natural que o faça. A integração reduz o conflito de que os autoritários dependem para reforçarem o seu poder. Basta acompanhar o que se passa na Califórnia para perceber como a perseguição aos imigrantes serve para alimentar o caos, justificar o clima de exceção, aplacar todos os contrapoderes e reforçar os instrumentos repressivos que eternizam os autoritários no poder. Fechar fronteiras não serve apenas para deixar os imigrantes de fora. Serve para prender os nacionais cá dentro. A ilusão dos democratas irrefletidos é pensarem que esta caminhada vai parar quando eles decidirem.
Claro que a alternativa não é suprimir as fronteiras. Como não deveria ser para os mercados financeiros ou para o comércio, mas isso é mais difícil de explicar aos liberais. A resposta começa pela síntese que Lídia Jorge tentou fazer na projeção da nossa identidade, rompendo, sem esconder nada, com a clivagem entre “nós” e “eles”: “Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou.” Somos, enfim, fruto das nossas glórias e crimes que nos fazem, sem qualquer pureza, humanos. Chegar a esta conclusão é condição para uma resposta moralmente aceitável ao inevitável aumento do fluxo migratório. O realismo não se resume à evidência de que quase tudo se regula. É saber que se nos fecharmos ao mundo, em pânico, seremos nós os prisioneiros. Olhem para a caminhada autoritária que se iniciou na Califórnia.
"A agonia dos puros", Daniel Oliveira. Expresso, 12/06/2025
CANÇÃO DO MESTIÇO
Mestiço!
Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.
Mestiço!
E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição
como 1 e 1 são 2.
Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso: — mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.
Ah! Mas eu não me danei…
e muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor!...
Mestiço !
Quando amo a branca sou
branco
Quando amo a negra sou
negro. Pois é…
Francisco
José Tenreiro, Ilha de Nome Santo. Tipografia da Atlântida de Coimbra, 1942.
Série Novo Cancioneiro
Carlos Conde (N. 22
novembro, 1901 - M. 13 julho, 1981)
Carlos Augusto Conde, filho de Maria
Antónia da Silva Conde e de Manuel José Conde, nasceu no dia 22 de Novembro de
1901 na povoação do Monte, Murtosa, distrito de Aveiro. Casou-se com Laura dos
Santos em 18 de Setembro de 1936 e desse casamento nasceram três filhas,
Noémia, Maria de Lourdes e Flora. Mais tarde mudam-se para Lisboa, fixando-se
na Praça das Amoreiras e nestes primeiros anos de transição para a cidade, Carlos
Conde emprega-se como chefe de escritório na firma F.H. de Oliveira.
Se antes deste seu percurso profissional,
Carlos Conde já escrevia os primeiros versos, a história do fado veio a
consagrá-lo como destacado poeta popular, autor de inúmeros
repertórios de fados e textos de cegadas, musicados ao longo das décadas de 20
e 30 do século passado. Quando questionado pela revista “ABC” sobre as
temáticas dos seus versos dirá: “O amor, as mulheres, o campo. Adoro as flores,
as águas claras, o sol, a luz, a natureza. Tudo o que tenha vida, que tenha
alma.” (cf. “Revista ABC”, 23 de Janeiro de 1931). Dono de um talento imenso, a
sua pena fixou o imaginário de Lisboa, descrevendo costumes, personalidades,
recantos, becos, vielas, festividades e outros temas do quotidiano da capital.
Em 1924 o jornal “A Alma de Portugal”
dava destaque a Carlos Conde, caracterizando o jovem poeta: “Carlos Conde
pertence a essa plêiade de novos que nos últimos tempos se tem evidenciado, na
sua bagagem literária encontram-se produções de merecimento (…) Carlos Conde
não sendo contudo um consagrado é no entanto um novel com inspiração, a sua
obra encontra-se espalhada nas mãos dos mais competentíssimos cantadores e
dispersa nas colunas dos inúmeros jornaes onde tem colaborado com proficiente
estudo.” (cf. “A Alma de Portugal”, 1ª Quinz. de Setembro de 1924). A
notoriedade de Carlos Conde foi muitas vezes referenciada pelos periódicos de
fado, que surgiram ao longo das décadas de 20, 30 e 40 do passado século,
fulcrais na legitimação e divulgação desta expressão musical.
Dada a impossibilidade de nomearmos todos
os textos de cegadas que Carlos Conde escreveu destacamos os títulos: “O Crime
Daquela Noite” (1946) com música de Alfredo Silva, “Homem ao Mar” (1950) música
de Casimiro Ramos, “Quatro Contos a Mais” (1959), música de Albertino Vilar,
entre muitos outros textos. Estas e outras cegadas tinham lugar nas
colectividades, clubes e festas que povoavam a cidade de Lisboa e arredores.
A paixão pela escrita leva Carlos Conde a
participar e a concorrer em numerosos concursos poéticos alcançando, na maioria
das vezes, os primeiros prémios e menções honrosas. Destaque para a vitória
alcançada, em 1966, com a letra para o “Hino da Força Aérea”, reforçando os
méritos entretanto já atribuídos ao poeta ao longo de outras décadas.
Profundamente acarinhado pelo universo do
fado, os seus poemas foram cantados na voz dos grandes vultos do fado : Ada de
Castro, Adelina Ramos, Amália Rodrigues, Argentina Santos, Ercília Costa,
Fernanda Maria, Lucília do Carmo, Maria Amélia Proença, Maria da Fé, Alfredo
Duarte Júnior, Alfredo Marceneiro, Carlos do Carmo, Fernando
Maurício, Gabino Ferreira, João Ferreira Rosa, Raul Pereira, Rodrigo, Vítor
Duarte, entre muitos outros.
Carlos Conde foi autor de centenas de
letras de Fado, e revelam-no como um dos expoentes máximo na área. Esses fados,
traduziram-se em verdadeiros sucessos nas vozes de muitos fadistas: “A mulher
que já foi tua”, “Baile dos Quintalinhos”, “Bairros de Lisboa”, “Um resto de
Mouraria”, “O Fado da Bica”, “Não sou ciumenta”, “Rapsódia de fado antigo”,
“Trem desmantelado”, “Não passes com ela à minha rua”, “Fins do século
passado”, entre muitos outros…
Paralelamente à sua projecção como poeta,
Carlos Conde foi alvo de um grande número de homenagens, com especial destaque
para o almoço comemorativo do seu 50º aniversário, e que teve lugar no dia 22
Novembro de 1951, na Adega Mesquita, com a presença de Francisco Radamanto,
Felipe Pinto, Dr. Amaro de Almeida, Amália Rodrigues, Teresa Nunes, Alfredo
Marceneiro, entre outros. Outras festas de homenagens ocorreram contando com a
presença de muitos nomes do universo artístico da rádio, do teatro e do fado e
que souberam enaltecer a grandiosidade da sua obra poética e humana.
Vítima de um trágico acidente de viação,
Carlos Conde viria a falecer em Julho de 1981.
Em 2001 a Câmara Municipal de Lisboa,
presta ao poeta uma última homenagem, ao atribuir o seu nome a uma das artérias
da cidade situada na zona de Campolide.
Paulo Conde, neto de Carlos Conde, lançou
em Setembro de 2001 o livro “Fado, Vida e Obra do Poeta Carlos Conde”.
Tratando-se de um inesgotável tributo ao seu avô, Paulo Conde revê toda a vida
e consequente obra literária daquele que é hoje considerado como uma referência
na poesia de fado.
Fontes: “Alma de Portugal”, 1ª
Quinzena de Setembro de 1924. “A Canção do Povo”, 26 de Setembro de 1926.
“Guitarra de Portugal2, 17 de Abril de 1926. “Guitarra de Portugal”, 10 de
Agosto de 1928. “ABC”, 23 de Janeiro de 1931. “Guitarra de Portugal”, 15 de
Março de 1948. Cartaz promocional da “Festa de Homenagem ao poeta popular
Carlos Conde”, 29 de Março de 1958. “República”, 21 de Junho de 1966. Conde,
Paulo (2001) “Fado, Vida e Obra do Poeta Carlos Conde”, Lisboa, Garrido
Editores. “Correio da Murtosa”, 28 de Novembro de 2007. Adaptação de biografia
gentilmente cedida por Paulo Conde.