Eu hei de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.
Hei de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu Calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.
Hei de abrir-lhe o meu intimo sacrário
E desvendar a vida, o mundo, o gozo,1
Como um velho filósofo lendário.
Hei de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei de olhá-la dum modo tão nervoso
Que ela há de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há de chorar, chorar enternecida!
E eu hei de, então, soltar uma risada...
Cesário Verde, Lisboa, Diário
da Tarde, 12-03-1874
In: Obra Completa de
Cesário Verde - 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão.
Lisboa, Livros Horizonte, 1983 (Coleção Horizonte Poesia, n.º 20)
[1] Nota do editor: Na primitiva publicação: «E,
desvendar a vida, o mundo, o gozo,».
Talvez já te
não lembres, triste Helena,
Dos passeios que dávamos sozinhos,
À tardinha, naquela terra amena,
No tempo da colheita dos bons vinhos.
Talvez já te não lembres, pesarosa,
Da casinha caiada em que morámos,
Nem do adro da ermida silenciosa,
Onde nós tantas vezes conversamos.
Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo só comigo,
Que te osculei a boca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.
Que fugiste comigo da Babel,
Mulher como não há nem na Circássia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regámos com prantos uma acácia.
Talvez já te não lembres com desgosto
Daquelas brancas noites de mistério,
Em que a Lua sorria no teu rosto
E nas lajes campais do cemitério.
Talvez já se apagassem as miragens
Do tempo em que eu vivia nos teus seios,
Quando as aves cantando entre as ramagens
O teu nome diziam nos gorjeios.
Quando, à brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabelos de âmbar, desmanchados,
Se prendiam nas folhas dum acanto,
Ou nos bicos agrestes dos silvados.
E eu ia desprendê-los, como um pajem
Que a cauda solevasse aos teus vestidos,
E ouvia murmurar à doce aragem
Uns delírios de amor, entristecidos.
Quando eu via, invejoso, mas sem queixas,
Pousarem borboletas doudejantes
Nas tuas formosíssimas madeixas,
Daquela cor das messes lourejantes.
E no pomar, nós dois, ombro com ombro,
Caminhávamos sós e de mãos dadas,
Beijando os nossos rostos sem assombro,
E colorindo as faces desbotadas.
Quando, Helena, bebíamos, curvados,
As águas nos ribeiros remansosos,
E, nas sombras, olhando os céus amados
Contávamos os astros luminosos.
Quando, uma noite, em êxtases caímos
Ao sentir o chorar dalgumas fontes,
E os cânticos das rãs que sobre os limos
Quebravam a solidão dos altos montes.
E assentados nos rudes escabelos,
Sob os arcos de murta e sobre as relvas,
Longamente sonhamos sonhos belos,
Sentindo a fresquidão das verdes selvas.
Quando ao nascer da aurora, unidos ambos
Num amor grande como um mar sem praias
Ouvíamos os meigos ditirambos
Que os rouxinóis teciam nas olaias.
E, afastados da aldeia e dos casais,
Eu contigo, abraçado como as heras,
Escondidos nas ondas dos trigais.
Devolvia-te os beijos que me deras.
Quando, se havia lama no caminho,
Eu te levava ao colo sobre a greda,
E o teu corpo nevado como arminho
Pesava menos que um papel de seda.
*
Talvez já te esquecesses dos poemetos,
Revoltos como os bailes do Casino,
E daqueles byrónicos sonetos
Que eu gravei no teu peito alabastrino.
De tudo certamente te esqueceste,
Porque tudo no mundo morre e muda,
E agora és triste e só como um cipreste,
E como a campa jazes fria e muda.
Esqueceste-te, sim, meu sonho querido,
Que o nosso belo e lúcido passado
Foi um único abraço comprimido,
Foi um beijo, por meses, prolongado.
E foste sepultar-te, ó serafim,
No claustro das Fiéis emparedadas,
Escondeste o teu rosto de marfim
No véu negro das freiras resignadas.
E eu passo tão calado como a Morte
Nesta velha cidade tão sombria,
Chorando aflitamente a minha sorte
E prelibando o cálix da agonia.
E, tristíssima Helena, com verdade,
Se pudera na terra achar suplícios,
Eu também me faria gordo frade
E cobriria a carne de cilícios.
Cesário Verde
Porto, Diário da Tarde,
14 de fevereiro de 1874
Edição utilizada: “II - Poesias
não incluídas em O Livro de Cesário Verde” in Obra completa de
Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão.
Lisboa, Livros Horizonte, 1983, pp. 150-154
***
Esta poesia, amputada de 9
quadras, que se assinalam aqui, foi publicada em O Livro de Cesário Verde com
o título «Setentrional». Acontece que todas as quadras dadas a lume por Silva
Pinto - e só essas - haviam sido já transcritas num artigo da autoria do
organizador de O Livro sob o título de «Cesário Verde», estampado em Diário
da Tarde (20-03-1874), ou seja, pouco mais de um mês após a publicação integral
dessa poesia no mesmo jornal. Em suma: em 14 de fevere1ro de 1874, Cesário
publica a poesia Cantos da Tristeza, tal como agora se reproduz; em 20
de março do mesmo ano, sem qualquer menção a esse respeito, Silva Pinto
exemplifica a poesia do seu amigo com as mesmíssimas quadras que 13 anos depois
haveriam de aparecer em O Livro.
Nota de Joel Serrão, na
edição de Obra completa de Cesário Verde. Lisboa, Livros Horizonte, 1983
(4.ª ed.), p. 150.
Helena de Tróia, Robert Wise (1956)
Numa perspetiva ainda
romântica, Cesário vê no campo uma fonte de prazer único: o campo permite a
aproximação entre dois seres.
A cidade, em
contrapartida, é vista como um espaço de Morte, de Sofrimento, de Solidão
calada.
Aliás, esta dicotomia
campo/cidade é acentuada pelo contraste entre o tempo presente (o tempo da narrativa
ou da escrita do poema) e o passado (o tempo recordado no poema): o presente é
triste, o passado foi feliz, Dirigindo-se à mulher, o sujeito poético evoca o
tempo feliz em que eta fugiu com ele da "Babel" e viveu só com ele,
no campo. A fuga da cidade está, assim, imediatamente associada à felicidade
amorosa passada, vivida no campo e recordada no poema na imagística tradicional
do campo romântico: "brancas noites de mistério", "doce
aragem", "borboletas doudejantes", "os meigos ditirambos /
Que os rouxinóis teciam nas olaias".
No campo, o sujeito
poético e a amada estiveram "unidos ambos / Num amor grande como um mar
sem praias". Esta imagem, que caracteriza a experiência do amor, em termos
espaciais, como uma ausência de limites, sugere que, ao deixarem a cidade, os
amantes escaparam ao confinamento que a cidade significa e que, ao fugirem para
o campo, entraram num espaço intemporal, livre de todos os confinamentos.
Mas o sujeito poético regressou
á cidade e a amada entrou num equivalente "claustro das Fiéis
emparedadas". E nota-se um paralelismo entre a situação dos dois:
- a amada é emparedada num
claustro; o eu regressa ao aglomerado de paredes que é a cidade;
- ela sepultou-se viva;
ele anda na cidade como um morto;
- ela escondeu a face num
véu negro; ele passa numa cidade que é sombria.
Na última quadra, há uma
súbita viragem de tom: a imagem irónica de um frade. Esta abrupta mudança é
característica da poesia da juventude de Cesário, onde a ironia é usada como um
travão ao sentimentalismo romântico. Traia-se de um desejo de autocorreção emocional
num poema cujo tom é predominantemente romântico.
Nota: Veja-se que ao
contrapor-se cidade e campo não se está a contrapor duas realidades objetivas.
Trata-se de dois espaços vividos subjetivamente porque relacionados com
experiências individuais subjetivas.
MACEDO, Helder. Nós:
uma leitura de Cesário Verde. 4.ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 1999
(adaptado)
Busto de Helena de Troia, Antonio Canova. Victoria and Albert Museum, Londres
O poema “Cantos da Tristeza”, também
conhecido n’ O Livro de Cesário Verdecom o
título de “Setentrional”, introduz a
dicotomia cidade-campo na poesia de Cesário. […]
A primeira quadra introduz a questão da solidão.
Apesar da possibilidade de a leitura considerar um monólogo dirigido ao Outro (no
caso a ‘triste Helena’), é uma rememoração que já se sabe ausente de
solidariedade. E esta questão repetir-se-á por diversas vezes: “Talvez já te
não lembres, triste Helena,” / “Talvez já te não lembres, pesarosa,” / “Talvez
já te esquecesses, ó bonina”, só para citar as três primeiras quadras. Das
vinte e duas quadras (considerando o poema na integra), oito delas tem,
literalmente, expressões que demonstram que o Outro já se esqueceu ou não se
lembra mais.
Este Outro, nomeado Helena por este Eu
reminiscente, é descrita como uma “Mulher como não há nem na Circássia”, de
“boca purpurina”, “cabelos de âmbar, desmanchados”. O aspeto da cor do cabelo é
repetido na quadra adiante: “Quando eu via, invejoso, mas sem queixas,/
Pousarem borboletas doudejantes/ Nas tuas formosíssimas madeixas,/ Daquela cor das
messes lourejantes”. Ela acompanha o Eu nesta fuga da Babel,70para o locus
amenus que o campo representa, descrito como “terra
amena”, de “ribeiros remansosos”, das “verdes selvas”, e no “tempo da colheita
dos bons vinhos”, do “tempo em que eu vivia nos teus seios/ quando as aves
cantando entre as ramagens/ O teu nome diziam nos gorjeios.” […]
Encarando-se então que tais imagens poéticas são
fugas não só da Babel-cidade, mas também desta Babel-homem, em direção à
conciliação com o Outro, tem-se o testemunho deste desconcerto duplo: ao
mergulhar em si, ele encontra não a saudade de um passado objetivamente real,
mas o devaneio que romantiza estas recordações, e ao mesmo tempo, coloca em
dúvida o caráter de tais lembranças enquanto ‘sinceras’.
Helena de Tróia, Anthony Frederick Augustus Sandys, 1866 (Walker Art Gallery, Liverpool, Reino Unido)
A última estrofe escrita
no tempo passado [estrofe XX], declara a razão da separação dos amantes. A
mulher entrou num equivalente claustro das Fiéis emparedadas e escondendo o seu
rosto de marfim/No véu negro acabou por ser sepultada. Podemos ver também um
certo simbolismo no seu desaparecimento. Ela era uma flor, bonina, que passou
com o seu amado até os momentos da brisa outoniça, mas é certo que uma flor
dessas não é capaz de sobreviver o tempo frio de inverno, e assim, é
predestinada a desaparecer. Neste sentido o véu negro pode implicar uma
mortalha mas também uma capa de terra que sepulta as flores mortas. É preciso acrescentar
que podemos sentir uma certa passividade desta mulher ou pelo menos resignação com
o seu destino.
Os amantes fugiram juntos
da cidade mas ele sozinho regressou ao lugar ausente de amor e neste
paralelismo metafórico do poema podemos observar que “a amante é emparedada num
claustro, o poeta regressa ao aglomerado de paredes que é a cidade; ela sepultou-se
viva, ele anda na cidade como um morto; ela escondeu a face num véu negro, a cidade
onde ele passa é sombria; finalmente, a resignação religiosa atribuída à amante
corresponde ao não menos religioso cálix da agonia prelibado pelo poeta na
cidade.” (MACEDO, Helder: Nós uma leitura de Cesário Verde. Editorial
Presença, Lisboa, 1999, p. 52).
Na última estrofe o eu
lírico confessa que se pudera na terra achar suplícios, também se faria gordo
frade e podemos dizer que, embora ele passasse pela cidade como a Morte, acha
um certo otimismo na vida que lhe impede ultrapassar as paredes da cidade, para
as paredes de um claustro. Ele não se resigna com o seu destino como o fez ela.
Fugindo ao sentimentalismo, termina o poema virando a última estrofe para a
ironia. Segundo Helder Macedo, este procedimento é “uma táctica de choque que
sacode o leitor desprevenidamente embalado no sentimentalismo fácil.” (ibidem,
p. 54). Podemos dizer que já neste poema imaturo, Cesário sente uma necessidade
de se afastar do Romantismo. A última quadra representa uma “autonegação de uma
poesia sentimental por um desfecho de farsa.” (SACRAMENTO, Mario: Lírica e
dialectica em Cesário Verde– folheto. Separata dos nº 163, 165 e
166 da revista Vértice, p. 4).
Segundo Joel Serrão este
poema é “a evocação de um amor quase infantil desenrolado no ambiente
campesino. Os adolescentes teriam vivido uma experiência de que os ribeiros
remansosos, os astros luminosos, o chorar das fontes, os cânticos das rãs, a fresquidão
das verdes selvas comparticiparam largamente.” (SERRÃO, Joel: Interpretação, poesias
dispersas e cartas. Editorial Minerva, Lisboa, 1957, p. 53). Esta opinião pode ser sublinhada
não só pelo facto da idade do poeta, mas também por ele não ter feito neste
poema nenhuma referência às qualidades pessoais da mulher mas, pelo contrário,
há várias indicações às características físicas dela. A bonina “não tem
personalidade verdadeira, somente uma identidade física, aliás estilizada e
cheia de encanto.” (TORRES,
Alexandre Pinheiro: A paleta de Cesário Verde, Estudos de literatura
portuguesa. Editorial Caminho, Lisboa, 2003, p. 61)
Neste poema, a cidade está
presente só na medida em que evoca uma infelicidade que se opõe à felicidade
dos momentos de campo que o poeta revive. O poeta remete-nos para uma cidade
que ainda não é especificamente Lisboa, mas sim uma cidade moderna qualquer. Ao
nomeá-la Babel, Cesário parece ver o campo como espaço positivo em contraste
com a cidade, vista como lugar de vício ou de corrupção.
Olga
Poláková,Mulher na poesia de Cesário Verde. Brno, Faculdade de Filosofia da
Universidade de Masaryk - Instituto de Línguas e Literaturas Românicas, 2008
Poderá também gostar de:
“Para uma
síntese da obra de Cesário Verde” - apresentação crítica, seleção, notas e
sugestões para análise literária da lírica de Cesário Verde, por José Carreiro.
In: Folha de Poesia, 2018-04-22. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/cesario-verde.html
“Cantos da Tristeza / Setentrional,
de Cesário Verde” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 03-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/cantos-da-tristeza-setentrional-de.html
Milady, é perigoso
contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhes as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes1complicadas!…
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete2, fere agudamente,
E afaga como o pelo dum regalo3!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria4 mostrava aos cortesãos.
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
Cesário
Verde
Coimbra,
Mosaico, n.º 6, fevereiro de 1875
Edição utilizada: Obra
completa de Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por
Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983
__________
1Toilettes: vestuário em sentido amplo, que inclui, além de roupa,
maquiagem, penteado e outros adereços pessoais.
2 Florete:
arma branca, composta de cabo e de uma haste metálica, prismática e
pontiaguda, própria para esgrima
3Regalo: agasalho para as mãos, geralmente feito de pele.
4 Ana de Áustria:
Infanta de Espanha (1601-1666), filha do rei Felipe III, depois
rainha da Franca pelo casamento com Luís XIII e regente nos anos da menoridade
do seu filho, o futuro Luís XIV.
https://archive.vogue.com/issue/19500401
Análise do poema “Deslumbramentos”, d’O livro do
Cesário Verde – tema: mulher
Silva Pinto
abriu com este poema O Livro de Cesário Verde o que não foi, segundo vários
autores, um ato muito razoável, por se tratar de um dos mais complexos poemas
da arte de Cesário.
O tema
central deste poema é a Milady perseguida repetida e despercebidamente
pelo sujeito lírico para quem, ao vê-la, representa um certo perigo. Esta dama
fatal estonteia, atrai mas também fascina e assombra o
sujeito lírico que lhe segue os passos e é por ela tratado com humilhante
indiferença. Helder Macedo cita no seu livro Mario Praz que resumidamente diz
que: “a função da chama que atrai e queima é exercida, na primeira metade do
século XIX, pelo Homem Fatal (o herói byroniano), na segunda metade pela Mulher
Fatal; a borboleta destinada ao sacrifício é, no primeiro caso, a mulher e, no
segundo, o homem. O macho, que inicialmente tende para o sadismo, passa a
tender, no fim do século, para o masoquismo.” (PRAZ, Mario: The
Romantic Agony. p. 206 in: MACEDO, Helder: Nós uma leitura de Cesário
Verde. Editorial Presença, Lisboa, 1999, p. 81).
Milady, é
perigoso contemplá-la,
Quando passa,
aromática e normal,
Com seu tipo tão
nobre e tão de sala,
Com seus gestos
de neve e de metal.
(estrofe 1)
A mulher
retratada pode ser lida como uma alegoria a cidade moderna: uma mulher distante,
frigidamente deslumbrante que caminha na multidão, e perto do sujeito lírico.
“A cidade moderna, mais conhecida como a grande dama fatal, é completamente
indiferente aos apelos de seus habitantes. Ela, ao mesmo tempo em que afaga e
impressiona, fere como um florete; é ambígua e civilizadamente britânica.” (MAIA,
Maria Claudia Gonçalves: A trama da modernidade em Cesário Verde. Dissertação
de mestrado, PUC do Rio de Janeiro, p. 71).
Na primeira
estrofe a Milady é caracterizada através de qualidades frigidamente desumanas,
como mulher perigosa, com gestos de neve e de metal, o que entra em
choque com a palavra normal. Helder Macedo explica bem porque este ser
artificial é descrito como normal: “A implicação é que a Milady, como
produto típico da cidade, representa a norma que é a cidade. O uso
surpreendente do epíteto normal sugere assim uma atitude crítica em relação à
estrutura social numa época em que a ordem urbana e industrial estava a suplantar
a ordem rural e em que o artificial começava a dominar o natural.” (MACEDO, Helder: Nós
uma leitura de Cesário Verde. Editorial Presença, Lisboa, 1999, p. 81).
A Milady,
torna-se, portanto, um novo produto da cidade, representando uma nova norma.
Podemos observar na descrição física da Milady que ela tem um vestido
tão refinado que dá a sensação de toilettes complicadas, usando um
perfume que deixa ao passar o seu cheiro no ar e com a sua postura pensativa e
nobre, de brancura e luminosidade de pele quase transparente, atrai o eu lírico
completamente.
Sem que nisso a
desgoste ou desenfade,
Quantas vezes,
seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com
real solenidade,
Ir impondo
toilettes complicadas!...
Em si tudo me
atrai como um tesouro:
O seu ar
pensativo e senhoril,
A sua voz que
tem um timbre de ouro
E o seu nevado e
lúcido perfil!
(estrofes 2
- 3)
Ela é a
representante da Moda feminina, é uma mulher Britânica, de aspeto,
postura e comportamento inglês. Inglaterra, neste sentido, é o símbolo da
potência e do progresso industrial e, tal como os portugueses se ajoelham aos
seus pés, Cesário ajoelha-se aos pés da Milady. O comportamento e atuação
femininos são marcados pela real solenidade, e, com seus gestos de
neve e de metal, causa sensação de frio, distanciamento e até a Morte.
A Moda é outro signo que representa a ideia da
cidade moderna inscrita neste poema. Ela é representada pelas toilettes
complicadas, o que nos remete para a ideia de beleza artificial citadina,
que produz mulheres atraentes. O aspeto da mulher transforma-se tal como o aspeto
dos prédios, parques, praças e monumentos que enfeitam a cidade. Referindo-se à
Moda que surge nos centros urbanos e que é seguida pelas mulheres que neles
vivem, Charles Baudelaire faz a seguinte afirmação, defendendo este artifício
que tempera a beleza:
“A mulher
é, sem dúvida, uma luz, um olhar, um convite à felicidade, às vezes uma palavra,
mas ela é sobretudo uma harmonia geral, não somente no seu porte e no movimento
de seus membros, mas também nas musselinas, nas gazes, nas amplas e
reverberantes nuvens de tecidos com que se envolve, que são como que os
atributos e o pedestal de sua divindade; no metal e no mineral que lhe
serpenteiam os braços e o pescoço, que acrescentam suas centelhas ao fogo de
seus olhares ou tilintam delicadamente em suas orelhas.” (Baudelaire,
Ch. (2007): Sobre a modernidade, São Paulo: Editora Paz e Terra, p. 58 -
59).
Para
Baudelaire, a mulher teria mesmo o dever de servir-se da Moda. Segundo
ele, a mulher tem esse direito e cumpre até uma espécie de dever ao
arranjar-se. Como um ídolo terrível e incomunicável, a mulher deve “dourar-se
para ser adorada” (Baudelaire). Essa mulher atraente que subjuga corações e
surpreende os espíritos, também passeia nas ruas de Lisboa, neste poema, o tipo
da mulher é Milady. Além disso é importante acrescentar que usando as
maiúsculas, Cesário relaciona a Moda com a Morte, o que significa
que essa artificial beleza citadina gera uma emoção destrutiva.
Ah! Como me
estonteia e me fascina...
E é, na graça
distinta do seu porte,
Como a Moda
supérflua e feminina,
E tão alta e
serena como a Morte!
(estrofe 4)
Ainda por
cima, essa Grande dama fatal caminha sempre sozinha, com
firmeza e os seus sapatos com saltos produzem música no andar.
Mostra uma certa simbiose entre um arcanjo e um demónio e essa simbiose
reflete-se no seu olhar, que ao mesmo tempo acaricia e queima de maneira que
pode causar ferimentos.
Eu ontem
encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e
fazendo-me assombrar;
Grande dama
fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e
música no andar!
O seu olhar
possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um
demónio a iluminá-lo;
Como um florete,
fere agudamente,
E afaga como o pelo
dum regalo!
(estrofes 5
- 6)
O eu lírico
deseja humildemente beijar-lhe as mãos como se ela fosse a rainha de França, reagindo
com diplomacia e frialdade. Ela, sendo sempre sozinha e com
comportamento frio, só o gelo poderia ter por esposo:
Pois bem.
Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu
beijar-lhe as brancas mãos,
O modo
diplomático e orgulhoso
Que Ana de
Áustria mostrava aos cortesãos.
(estrofe 7)
O sujeito
lírico incita-a prosseguir com a mesma solenidade, sem sorrisos, dramática, cortante
mas também informa que tentará com o fogo que ela lhe está a atear, fundir
o ermo coração dela, como um brilhante.
E enfim prossiga
altiva como a Fama,
Sem sorrisos,
dramática, cortante;
Que eu procuro
fundir na minha chama
Seu ermo
coração, como um brilhante.
(estrofe 8)
A partir da
seguinte estrofe o tom humilde muda para um tom ameaçador. O eu lírico tenta
advertir a Milady sobre os povos humilhados que sempre se vingam dos bárbaros
reais e profetiza a essa flor do Luxo que um dia vai vê-la errar,
alucinada, e arrastando farrapos. O poeta identifica-se assim com os povos
humilhados. É preciso também indicar que o erotismo citadino é completamente
oposto ao amor ilimitado que é possível no campo. Nesta parte podemos encontrar
uma relação explícita entre a humilhação sexual do narrador e a humilhação social
do povo dominado por outro país estrangeiro, que em Portugal é Inglaterra que
tenta dominar o país para satisfazer os seus próprios interesses económicos. É
mesmo interessante como o narrador aceita a humilhação sexual e social, mas
quando a situação passa para as dimensões coletivas, surge a ideia de vingança
que, contra os bárbaros reais representados pelas miladies, se prepara
secretamente pela noite, pelos povos humilhados que aguçam os punhais.
Mas cuidado,
milady, não se afoite,
Que hão de acabar
os bárbaros reais,
E os povos
humilhados, pela noite,
Para a vingança
aguçam os punhais.
(estrofe 9)
Depois da vingança,
essa Milady, flor do Luxo ou rainha, não vai vestir mais com
real solenidade as toilettes complicadas mas os farrapos
errando alucinada pelas estradas, sob o céu azul. Segundo Maria Maia: “a
Moda, em sua conexão com a artificialidade, é unida à Morte e a elegância
transmutada em farrapos.” (MAIA, Maria Claudia Gonçalves: A trama da modernidade em
Cesário Verde. Dissertação de mestrado, PUC do Rio de Janeiro, p. 72).
E um dia, ó flor
do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do
Azul e as andorinhas,
Eu hei de ver
errar, alucinadas,
E arrastando
farrapos – as rainhas!
(estrofe
10)
Resumindo,
em Deslumbramentos podemos observar o olhar fascinado de um homem por
uma mulher estrangeira, uma inglesa, olhar que se humilha diante do esplendor e
snobismo e que poderia também ser interpretado como uma alegoria da relação
tensa entre Portugal e a Europa Civilizada. “No entanto, no decorrer da
leitura, o tom se modifica e a inferioridade inicial transforma-se em ameaça,
quase um desafio. Poderíamos dizer que o poema encena a tentativa bem sucedida
de explicar, metaforicamente, o poder exercido pela Inglaterra no imaginário
português, com a possibilidade de uma saída para a situação de opressão.” (ibidem,
p. 56).
É
interessante acrescentar como Cabral Martins trabalha com este poema
desvendando as contradições semânticas: estonteia x fascina, arcanjo x demónio,
fere x afaga, ermo coração x como um brilhante, toilettes complicadas x
farrapos, etc., que causam euforias e sentimentos de inquietação. Segundo ele,
o primeiro verso (Milady, é perigoso contemplá-la) “ganha a ressonância
perfeita de um sonho, pura intensidade, onde real e desejo coincidem num afeto que
se revela contraditório, ou ambivalente: ele implica deslumbramento (a projeção
de um ser de luz) e inquietação (ameaça e enigma).” (MARTINS, Cabral: Cesário
Verde ou a transformação do mundo. Editorial Comunicação, Lisboa, 1988, p.
60).
Olga
Poláková,Mulher na poesia de Cesário Verde. Brno, Faculdade de Filosofia da
Universidade de Masaryk - Instituto de Línguas e Literaturas Românicas, 2008
"Balconies in Lisbon", Vogue, 1950-04-01 https://archive.vogue.com/article/1950/04/01/balconies-in-lisbon
Quando os opostos se atraem
A milady do poema passa aromática e
normal. O primeiro adjetivo não causa estranhamento, mas o segundo não
é, digamos, de uso normal. Não conseguimos distinguir ao certo o uso desse
adjetivo nesse contexto. Pode querer se referir a certa naturalidade no caminhar
da passante, ou ainda regularidade, como se essa figura feminina representasse
a eterna passante do universo urbano. Esse adjetivo pode também designar um caminhar
regrado, compassado, seguidor de uma norma, isto é, um caminhar premeditado,
mas também sem sabermos até que ponto essa premeditação se contradiria com a
hipotética designação de naturalidade, se premeditação e certa naturalidade
podem conviver no universo do artifício. Por fim, se levarmos em consideração o
sentido de “moda” do substantivo “norma”, podemos associar o adjetivo “normal”
a esse universo, acentuando o tom de artifício e tornando a figura uma mulher
elegante. “Aromática” e “normal” são dois adjetivos que estão aproximados, um sendo
concreto e outro abstrato, respetivamente; havendo, assim, nessa aproximação de
termos, igualmente uma aproximação, um contato entre os planos objetivo e
subjetivo.
A milady tem gestos de neve e
de metal. “Gestos de neve” é uma expressão que não provoca estranhamento
porque a neve muitas vezes já fora utilizada para designar frieza, indiferença.
Por seu turno, a expressão “gestos de metal” já é mais complexa e incomum. Podem
ser gestos que provoquem magnetismo, deslumbramentos, como diz o título do poema.
Gestos que brilham, que chamam a atenção tanto pela sua premeditação, pelo seu cálculo
quanto pela sua naturalidade. O que torna o uso dessa expressão ainda mais inquietante
é que ela pode se opor à outra – “gestos de neve” – se lembrarmos que metal designa
elementos químicos que têm como característica, além do brilho e da
condutibilidade elétrica, a condutibilidade calorífica. O deslumbrado estaria,
então, submetido ao fascínio de gestos que, não obstante indiferentes, comovem,
aquecem a sensibilidade, inflamam os sentidos. No caso do erotismo de
humilhação, é precisamente a indiferença e frieza desses gestos a causa do “aquecimento”
dos sentidos e do fascínio. No contexto dessa espécie de erotismo a identificação
dessas expressões de sentido oposto pode ser melhor compreendida, assumindo uma
situação mais virulenta e comprometedora.
A milady tem também um nevado
e lúcido perfil. O adjetivo “nevado”, que pode ser associado aos gestos de
neve, pode também ser entendido como palidez de pele, havendo na aproximação
dos dois adjetivos novamente uma aproximação dos campos objetivo e subjetivo,
se pensarmos em “lúcido” não somente com o sentido de “brilhante”, mas também com
o de “penetrante”, evocando, assim, o poder magnético da figura feminina.
Por fim, a expressão “bárbaros reais” (verso 34) é complexa. A
realeza, a nobreza – conotação, aqui, da classe dirigente –, logo associada, no
imaginário coletivo, à civilidade, é aqui associada, contrariamente, à barbárie.
À barbárie, provavelmente, da exploração na sociedade moderna. Exploração dos “povos
humilhados” (verso 35). O adjetivo “reais” também pode estar, aqui, designando “realidade”.
Os verdadeiros bárbaros são a classe dirigente, representada pela “flor do Luxo”
(verso 37), e não os “povos humilhados” (verso 35).
Longue, mince,
en gland deuil, douleur majestueuse,
Une femme
passa, d’une main fastueuse
Soulevant,
balançant le feston et l’ourlet;
Agile et noble,
avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais,
crispé comme un extravagant,
Dans son ceil,
ciel livide oi germe l’ouragan,
La douceur qui
fascine et le plaisir qui tue.
Un éclair...
puis la nuit! — Fugitive beauté
Dont le regard
m’a fait soudainement renaitre,
Ne te verrai-je
plus que dans l’éternité?
Ailleurs, bien
loin d’ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j’ignore où
tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que
j’eusse aimée, ô toi qui le savais!
XC III
A UMA
TRANSEUNTE
A rua ia
gritando e eu ensurdecia.
Alta, magra, de
luto, dor tão majestosa,
Passou uma
mulher que, com mãos sumptuosas,
Erguia e
agitava a orla do vestido;
Nobre e ágil,
com pernas iguais a uma estátua.
Crispado como
um excêntrico, eu bebia, então,
Nos seus olhos,
céu plúmbeo onde nasce o tufão,
A doçura que
encanta e o prazer que mata.
Um raio... e
depois noite! — Efémera beldade
Cujo olhar me
fez renascer tão de súbito,
Só te verei de
novo na eternidade?
Noutro lugar,
bem longe! é tarde! talvez nunca!
Porque não
sabes onde vou, nem eu onde ias,
Tu que eu teria
amado, tu que bem sabias!
Charles Baudelaire, As
Flores do Mal. Tradução de Fernando Pinto
do Amaral Lisboa, Assírio e Alvim, 1992
Desde Ramalho Ortigão têm os leitores
críticos aproximado Cesário de Baudelaire, insistindo nas semelhanças e, por
reação, também nas diferenças. É o que fez, por exemplo, J. Prado Coelho. A seu
ver, ambos os poetas inscrevem nos seus poemas a mulher fria, a cidade e a sua vida,
ambos têm o mesmo gosto pelo inesperado, por vezes "arrepiante" (o frisson
nouveau), a mesma audácia metafórica e atitudes por vezes exageradas, e
ambos associam a poesia à pintura. No entanto, Cesário é também um poeta do
campo, do prosaico, sem amplidão oratória, antirromântico, sem as preocupações
metafísicas e os abismos psicológicos de Baudelaire, além de não ter quaisquer
marcas de satanismo.
Também Mourão-Ferreira comparou os dois
poetas e acentuou as diferenças, como, por exemplo, a que vai de um ideal de
normalidade e equilíbrio, em Cesário, à doentia extravagância patente na poesia
de Baudelaire, ou, numa idêntica insistência no sensório, a imaginação predominantemente
sinestésica de Baudelaire ao contrário da de Cesário Verde.
“Para uma
síntese da obra de Cesário Verde” - apresentação crítica, seleção, notas e
sugestões para análise literária da lírica de Cesário Verde, por José Carreiro.
In: Folha de Poesia, 2018-04-22. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/cesario-verde.html
“Deslumbramentos, Cesário
Verde” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 02-12-2022.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/deslumbramentos-cesario-verde.html
Dez
horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre as ramas dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas de uma apoplexia.
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo de uma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
E eu, apesar do sol, examinei-a:
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.
Do patamar responde-lhe um criado:
"Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais." E muito descansado,
Atira o cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces de uns alperces.
Subitamente – que visão de artista! –
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
Boiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros cheios de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha,
Toca, frenética, de vez em quando.
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injetados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças de um cabelo que se ajeite;
E os nabos – ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas–os rosários de olhos.
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginga, vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
O Sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou, prazenteira:
"Não passa mais ninguém!.. Se me ajudasse?!..."
Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
"Muito obrigada! Deus lhe dê Saúde!"
E recebi, aquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam de um excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida. E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.
Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canário - que infantil chilrada! -
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.
E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
E, como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.
Cesário Verde. Lisboa, verão de
1877
Edição utilizada: Obra
completa de Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por
Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983
A visão
impressionista da vida da cidade. O prosaísmo poético
Observemos alguns
dos aspetos mais relevantes deste poema, como o de se tratar de um poema
deambulatório em que um Eu vai «com as
tonturas duma apoplexia» e sem pressas para o seu emprego; encontra nesse
bairro moderno uma hortaliceira (o campo que dá saúde invade assim a cidade);
ajuda-a a carregar a sua giga e recupera, assim, «as forças, a alegria, a plenitude, / Que brotam dum excesso de virtude
/ Ou duma digestão desconhecida» (um traço igualmente presente em Cesário é
uma certa ironia e autoironia como se nota ao longo deste poema, em que não
parece levar-se excessivamente a sério).
Entretanto, e
sempre presente, a referência à luz, ao sol; das impressões luminosas recebidas
progressivamente se faz a notação do passar do tempo, como em «fere a vista, com brancuras quentes, / a
larga rua macadamizada»(note-se a sinestesia em brancuras quentes); em « E
eu, apesar do sol, examinei-a», em «à
luz do Sol, o intensocolorista»,
em «O Sol dourava o céu»; ou, mais
para o fim do poema em «E o sol estende,
pelas frontarias, / Seus raios de laranja destilada»(imagem bem inesperada
e plástica). Por isso, é possível a visão surrealista da transformação dos
vegetais num corpo humano gigantesco (lembrando a pintura de Arcimboldo).
Para além das
sugestões visuais, surgem ao longo do poema, em quintilhas decassilábicas e
rimadas, a descrição da vida matinal num bairro burguês, a que não falta a
notação de aromas («bóiam aromas»,
«emanações sadias»), ou de sons («uma
ou outra campainha/ Toca, frenética,» «oiço um canário», «ela apregoa»). E
uma outra imagem de rara beleza: «Um
pequerrucho rega a trepadeira / Duma janela azul; e, com o ralo / Do regador, parece
que joeira / Estrelas».
http://www.navedapalavra.com.br/resenhas/cesarioverde.htm
(consulta em 2002-12-06)
Questionário sobre as estrofes I a XV do
poema “Num Bairro Moderno”, de Cesário Verde
1. Este poema deixa-nos a impressão de uma poesia deambulatória.
1.1. Aponte os principais planos que se sucedem
no poema, delimitando-os no texto e indicando os seres que nele se movimentam.
2. Há referências implícitas a duas classes sociais,
apresentadas como antítese uma da outra.
2.1. Quais são essas classes sociais e qual a
atitude do poeta em relação a cada uma delas?
3. O poeta transfigura o quotidiano numa pintura viva.
3.1. Indique as sensações de que se serve.
3.2. Distinga o objectivo do subjectivo.
3.3. Que simbologia encontra nesta fantasia?
Justifique.
4. Demonstre que se trata de um poema realista, impressionista e
parnasiano.
Chave de correção:
1.1.
Para além do plano de fundo, o "Bairro Moderno", que dá título ao
poema há, com efeito, intercalados nele, outros planos aparentemente distantes
do central e entre si.
O primeiro surgirá na quarta estrofe,
quando a atenção do poeta se prende na figura da rapariga. Cesário para, então,
com a descrição que vinha fazendo (a do Bairro) para nos retratar a jovem.
Assim que acaba, desvia logo a atenção para o desprezo do criado.
É agora que nos começa a elaborar a parte
do poema que, se bem desconexa do tema central, será provavelmente a que se
apresenta mais interessante – a fantasia que Cesário Verde constrói a partir da
imagem dos vegetais da rapariga. A partira das formas simples e sobejamente
conhecidas de frutas e hortaliças, o observador criativo que o poeta é vai
edificar um corpo humano – processo que nos faz acompanhar ao pormenor.
Seis estrofes demoram esta concretização do
fantástico, ao fim das quais retornamos à dimensão real do cenário de bairro em
que Cesário se inseres, e à rapariga dos legumes.
Aproveita então o poeta para nos deixar, em
tom de contraste com a fealdade da rapariga, a virtude que lhe reconhece na
força e virilidade (de forma análoga à do que se passava com as varinas) que
são as que, afinal, lhe conferem essa mesma fealdade.
2.
As classes sociais em foco no poema serão, como se deduz, a burguesia e a da
rapariga, um "arraia-miúda" de trabalhadores pobres.
A burguesia aparece representada pelas
imagens ironicamente confortáveis dos "rez-de-chaussée" e dos almoços
"fáceis" que aguardam o burguês típico.
A rapariga aparece-nos a retratar a classe
a que pertence, por defeito vigorosa, que os olhos do poeta parecem ver explorada.
Há no meio a aparição do criado que, de
forma irónica, se põe a menosprezar a rapariga afinal mais próxima dele do que
quer julgar.
3.1.
O poeta recorre a uma pluralidade de "ferramentas" literárias, entre
as quais achamos diversas sinestesias: "fere a vista, com brancuras
quentes", "as tonturas duma apoplexia"...
3.2.
O objetivo estará aqui representado pelos elementos "reais" do
quotidiano moderno as personagens e o cenário físico do bairro), enquanto o
subjetivo se faz procurar pelos comentários que Cesário faz a esses elementos,
bem como pela encenação meramente fantástica da figura humana nos legumes.
3.3.
A simbologia vem associada a uma obsessão que o poeta vem nutrindo pelo campo e
pelo ambiente naturalmente saudável desse último, encarnado nos tons fortes dos
vegetais que se associa à anatomia do corpo imaginário ("ginja vívida,
escarlate", "ossos nus, da cor do leite", "dedos
rubros" ou "negras e unidas".
4.
O poeta faz parte assumida e distinta de um triângulo de tendências literárias.
As evidências do realismo serão, com
certeza, as mais óbvias, estando patentes nos próprios temas das obras de
Cesário – as classes sociais e as respectivas divergências, o ambiente doentio
da cidade.
Impressionista também nos parece evidente
que seja, já que faz uso frequente e regular nas suas ilustrações de marcas do
impressionismo como são as referências a tonalidades concretas e à
caracterização por impressões pessoais dos determinados cenários. Note-se disto
a propósito o próprio começo do excerto "Dez horas da manhã" em
função da importância que tinha a hora do dia para os retratistas
impressionistas.
O parnasianismo marca-se na admiração de
Cesário Verde pelos conceitos de pureza e coragem – provas disto serão as
descrições fascinadas e fascinantes da mulher loira que obceca o poeta ou, no
presente excerto, "as forças, a alegria, a plenitude que brotam de um
excesso de virtude ou de uma digestão desconhecida".
<http://www.terravista.pt/guincho/1625/Escola/CVerde.html>
março de 1998
Poderá também gostar de:
Apresentação “Num Bairro
Moderno” – recurso do manual escolar Entre nós e as palavras Português 11.º
ano, Santillana, 2015
“Para uma
síntese da obra de Cesário Verde” - apresentação crítica, seleção, notas e
sugestões para análise literária da lírica de Cesário Verde, por José Carreiro.
In: Folha de Poesia, 2018-04-22. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/cesario-verde.html
“Num
Bairro Moderno, Cesário Verde”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-12-01.
Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/num-bairro-moderno-cesario-verde.html