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quarta-feira, 11 de junho de 2025

DESAFIO E CIRCUNSTÂNCIA - Discurso de Lídia Jorge nas comemorações do 10 de Junho, em Lagos. 2025


 

DESAFIO E CIRCUNSTÂNCIA

1.

Muito obrigada, Senhor Presidente da República, por me ter convidado a juntar-me às Celebrações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, neste ano de 2025. Não estava no meu horizonte, mas agradeço-lhe.

Os países escolhem datas de referência para celebrarem a sua História, contemplando memórias de batalhas, acções de independência, encontros civilizacionais, momentos importantes em torno dos quais concitam a unidade dos cidadãos e promovem o orgulho patriótico. Mas em Portugal é a data da morte de um poeta que protagoniza o nosso momento cívico de unidade mais relevante.

Muito se tem discorrido sobre o significado desta nossa singularidade. E muitas vezes é difícil explicar que não se trata de um sinal de melancolia, mas sim do seu oposto – a assunção de que um poeta do século XVI nos legou uma obra tão vigorosa  que acabou por ser adoptada no seu conjunto como exemplo da vitalidade  de um povo. E que a própria biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de um percurso português, mas se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação prometeica sobre a Terra.  A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando se encontrava em paragens remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como exemplo da proximidade que os portugueses, que se encontram longe, mantêm com a sua cultura de origem. O país retribui-lhes reconhecendo desde há muito que as Comunidades Portuguesas são corpo essencial do nosso ser identitário.

Mas as Celebrações deste ano de 2025 têm um cunho muito particular. Em primeiro lugar porque  voltam a ter lugar na cidade de Lagos. No século passado foi cidade anfitriã em 1996. Passados vinte e nove anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre, próspera. O que mudou, e o que justifica que de novo tenha sido escolhida para ser palco das celebrações, foi a nova consciência de que Lagos passou a representar um lugar obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao longo dos séculos.  

É sabido que Lagos, lugar de saída para África, e lugar do comércio prático, tem como símbolo complementar o Promontório de Sagres. A escassos quarenta quilómetros de distância, Sagres e Lagos  representam historicamente uma dualidade contrastiva cujo papel se encontra em avaliação. A comunicação digital que se afirmou a partir dos anos noventa, permite agora uma divulgação ampla dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores estão a realizar neste espaço geográfico antes designado por Terras do Infante. Era altura de  atribuir a Lagos, de novo, o estatuto de cidade merecedora de acolher estas celebrações,  e de fazer reflectir a  sua importância como polo aglutinador de interesse cultural.

Mas há outro motivo para que este ano a Celebração deste Dia seja particular. Desde há dois anos que estamos a evocar  o nascimento de Camões, ocorrido há quinhentos anos, presume-se que entre 1524 e 1525. Calcula-se que assim tenha sido, mas vale a pena reflectir sobre o facto, pois tal como não sabemos como decorreu a sua infância  nem a sua formação, também desconhecemos o local e o dia em que o poeta nasceu. Para sermos justos, sobre a sua vida inicial,  apenas podemos dizer o que um célebre maestro disse sobre  Beethoven –  Um dia Camões nasceu e nunca mais morreu.

2.

Nunca mais morreu.

Provam-no a forma como passados cinco séculos tem sido revisitado ao longo destes dois últimos anos. As escolas, a academia, o mundo da edição, os vários campos das artes e das ciências humanísticas em Portugal têm dado rosto a toda uma espécie de comemoração espontânea e informal em torno do nosso poeta maior. Novos autores têm surgido actualizando a exegese sobre os seus poemas e o conhecimento acumulado em torno da vida de Camões. O jovem ensaísta Carlos  Maria Bobone pôs  recentemente em relevo o papel decisivo que Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um pensamento novo, que resultaria definitivamente na Língua Portuguesa Moderna que hoje usamos.  Demonstrou como a Língua Portuguesa, manobrada no seu esplendor, resultou como uma dádiva que devemos ao “grande cantor do Oceano” como lhe chamou Baltazar Estaço.

Por sua vez, a biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita recente profusamente documentada que faz à vida de Camões, no final, não deixa de se comover com os testemunhos sobre os últimos dias do poeta, demonstrando que as histórias que correm sobre certos passos da sua vida afinal não são lendas, são verdades. O receio de sermos românticos não nos deveria afastar da realidade testemunhada. E assim, a mim não  me pareceria errado que os adolescentes portugueses conhecessem o comentário que  Frei José Índico redigiu na margem de um exemplar de Os Lusíadas presumivelmente oferecido pelo próprio autor na hora de partir. Escreveu o frade – “Yo lo vi morir en un hospital en Lisboa, sin tener una sabana con que cubrirse (…) después de haber navegado 5.500 leguas per mar.” 

Assim foi, sem um lençol. Terá sido um amigo quem lhe enviaria a sabana, já depois de morto. Não me parece que daí se devam retirar conceitos patrióticos ou antipatrióticos. Conceitos sobre a vida humana e o seu mistério, isso talvez. Entretanto, por contraste, sobre a obra que deixou, milhares de páginas de novo têm sido escritas, confirmando a dimensão invulgar do poeta que foi. Hélder Macedo, um dos seus leitores  mais subtis, disse recentemente numa entrevista que se Camões tivesse continuado a viver, ninguém mais em Portugal teria sido capaz de escrever um verso. Essa  hipérbole é linda.

Assim como é reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças epigramas, redondilhas e vilancetes de Camões como se fossem filmes modernos feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados  do seu poeta maior.

3.

Mas se o patrono destas Celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e teológico como é em Sobolos Rios que Vão, e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar,  ao regressarmos a todos esses versos escritos há quase quinhentos anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender os tempos duros que atravessamos, tão em conformidade com os tempos em que ele próprio viveu. 

Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao  fim de um ciclo, e sobre a consciência dessa mudança, no conjunto das mil cento e duas oitavas que compõem Os Lusíadas, vinte e duas delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então. Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico  encerra um  paradoxo enquanto género. O paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado na criação de um Império e, em sentido oposto conter a condenação das práticas que passados cinquenta anos impediam a manutenção desse mesmo império. E nesse campo, pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica  que o Dia de Portugal seja o Dia de Camões, expressa corajosas verdades, dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.

É bom lembrar que entre os séculos XVI e XVII  três  dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante dezasseis anos, e no entanto os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram testemunhas. Foram eles  Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos, e entre eles os mecanismos universais do poder, corpus que continua válido e intacto até aos nossos dias. Sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, e o poder temeroso e o poder laxista.

No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da História para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então? Queixava-se da degradação moral. Mencionava o vil interesse e sede immiga/ do dinheiro, que a tudo nos obriga, e evocava entre os vários aspectos da degradação o facto de sucederem aos  homens da coragem que tinham enfrentado o mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer fortuna. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento. Queixava-se da falta de seriedade intelectual que resultava, depois, na prática,  na degradação dos actos do dia a dia.  Escreve o poeta no final do Canto VIII – Este deprava às vezes as ciências, /Os juízos cegando e as consciências (…) Este interpreta mais do que sutilmente/Os textos; este faz e desfaz leis; / Este causa  os perjúrios entre a gente/E mil vezes tiranos torna os Reis…

4.

Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios em que viveram.  Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra  dizia-se  que lutavam  entre si pelo domínio do Globo Terrestre.  Ou, mais concretamente, dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a Terra ao pescoço como se  fosse um berloque. Os três autores perceberam  bem que em dado momento é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência. Escreveu Shakespeare no Acto IV do Rei Lear –  É uma infelicidade da época que os loucos guiem os cegos.

Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de la Mancha que até hoje perdura entre nós como o nosso  irmão ensandecido. Por seu lado, Camões, no corpo de Os Lusíadas não falou da loucura, mas a  vida  haveria de lhe demonstrar  que as páginas escritas por si mesmo haviam sido proféticas em resultado dela, a insanidade. O desastre de Alcácer Quibir, ocorrido em 1578, estava assinalado numa das últimas estrofes do canto X. Era a História, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela Literatura. No entanto, o fim de ciclo que neste caso aqui interessa não é mais uma transição localizada  que diga apenas respeito a três reinos da Europa. Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global.

Porque nós, agora, somos outros, deslocamo-nos à velocidade dos meteoros,  e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam pelo Espaço. Mas alguma coisa desse outro fim de ciclo que se seguiu ao tempo da Renascença malograda, relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a Terra redonda é disputada por vários pescoços  em competição, como se mais uma vez  se tratasse de um berloque. E os cidadãos?  São público que assiste a espectáculos em écrans de bolso. Por alguma razão os cidadãos hoje regrediram à subtil  designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas. É contra isso, e por isso, que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono.

5.

Por isso mesmo, também, vale a pena regressar a Lagos.

Sobre estes areais aconteceram momentos decisivos para o mundo. No início da Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. O Promontório e a silhueta do Infante austero  que sonhou com achamento de ilhas e outros  descobrimentos, como parte de uma guerra santa antiga,  e tudo realizou a poder de persistência férrea e sagacidade empresarial, transformou-se numa figura de referência como criador de futuros. À sua figura anda associado um sonho que se realizou e depois se entornou pela Terra inteira, e a lenda coloca-o a meditar em Sagres. Numa referência um tanto imprecisa mas que permite a sua evocação,  Sophia escreveu – Ali vimos a veemência do visível/ O aparecer total exposto inteiro/E aquilo que nem sequer ousáramos sonhar/Era o verdadeiro.

Esta ideia de que na mente do Infante se processou uma epifania anda-lhe associada  enquanto mentor de uma equipa, mais ou menos informal,  que teve a capacidade de motivar e dirigir. Sagres passou assim para a História e para a mitologia como o lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o Mundo. Mas existe uma outra perspectiva, como é sabido, e hoje em dia, o discurso público  que prevalece é sem dúvida sobre o pecado dos Descobrimentos não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora. 

É verdade que a deslocação colectiva  que permitiu  estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes, e o  encontro  entre povos,  obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na actualidade. É preciso sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um processo de dominação cruel tão antigo quanto a Humanidade, o que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade. E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos  num novo processo de escravização longo e doloroso.  Lagos, precisamente, oferece às populações actuais,  a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico. Fá-lo com o sentido justo  da reposição da verdade, e do remorso, pelo facto de aqui se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em  larga escala, com polos de abastecimento nas Costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX.

6.

Lagos expõe a memória desse remorso. Mostra como num dia de Agosto de calor tórrido de 1444, aqui desembarcaram 235 indivíduos raptados nas costas da Mauritânia,  e como foram repartidos  e por quem. Alguém que muito prezamos encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o seu quinhão de 46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o Infante Dom Henrique. Lagos não se furta a expor essa verdade histórica.  Lagos também mostra o local onde depois, em levas sucessivas, iriam ser mercadejados os escravos. E mais recentemente relata-se como eram atirados ao lixo, quando morriam, sem um pano a envolver os corpos. Até agora foram retirados desse monturo os restos mortais de 158 indivíduos de etnia banta. Lagos mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez por isso estejamos aqui no Dia de hoje.

Aliás, a Unesco criou a Rota do Escravo, e inscreveu Lagos na Rota da Escravatura para que saibamos como os seres humanos procedem uns com os outros, mesmo quando se fundamentam em religiões fundadas sobre os princípios do Amor e sob a Lei dos Direitos Humanos. Lagos mostra esse filme e faz-se parente de quem escreveu na porta de um lugar de extermínio moderno  o pedido solene – “Homens não se matem uns aos outros”.

7.

É verdade que só conhecemos o que sucedeu naquele dia 8 de Agosto de 1444 porque o cronista do Infante Dom Henrique o narrou. Eanes Gomes de Zurara não conseguiu evitar um sentimento de compaixão e comentou,  de forma comovida, como a chegada e a partilhas dos escravos era cruel. Felizmente que dispomos dessa página  da Crónica dos Feitos da Guiné para termos a certeza de que havia quem não achasse justo semelhante degradação e o dissesse. Aliás, sabemos que  sempre houve quem repudiasse por completo a prática e o teorizasse. Numa das  paredes de um dos museus de  Lagos está escrito o testemunho de  um autor quinhentista que denuncia a injustiça – “… eles não nos ofendem, não nos devem, nem temos justa causa para lhes fazer guerra, e sem justa guerra, não os podemos cativar nem comprar”. 

O que significa que Lagos, a cidade dos sonhos do Infante, de que Sagres é a metáfora, passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros.  Esta tornou-se, pois, uma cidade contra a indiferença. É uma luta nossa, contemporânea. Em Lagos, hoje em dia, está presente,  de outro modo, a mensagem do cartoon de Simon Kneebone  datado de 2014 que tem corrido mundo –  A cena é nossa contemporânea, passa-se no mar. Num navio enorme, aparelhado com armas defensivas, no alto da torre  está um tripulante que avista ao longe uma barca frágil,  rasa, carregada de migrantes. O tripulante da grande embarcação pergunta  – De onde vêm vocês? Da lancha apinhada alguém responde  – Vimos da Terra. Sugiro que os jovens portugueses, descendentes de  cavadores braçais, marujos, marinheiros,  netos de emigrantes que partiram descalços à procura de trabalho, imprimam este cartoon nas camisas quando vão ao mar.

8.

 Consta  que  em pleno século XVII, dez por cento da população portuguesa teria origem  africana. Essa população não nos tinha invadido, os portugueses os tinham trazido arrastados. E nos miscigenámos. O que significa que por  aqui ninguém tem sangue puro, a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós  é uma soma. Tem sangue do nativo e de migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizava, filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.

A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos, nos dias de hoje, um pouco por toda a parte, agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte. A pergunta é esta  – Quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos, e os pilares de relação de inteligência homem/máquina entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um ser humano?

9.

Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.

 Regresso à sua obra para procurar entender que conceito tinha o poeta sobre o que era um ser humano. Sobre si mesmo, toda a sua obra o revela como vítima da perseguição de todas as potestades conjugados. A sua obra lírica é uma resposta a esse abandono essencial. Em conformidade com essa mesma ideia, ao terminar o Canto I de Os Lusíadas”,  Camões define o ser  humano como um ente  perseguido pelos elementos – “Onde pode acolher-se um fraco humano,/ onde terá segura a curta vida,/Que não se arme e se indigne o Céu sereno/Contra um bicho da Terra tão pequeno?”

Nestes versos se reconhece o conceito renascentista, o  da grandeza da solidão do ser humano e a sua luta estoica centrada na confiança em si mesmo. Mas, na prática,  essa atitude representava uma orfandade orgulhosa, que facilmente a fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da vida, o corpo de Camões só teve um lençol, e oferecido,  a separá-lo da terra. A sorte do seu corpo não difere muito daquela  que mereceram os corpos dos escravos de Lagos. Mas, entretanto, no século XIX,  o direito à protecção beneficiada  pelo estado começou a emergir, criaram-se documentos essenciais tendo em vista o respeito pelos cidadãos. Depois da duas Guerras Mundiais do século XX, foi redigida e aprovada a Carta dos Direitos Humanos, e durante algumas décadas foi tentado implantá-los como código de referência um pouco por todo o mundo. Só que ultimamente regride-se a cada dia que passa.

 O conceito da representatividade respeitável da figura de chefe de estado oriundo do povo grego, princípio  que sustentou a trama purificadora das tragédias clássicas, a que se juntou, depois, o princípio da exemplaridade colhida dos Evangelhos, essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos, está a ser subvertida. A   cultura digital subverteu  a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende. Um chefe de estado de uma grande potência durante um comício pôde dizer – Adoro-vos! Adoro os pouco instruídos! E os pouco instruídos aplaudiram. Pergunto, pois, qual é o conceito hoje em dia do ser humano? Como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais?

Hoje, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, não será legítimo perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?

Nós, portugueses, não somos ricos, somos pobres e injustos, mas ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura,  e terminámos com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos, e com eles estabelecemos novas alianças, e criámos uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa, e fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma União de países livres e prósperos que desejam a paz.  Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força.

Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino,  porque, se  alguma coisa tenho em comum com ele, que foi génio, e eu não sou, é a certeza de que partilho da sua ideia de que um ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa.

Muito obrigada.

Lagos, 10 de Junho, 2025.

Lídia Jorge



A agonia dos puros

Os discursos do 10 de Junho foram sobre o passado e isso é, como disse Francisco Mendes da Silva no debate semanal que tenho com ele, sinal de bloqueio. Só que os discursos políticos sobre o passado nunca são bem sobre o passado. Por isso a história, eternamente reescrita, sempre foi disputada. O discurso de Lídia Jorge foi sobre o que queremos ser. É isso a identidade de um povo: uma autorrepresentação construída com base em factos, mitos, lendas e heróis que projetam os nossos desejos e frustrações como comunidade. A nossa identidade, moldada por décadas de propaganda lusotropicalista, baseava-se numa ideia de miscigenação bondosa, determinada por um colonialismo excecional. Apesar de o tráfico negreiro transatlântico ser um dos nossos maiores legados à humanidade, conseguimos fazer da preservação deste mito, que desafia a nossa história e a forma como os outros povos olham para ela, uma espécie de compromisso entre o passado colonial autoritário e o presente democrático. Serviu-nos quando estávamos ocupados a construir a democracia e um país mais moderno.

Com a chegada a Portugal dos debates do mundo, ajudada por uma nova geração de intelectuais afrodescendentes, fomos obrigados a sair do confortável casulo das nossas fantasias. E com a polarização que estes novos debates causaram, nascida de décadas de silêncio e de traumas adiados (e, reconheço, de alguma importação intelectual das causas identitárias), o nacionalismo português tornou-se menos idiossincrático. Ou talvez, sendo mais justo, se tenha despido das vestes lusotropicalistas de que a pequena nação imperial precisava, mostrando a sua nudez étnica e racista. É natural que assim seja. A função deste nacionalismo já não é justificar um império anacrónico e preso por arames. Não é justificar a nossa expansão imperial, mas sim uma vontade de fechamento atávico às migrações. São momentos diferentes na nossa história e na história da Europa. Ascensão e queda. Já não estamos a fazer um ajuste de contas com o passado para seguirmos em frente. Já nem sequer é um debate nosso, em que a particular fraqueza da metrópole obrigava a alguma ginástica simbólica. O papel deste nacionalismo nativista já não é o de justificar uma força centrífuga imperial, mas o de impedir uma força centrípeta migratória. É o de saber como vamos lidar com o aumento intenso de fluxos humanos, que as alterações climáticas, a proximidade imaterial de tudo e o enorme desequilíbrio demográfico e económico entre Sul e Norte globais vão continuar a acentuar. Só abrandará se a Europa e os EUA perderem relevância e atratividade. O recuo civilizacional a que assistimos no Ocidente pode tratar disso.

A extrema-direita tem um plano e o centro político segue-o aos tropeções: fechar portas e janelas. Para quem julgava que o debate alguma vez tivesse sido sobre condições para integrar, André Ventura deu a resposta, recorrendo às mentiras habituais e declarando guerra ao mais poderoso instrumento de integração dos imigrantes: o rea­grupamento familiar. É natural que o faça. A integração reduz o conflito de que os autoritários dependem para reforçarem o seu poder. Basta acompanhar o que se passa na Califórnia para perceber como a perseguição aos imigrantes serve para alimentar o caos, justificar o clima de exceção, aplacar todos os contrapoderes e reforçar os instrumentos repressivos que eternizam os autoritários no poder. Fechar fronteiras não serve apenas para deixar os imigrantes de fora. Serve para prender os nacionais cá dentro. A ilusão dos democratas irrefletidos é pensarem que esta caminhada vai parar quando eles decidirem.

Claro que a alternativa não é suprimir as fronteiras. Como não deveria ser para os mercados financeiros ou para o comércio, mas isso é mais difícil de explicar aos liberais. A resposta começa pela síntese que Lídia Jorge tentou fazer na projeção da nossa identidade, rompendo, sem esconder nada, com a clivagem entre “nós” e “eles”: “Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou.” Somos, enfim, fruto das nossas glórias e crimes que nos fazem, sem qualquer pureza, humanos. Chegar a esta conclusão é condição para uma resposta moralmente aceitável ao inevitável aumento do fluxo migratório. O realismo não se resume à evidência de que quase tudo se regula. É saber que se nos fecharmos ao mundo, em pânico, seremos nós os prisioneiros. Olhem para a caminhada autoritária que se iniciou na Califórnia.

"A agonia dos puros", Daniel Oliveira. Expresso, 12/06/2025




CANÇÃO DO MESTIÇO

Mestiço!

Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor 
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande 
uma alma feita de adição
como 1 e 1 são 2.

Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
       Mas eu não me danei…
e muito calminho 
arrepanhei o meu cabelo para trás 
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre 
que encheu o branco de calor!...

Mestiço !
Quando amo a branca 
                                     sou branco 
Quando amo a negra
                                     sou negro.
                                                       Pois é…

Francisco José Tenreiro, Ilha de Nome Santo. Tipografia da Atlântida de Coimbra, 1942. Série Novo Cancioneiro

 


sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

A Cidade da Confusão

Para além do «ser ou não ser» dos problemas ocos,
o que importa é isto:
- Penso nos outros.
Logo existo.

José Gomes Ferreira, Poeta Militante I


Rua do Benformoso, junto à praça do Martim Moniz, 19-12-2024
https://www.rtp.pt/noticias/pais/autarca-de-junta-indignado-com-operacao-policial-no-martim-moniz-pede-saida-da-ministra_n1622798

 

E assim João Sem Medo partiu para a singular Cidade da Confusão.

Os habitantes dessa cidade, como já sabem, andavam de pernas no ar, usavam gravatas na cintura, cintos no pescoço, galochas nas mãos e luvas nos pés. Os prédios em que moravam não dispunham de portas nem de janelas. Entrava-se e saía-se dos andares, através dos telhados, por intermédio de elevadores montados nas paredes exteriores das fachadas. Outra particularidade a distinguia das demais cidades: apresentava diariamente um aspeto panorâmico novo, porque não possuía ruas fixas. Na verdade a Lei obrigava os donos dos prédios a mudarem-nos todos os dias de orientação e de rua, segundo um plano de barafunda paranoica estabelecido por poetas surreal reformados. Para esse fim, e obedecendo a métodos de construção especiais, edificavam-nos sobre largas plataformas metálicas com rodas, para se deslocarem com mais facilidade. Mercê deste processo ideal, a confusão da Cidade atingia requintes impossíveis de ultrapassar porque os habitantes ignoravam onde moravam.

Em resumo: ninguém sabia a quantas andava. Os relógios não marcavam as horas, os minutos e os segundos, mas os séculos. Os governantes, os professores e o escol intelectual, cuidadosamente escolhidos entre as pessoas mais insignificantes da Cidade, pugnavam com denodo pela mumificação do Disparate de pernas para o ar. E ai daquele que não pronunciasse pelo menos dez asneiras por minuto. Ou não sujasse as grandes descobertas e empresas humanas (como a energia atómica ou os satélites, por exemplo) com teorias imbecis de amesquinhamento reles. Considerados moralmente mortos, os colegas tratavam logo de excluí-los, sem relutância nem remorsos, das respetivas Academias e Universidades.

Esta estupidez, preceituada como uma das mais galhardas manifestações da alma da Raça, cultivava-se desde a infância com esmeros maternais. As Escolas, onde os mestres se selecionavam não pela ciência demonstrada mas pela maneira de trajar e de fazer o nó na gravata, incumbiam-se de torcer os meninos até à incapacidade perfeita. Ensinavam-lhes de propósito coisas sem significação, palavras vazias, matérias inoperantes, ideias cadavéricas, sempre com mais de duzentos anos, pelo menos, e que, conservadas em álcool, graças ao seu desuso em cabeças vivas serviam para simulações de sistemas geniais recentes.

Também se chamavam ursos aos raros estudiosos. E, por severa determinação legal, só os incompetentes comprovados, com mais de 80% de erros ortográficos nas provas escritas e total inépcia para acertar nas contas de dividir, podiam ocupar os cargos cimeiros da Cidade da Confusão.

Por isso, ouviam-se com frequência frases elogiosas deste género: «Fulano é um idiota chapado! Está apto a solucionar todos os problemas, sobretudo os insolúveis! O Poeta Tal é um imbecil de génio!», etc., etc.

No meio desta trapalhada, em que tudo parecia desengonçar-se e fazer o pino, o pobre João Sem Medo esforçava-se por se manter imune ao contágio, repugnando-lhe aderir à lógica absurda de certos hábitos e cerimónias.

Assim, por exemplo: porque é que os confusionistas se sentavam sempre de costas voltadas para o palco a aplaudirem-se a si mesmos com delírio? (…) Porque mandavam para os museus os quadros maus? Porque frequentavam as praias de casaca e colarinhos de goma (consoante prescrevia a Lei), enquanto as mulheres passeavam pelas ruas com vestidos de noite e iam a bailes de fato de banho? (…)

As respostas a estas perguntas afiguravam-se tão precárias a João sem Medo que, certa manhã, receoso de ficar com a cabeça do avesso, decidiu meter-se no primeiro comboio (mesmo com asas) e safar-se da Cidade da Confusão.

Mas neste entrementes, ao virar a última esquina antes da estação, esbarrou com um indivíduo inquietante. Nada menos, nada mais do que um homem com os pés no chão, as mãos no ar, chapéu na cabeça, gravata em redor do pescoço, cinto na cintura e sapatos nos pés.

Caíram nos braços um do outro como velhos amigos.

— Até que enfim que encontro uma pessoa de juízo, um tipo normal — gritou João Sem Medo eufórico.— Já tinha saudades, palavra.

— E eu, então?... Ah!, quem me dera ter nascido na tua terra — queixou- -se o pobre homem.

— Porquê?

— Porque nesta cidade ninguém me entende… Porque choro quando sofro e rio quando me alegro. Porque digo «boas-tardes» de tarde e «bons-dias» de manhã. Porque não tomo banho vestido. Porque acendo a luz elétrica de noite, etc. — Isso prova apenas que tens a cabeça no lugar próprio — consolou-o João Sem Medo. — Pois é… Mas julgas que alguém acredita em mim? Qual! Todos os dias publico artigos de propaganda no meu jornal clandestino: Mãos no Ar. Pois parece que ninguém os lê. Até hoje, na Cidade da Confusão só consegui arranjar cinquenta adeptos da minha doutrina. (…) As autoridades acusam-me de traidor, calcula. Dizem que quero destruir as tradições da Raça. Fundaram até um jornal de propósito para me refutarem: O Coice. Segundo eles, a posição de mãos no chão e pés no ar é puramente espiritual… Um coice nas estrelas… Um coice para as Alturas…

Não pôde prosseguir. Num burburinho súbito, meia dúzia de homens saltaram dum automóvel aéreo e, com a rapidez petulante dos profissionais de dominar homens, enfiaram-lhe uma camisa de forças, impuseram-lhe uma mordaça e, a pontamãos (comparáveis em violência aos nossos pontapés), arrastaram o desgraçado para o carro.

— Pelo que vejo o senhor é estrangeiro! — observava entretanto um dos assaltantes, dirigindo-se a João Sem Medo.

— E com muito prazer.

— Desculpe o acidente — resmoneou o outro. — Mas o senhor estava a falar com um doido perigoso, fugido do manicómio.

— Um doido?... Devem estar enganados… Pareceu-me inteiramente normal!... Contou-me que era diretor dum periódico…

— Mentira! — interveio outro dos assaltantes (enfermeiro? polícia?) com os olhos cheios de lágrimas de riso. — É um pobre doido com a mania de nos querer obrigar a trazer os pés no chão. Como se isso fosse possível!

— É verdade!... Como se isso fosse possível! – repetiram todos em coro, a chorar às gargalhadas.

Então, João Sem Medo tapou os ouvidos e desarvorou para a estação de caminho de ferro mais próxima.

 

José Gomes Ferreira, “Capítulo VII - A Cidade da Confusão” in Aventuras de João Sem Medo. Lisboa: Dom Quixote, 2012, pp. 70-74

 


Aventuras de João Sem Medo é um livro constituído por 15 capítulos, nos quais se descrevem as aventuras que João viveu, após saltar o Muro que separava Chora-Que-Logo-Bebes, onde vivia, e a Floresta Branca.

Escreve um texto expositivo em que apresentes as linhas fundamentais da leitura do capítulo VII, “A Cidade da Confusão”, do livro Aventuras de João Sem Medo. O teu texto deve incluir uma parte introdutória, uma parte de desenvolvimento e uma parte de conclusão, respeitando os seguintes pontos.

• Explicitação do significado da expressão “singular Cidade da Confusão”.

• Referência ao que está incluído na expressão “Esta estupidez”.

• Indicação do que é normalidade e loucura para João Sem Medo, para os assaltantes e para o homem que é levado numa camisa-de-força.

• Explicitação das razões que levaram à escolha do título Mãos no Ar para o periódico.

• Explicitação da intenção da existência do jornal O Coice.

• Razões para a fuga de João Sem Medo para a estação.

(Fonte: Letras & Companhia. Português 9.º Ano. Carla Marques e Inês Silva. Edições Asa, 2013, pág. 227)



quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Do meu país, Eduardo White


 

DO MEU PAÍS

Do meu país. Do país que eu amo, do país que eu temo,
do país que sangro para comer no pão, do país que quero,
do país que doo, do país que amasso como se fosse chão,
do país que tenho, do país que guardo, do país que sonho
como se o lesse na mão, do país que espero, cigarro etéreo,
do país que a minha vida inteira respirou, do país que
lavro, do país que rasgo, do país que a poesia me chorou,
do país com carne, do país com veias, do país que é onde
o sol se deitou, do país que fosse o país que é o país onde
o futuro abalroou, do país do amor, do país dos outros,
do país que é também tudo o que sou, do país chegado,
do país sem barcos, do país que à minha janela me levou.

 

Eduardo White, Até amanhã, coração. Maputo, Imprensa Universitária, 2005


segunda-feira, 10 de junho de 2024

A língua que falas e escreves


 

A língua que falas e escreves
é uma árvore de sons
que tem nos ramos as letras,
nas folhas os acentos
e nos frutos o sentido
de cada coisa que dizes.

É uma língua tão antiga
como isto de ser português.
Teve o latim por avô,
que primeiro foi romano,
depois bárbaro,
mais tarde monge medieval
ou copista do Renascimento.

A língua cresceu com o país,
que se alongou até ao sul
e depois chegou às ilhas,
vencendo os tormentos do mar.
O país ganhou a forma
de uma língua de terra
capaz de usar palavras
como “lonjura” e “saudade”.

Foi a língua da viagem,
do assombro e da aventura,
usada para relatar
descobertas e naufrágios,
triunfos e derrotas
nas mais remotas paragens,
enquanto os porões se enchiam
com as raras especiarias
que tanta fortuna fizeram.

É uma língua que se veste
de baiana no brasil,
ganhando feitiços de som
em Angola e Moçambique
e novos significados
lá para as bandas de Timor.
É uma língua que ajudou
a fazer o comércio e a guerra
mas que hoje prefere
usar os verbos da paz.

Esta é a língua dos escritores,
de Eça e de Camilo,
e de muitos outros mais,
dos semeadores de sons,
dos povoadores de versos
de todos os que dizem a quem começa:
Tratem bem a nossa língua,
pois se a tratam mal
nem imaginam o mal que fazem
a este Portugal.

Esta é a língua dos meninos
que brincam com as palavras
e fazem delas brinquedos
para alegrarem o recreio
das histórias mais bonitas
que alguém pode contar.

E o orgulho que temos
nesta língua portuguesa
irá do berço para a escola
e da escola para a rua,
pondo em cada palavra
uma pepita de ouro
e uma centelha de lua,
pois afinal esta língua
será sempre minha e tua.

 

José Jorge Letria, Esta Língua Portuguesa, Porto, Ambar, 2007

 

De acordo com a leitura do poema “A língua que falas e escreves”, de José Jorge Letria, classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas.

1. No poema utiliza-se a metáfora da árvore para descrever a estrutura e a complexidade da língua portuguesa, associando letras, acentos e sentidos a diferentes partes da árvore.

2. A língua portuguesa é descrita como uma língua moderna e recente.

3. A língua portuguesa tem uma história não muito influente fora de Portugal.

4. A língua portuguesa é apresentada no poema como um meio de comunicação associado exclusivamente a aspetos negativos, como guerras e conflitos.

5. A alusão a figuras centrais na tradição literária de Portugal reforça a ideia de que a língua é um património valioso que deve ser cuidado e valorizado.

6. O poema faz um apelo para que a língua portuguesa seja preservada e tratada com cuidado, ligando sua importância à identidade cultural portuguesa.

7. No poema sugere-se que a língua portuguesa é apenas um objeto de estudo e não tem relação com a infância ou o quotidiano.

8. No final do poema, a língua portuguesa é descrita como algo que carrega uma pepita de ouro e uma centelha de lua, simbolizando seu valor e beleza.

 

Respostas:

1. Verdadeiro.

2. Falso. O sujeito poético afirma que a língua portuguesa é tão antiga quanto ser português e que teve o latim como ancestral, o que sugere uma longa história e evolução.

3. Falso. A língua portuguesa tem uma longa história, estando espalhada por diversas regiões do mundo, incluindo as ex-colónias portuguesas.

4. Falso. O poema menciona que a língua portuguesa ajudou no comércio e na guerra, mas hoje prefere usar "verbos da paz", indicando uma valorização da comunicação pacífica.

5. Verdadeiro.

6. Verdadeiro.

7. Falso. N poema refere-se a língua portuguesa como sendo a língua dos meninos que brincam com as palavras e das histórias que alegram o recreio, mostrando a sua presença no quotidiano e na infância.

8. Verdadeiro.

 

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Hino Nacional, Carlos Drummond de Andrade


 

HINO NACIONAL


Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
Com água dos rios no meio,
O Brasil está dormindo, coitado
Precisamos colonizar o Brasil.

O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonetes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...

Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...

Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão
de seus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

 

Carlos Drummond de Andrade, Brejo das almas, 1934

 

***

 

O Brasil em versos: uma análise do poema “Hino Nacional” de Carlos Drummond de Andrade e a construção da identidade nacional

 

Brejo das Almas, além de título da obra, é também o nome de uma pequena cidade de Minas Gerais. Causa-nos espanto a “epígrafe” do livro, exaltando as potencialidades financeiras dessa cidade, enquanto seu nome remete a algo ruim, tenebroso. É nessa ideia dialética que se baseia a obra: através da ironia, na maioria dos poemas, o poeta revela a ambivalência do mundo e da realidade brasileira.

Quando Drummond publicou Brejo das Almas, em 1934, o país vivia um clima político que tinha pretensão de tornar os brasileiros orgulhosos de sua nação. E é nesse momento que surge o poema que iremos analisar, o “Hino Nacional”. Em meio à efervescência política da época, o poeta mineiro traz à tona o Brasil e sua brasilidade.

No poema, Drummond problematiza uma das inquietudes contemporâneas, a sensível e persistente reivindicação da identidade nacional, um lugar comum nos escritos da intelectualidade brasileira. Nomes como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros. Entretanto, diferente dos ensaios históricos, o eu-lírico irônico do poema parece desenhar a inviabilidade dessa representação simbólica do país. Principalmente se pensando de forma totalizante, como as características dos projetos românticos, e de certa forma dos modernistas.

À primeira leitura, verificamos que o título do poema contém grande valor simbólico, algo solene, heróico, histórico, que nos leva a pensar a identidade nacional, o espírito de nação, no sentido corrente da palavra. Antes mesmo de iniciar a leitura, o leitor mais afoito, pode imaginar, que se trata de mais um texto ressaltando a grandeza de nossa pátria, em seguida, um leitor mais atento, enxerga algo de irônico nas palavras do poeta. De qualquer forma o poema permite no mínimo duas leituras, uma no sentido literal e outro no sentido irônico1.

O poema se compõe de oito estrofes irregulares, onde o jogo semântico é destaque para o desenvolvimento das ideias. O texto é construído por dois tempos verbais: presente do indicativo e futuro. Podemos destacar no primeiro o caso, o verbo “Precisamos” grafado na primeira pessoa do plural, vem sempre acompanhado de um segundo verbo no infinitivo. Vejamos: precisamos descobrir, colonizar, educar, louvar, adorar e esquecer. A forma como os vocábulos são dispostos nos remete ao positivo, presente não só no hino oficial, como na bandeira nacional2.

Em seguida temos os verbos no futuro, também grafados na primeira pessoa do plural: faremos, compraremos, assimilaremos, abriremos, subvencionaremos, cuidaremos. É importante chamar a atenção que todos esses verbos, incluindo o “precisamos”, exprimem ação, movimento, e dão dinâmica aos textos -agindo no presente e no futuro- ao mesmo tempo em que nos remete ao passado. Drummond ainda brinca com verbos no gerúndio, que acaba dando um tom prolongado, acentuando a mansidão presente no texto, e porque não, no país. Um bom exemplo encontra-se já nos primeiros versos: o Brasil está dormindo, coitado.

Na primeira estrofe, quando Drummond diz: Precisamos descobrir o Brasil!/Escondido atrás das florestas, / com a água dos rios no meio, /o Brasil está dormindo, coitado. / Precisamos colonizar o Brasil. Em um primeiro momento, nos três primeiros versos, podemos pensar que ele se refere a um Brasil ainda desconhecido, que até hoje, apesar das depredações, aparenta ser um enigma. No quarto verso, nota-se uma referência ao Hino Nacional oficial, “Deitado eternamente em berço esplêndido”, e nitidamente percebe-se um tom irônico, a palavra “coitado”, uma espécie de “tadinho”, pobrezinho, uma diminuição daquilo, que ao menos teoricamente, deveria ser grandioso. No quinto verso, ele dá início a próxima estrofe, e de certa forma se completa uma fase da história, o Brasil precisa ser descoberto e colonizado. Mas por um acaso, já fomos descobertos e colonizados! Porque precisamos fazer isso novamente? O que há de errado com esse Brasil já descoberto e colonizado? Aqui cabe também a leitura irônica, onde “Não precisamos descobrir e nem precisamos colonizar”, tudo isso já foi feito.

Na segunda estrofe, o autor diz: O que faremos importando francesas/muito louras, de pele macia, /alemãs gordas, russas nostálgicas para/garçonnettes dos restaurantes noturnos. /E virão sírias fidelíssimas. /Não convém desprezar as japonesas. Logo no primeiro verso, vemos novamente a ironia do poeta, como colonizar um país com francesas, alemãs, russas e japonesas? Mas a pergunta do autor é, o que faremos? Se nos remetermos aos textos de Freyre, lembraremos que esse é um país fruto da hibridação. E se levarmos em conta a época do poema, lembraremos que nesse tempo, por motivos históricos, o Brasil recebeu um grande número de estrangeiros, o que nos leva de volta ao quinto verso da primeira estrofe, precisamos colonizar o Brasil, e essa nova “invasão” de estrangeiros pode ser encarada como uma nova colonização. Um novo processo de hibridização.

No entanto, o que há de mais interessante nessa estrofe, é que as mulheres não são mais índias, muito menos portuguesas, mas francesas, alemãs, russas, sírias e até japonesas, marcando um percurso de distanciamento geográfico (da Europa até o extremo oriente). Tal distanciamento sugere o afastamento entre o eu-lírico e a realidade, fazendo com que ele, o gauche, crie ironicamente uma realidade torta, que se aproxima da realidade criada por aqueles que tentam descrever o Brasil sem abandonar o caráter ideológico.

Ainda podemos perceber que as características dadas às mulheres citadas no poema, também têm um grande apelo histórico, além de um distanciamento espacial, temos as características dada a cada povo. As mulheres francesas são retratadas como delicadas, as alemãs gordas, em um país de clima tenso, onde já nessa época acontecia a perseguição aos judeus. Interessante notar que, o autor reserva para as russas uma palavra estrangeira que remete, de certa forma, ao capitalismo, quando ele diz: russas nostálgicas para/garçonnettes dos restaurantes noturnos; podemos encarar essa frase como saudade de uma liberdade que não existe mais, trata-se de um país dominado pela ditadura socialista. Já as mulheres orientais, com diferenças culturais e físicas mais distantes de nossa realidade, além de geograficamente estarem mais distantes, não devem ser esquecidas, as sírias são mais que fiéis – talvez devido a sua religião –, as japonesas, apesar da aparência mais esguia (diferente do padrão nacional) não merecem ser desprezadas, com certeza porque também possuem seus encantos.

Percebemos que a ordem dos países citados: França, Alemanha, Rússia, Síria e Japão - demonstra um passeio pelo mundo, da jovem América, para o berço da humanidade. Notemos ainda que, a miscigenação se faz presente em vários momentos da história nacional. Como se a cada momento o Brasil fosse “re-colonizado”.

Na terceira estrofe, percebe-se a influência do estrangeirismo na construção do saber nacional. Precisamos educar o Brasil. /Compraremos professores e livros, /assimilaremos finas culturas, /abriremos dancings e subvencionaremos as elites. Logo no primeiro verso, temos o verbo educar sustentado por outros verbos como “comprar”, “assimilar”, “abrir” e “subvencionar”. O clima agora é de seriedade irônica. O primeiro e o último verbos, assim como a toda a estrofe, dão um efeito de crítica ao capitalismo que reduz tudo à movimentação financeira. No segundo verso fica claro que temos uma cultura altamente influenciada pelo o que é estrangeiro, não apenas porque fomos colonizados por etnias e culturas diferentes, mas também, e principalmente, porque sempre consideramos o que vem de fora melhor do que o que é criado aqui. Por isso compramos nosso conhecimento, e assimilamos o que for fino, porque somos colônia, e o melhor vem de fora, da metrópole. Por exemplo, no segundo verso, “livros”, que são coisas, são colocados na mesma posição sintática de “professores”, o que os torna também coisas. No último verso, notamos, talvez, o início da influência da cultura norte-americana e sua manutenção cultural as elites brasileiras, principal responsável pela “importação” cultural brasileira.

Durante todo o poema, podemos perceber um tipo de discurso politiqueiro, precisamos disso, precisamos daquilo, mas no quarto parágrafo, essa questão fica um pouco mais clara, o tom irônico do eu-lírico nos revela algumas promessas utópicas: Cada brasileiro terá sua casa/com fogão e aquecedor elétrico, piscina, /salão para conferências científicas. /E cuidaremos do Estado Técnico. Os versos insinuam que todo brasileiro terá o mesmo padrão de vida, focado em um “Estado técnico” algo que nos remete novamente a influência positivista, o valor a ciência e a um estado laico, onde a industrialização e a modernidade estariam presentes. É também o sonho americano em terras tupiniquins. É uma visão do Brasil como o “país do futuro”, assim como no Hino Nacional oficial: “em teu futuro espelha essa grandeza”.

É importante ressaltar que durante toda a construção do poema a frase “Precisamos...”, pode ser encarada em seu sentido literal, como em um sentido irônico ou contrário à afirmação, “Não precisamos...”. Na quinta estrofe, Drummond começa com: “Precisamos louvar o Brasil”, ou seja, no sentido literal, precisamos de apreço e de elogios, enaltecer suas virtudes, agora, se levarmos em consideração o tom irônico do eu-lírico, teremos: “Não precisamos louvar o Brasil”, já estamos fartos de elogios. Nos versos seguintes se diz: Não é só um país sem igual. /Nossas revoluções são bem maiores/do que quaisquer outras; nossos erros também./E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões... /os Amazonas inenarráveis... os incríveis João - Pessoas...

Trata-se de um país diferente, “sem igual”, um colosso, tudo aqui é maior, mais exagerado, mais intenso. Assim como no hino oficial: Gigante pela própria natureza, És belo, és forte, impávido colosso, /E o teu futuro espelha essa grandeza. No terceiro verso ele demonstra isso falando das revoluções, que segundo o texto são maiores, se nos remetermos ao hino nacional teremos os seguintes versos: Paz no futuro e glória no passado. /Mas, se ergues da justiça a clava forte, /Verás que um filho teu não foge à luta, /Nem teme, quem te adora, a própria morte. No entanto, nunca houve uma revolução de facto no Brasil, assim como não houve um povo heróico de brado retumbante, ao menos não de forma literal.

Quando questiona nossas virtudes, o autor recorre às paixões carnais para destacar o que há de bom e de sublime no país. Interessante notar que o poeta ignora, propositalmente ou não, o grotesco, particularidade tão inerente a “identidade nacional”. Na quinta estrofe, as contradições são colocadas lado a lado ainda por via da ironia. Aqui se reconhece o Hino Nacional original através do pronome possessivo “nossos”, seguido de nomes identificáveis ao país. O que antes era “bosques” e “vida”, agora são “revoluções” (que de facto o Brasil nunca teve...), “erros” e “virtudes”, estes últimos colocados lado a lado numa antítese que é prolongada até os últimos versos dessa estrofe: “Amazonas inenarráveis”, com sua imensidão, está no mesmo plano de “João - Pessoas”, cidade e gentes tão pequenas...

No sexto verso ele faz uma referência a um facto histórico que pode ser lido de forma dúbia. “Os incríveis João – Pessoas”, que em um sentido literal pode ser lido como uma referência ao assassinato do político paraibano3 que deu nome à cidade de João Pessoa, ou em um sentido irônico uma alusão ao João Ninguém, que de repente se transforma em um super João Pessoa.

A sexta estrofe é marcada por dois momentos de meditação. No primeiro verso o autor continua dizendo, se considerarmos o sentido literal, que “Precisamos adorar o Brasil”, ou seja, mais que amá-lo temos que adorá-lo, reverenciá-lo. Nos outros cinco versos do poema, Drummond se vale de uma estrutura anafórica para expressar um momento mais meditativo, com a frase “Se bem que”, ele introduz uma modulação lógica.

Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão/no pobre coração já cheio de compromissos... /se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, /por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

Quem são esses homens a que se refere o eu - lírico? Seriam os pensadores, que tentam de todas as formas “encontrar ou construir” uma identidade nacional? Ou então os políticos que tentam criar uma nação enaltecida? Ou ambos, que por motivos diferentes ou não, querem ver o Brasil enquanto nação. Estaria ele falando dos modernistas, de Oswald e do Manifesto Antropófago? Ou estaria Drummond falando dele próprio e de todos nós? A frase deixa esse questionamento, não se fechando com qualquer resposta.

Na última estrofe, chegamos a um momento de dúvida, de ceticismo por parte do autor. Após descobrir, colonizar, educar, louvar e adorar, é chegada à hora de esquecer o Brasil, para isso ele enfatiza repetindo o verbo “precisamos” duas vezes. É um momento de reflexão, o que antes parecia ser uma exaltação, a um canto em louvor da nação, agora mostra-se como algo que devora.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão
os brasileiros?

É nesse ponto que Drummond tece sua mais árdua crítica. Logo no primeiro verso, quando enfatiza que é necessário que esqueçamos o Brasil, o poeta refere-se ao Brasil dos livros, dos sociólogos e de todos outros pesquisadores. O Brasil grande, colossal, de infinita beleza, tão bem retratado em seu hino oficial, assim como em seus livros de histórias. Chega desses carinhos, dessa louvação, adoração, dessa construção romântica (ou romanceada). No quarto verso: O Brasil não nos quer! Está farto de nós! – o Brasil está farto dessa obsessão em construir esse espírito nacional único, fechado, delimitado.

No sexto verso, mais provocação. “Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil”. É nesse ponto que fica clara uma questão recorrente no texto, o Brasil oficial não coincide com o Brasil real, logo ele não existe. É no famigerado último verso, que se reserva a mais polêmica frase. “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”. Segundo Raul Antelo4 “não é que o Brasil não exista. Não existe qualquer identidade como matéria. Toda identidade é um desenho imaginário que produz efeitos simbólicos5”.

Há um Brasil que precede o Estado e, consequentemente, não pode ser reduzido à imagem oficial. É como se o Brasil fosse um signo tão pleno de sentido que não pudesse ser apreendido por uma simples operação hermenêutica. O velho clichê parece prevalecer nessa leitura: tão exuberante quanto sua natureza, o Brasil, o Brasil em si mesmo, o Brasil bem brasileiro das declarações ufanistas, só pode ser sentido com o coração e não interpretado racionalmente, pois, ante a plenitude do objeto, a linguagem parece incapaz de expressá-lo (ROCHA).6

“Nenhum Brasil existe”, porque existem vários brasis, e não apenas um. Sua origem é feita de pluralidade, enquanto o mundo corre atrás para entender a diversidade, o Brasil, há décadas, tenta fazer o caminho contrário, em busca de sua identidade. Talvez, o que muitos ainda não tenham entendido é que, talvez, nossa identidade, seja não ter uma identidade fixa e única, e sim diversa, “multi”. Por isso, de forma geral e genérica, podemos dizer que, o que hoje se vive com a globalização cultural já acontecia aqui, em proporções bem menores é claro, uma vez que nossa colonização se deu com a mistura cultural e étnica. Não falamos um único português, falamos sim variações do português.

No fim do poema, o tom de ironia começa a se dissolver, dando lugar ao lirismo pessoal do eu - lírico. Após uma série de sucessivas “brincadeiras” acerca do cenário brasileiro, ele começa a divagar sobre a realidade que percebe com seu olhar gauche.

Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos...
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

A introdução da subjetividade é garantida pelo subjuntivo do verbo “ser” (seja). A exclamação, abandonada desde o primeiro verso, retorna para contrastar com o tom de seriedade e subjetividade que essa estrofe contém. Os versos são maiores, mais densos, gerando uma tensão que explodirá na última estrofe:

[...] Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

Nesse momento já não predomina a ironia; o poeta adquire um tom sério e tenso. É o momento do questionamento de todas as divagações feitas a respeito do que é o Brasil e como são os brasileiros, ao longo de toda a sua História. O que antes era apenas “o” Brasil, agora aparece também como “nosso” Brasil, “este” Brasil, e, por fim, “nenhum” Brasil. O nome do país adquire novos sentidos; não se trata de um Brasil físico, pois se assim o fosse, chegaríamos à conclusão de que o poeta estava delirando (no sentido literal do termo) ao compor o poema. Trata-se das ideologias formuladas acerca deste país, do Brasil dos livros e dos ideólogos, que fundiu um “hiato” de si com a realidade, como relatou Marlise Meyer (2001).

Luiz Costa Lima (1968) revelou a existência de um “princípio-corrosão” na poesia de Drummond: “Corrosão, como a empregamos, não se confunde com derrotismo ou absenteísmo. Ao contrário, no contexto drummondiano ela aparece como a maneira de assumir a História, de se pôr com ela em relação aberta” (p. 136).

Assim, ao analisar “Hino Nacional”, ele afirma que a corrosão atua na medida em que o tom de blague das primeiras estrofes se finda com a seriedade das últimas. Isso nos faz pensar que a blague não basta para explicar a realidade; mas também não quer dizer que ela seja totalmente ineficiente. Corrosão, como explicou Costa Lima, não é simples destruição, mas sim reinvenção. O eu-lírico ironiza o próprio discurso patriótico modernista, que, em alguns momentos, atribui rótulos deficientes ao caráter do brasileiro.

A ironia abarca em si as antíteses e ambivalências presentes em todo o poema, pois ela também é um instrumento ambivalente. Sant’anna argumenta que

Por sua origem, a ironia é um instrumento de defesa e funciona como elemento reparador nas relações entre o indivíduo e o grupo social. Possui natureza dupla: sendo sinal de desajustamento do indivíduo em relação ao grupo de pessoas (ou pessoa), é também elemento de comunicação entre eles, funcionando como “correction”. [...] O humor é a válvula de escape de tensões numa relação (1972, p. 61).

Partindo desse ponto, chegamos à conclusão de que a linha irônica que se traça no decorrer do poema, divide-o em várias perspectivas, alimentando as oposições, as contradições, as antíteses. Por outro lado, o humor, sendo uma “válvula de escape”, permite obter, através da palavra, uma transformação que se realize de alguma forma na realidade.

O desfecho do poema é dado com uma interrogação que pode ser transcrita de outras formas: o que é ser brasileiro? O que é o Brasil? Tais questões são sugeridas não para serem respondidas, o que resultaria em sua eliminação. Ao contrário, o poema propõe que elas estejam sempre presentes em qualquer tentativa de caracterização da identidade nacional, tentativas que não se devem cessar, já que são elas que alimentam a vida cultural de um povo.

 

Notas:

1 Falaremos disso mais adiante.

2 “Gigante pela própria natureza, é belo, és forte impávido colosso...”; “Ordem e Progresso”.

3 Os defensores de João Pessoa alegam que ele foi um combatente das oligarquias locais e se contrapunha aos interesses de grupos tradicionais, embora ele mesmo proviesse de família de oligarcas. Seu assassinato foi considerado o estopim da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Pessoa_Cavalcanti_de_Albuquerque/>. Acesso em: 06/07/08.

4 Professor da UFSC.

5 Diz Raul, em um de seus ensaios escritos para o jornal O Estado de São Paulo .

6 Autor do prefácio do livro Nenhum Brasil Existe.

 

Referências:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Brejo das almas. Rio de Janeiro: Record, 2001.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1995.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: EdUSP, 1994.

DAMATTA, Roberto. O que faz do Brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2001.

GOMES, Ângela Maria de Castro. Confronto e compromisso no processo de constitucionalização (1930-1935). In: O Brasil republicano. Vol. 3. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, p. 7-72.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 2001.

LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo: Ed. Unesp,

2002.

LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

MEYER, Marlise. Um eterno retorno: as descobertas do Brasil. In: Caminhos do imaginário no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 19-46.

ROCHA, João Cezar de Castro. Nenhum Brasil existe. Ed. Topbooks, 2001.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O gauche no tempo. Rio de Janeiro: Lia, INL, 1972.

 

Juliana Nascimento, Revista FACEVV | Vila Velha | Número 5 | Jul./Dez. 2010 | p. 68-75

 

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Outra análise do poema “Hino Nacional”, de Carlos Drummond de Andrade

 

No poema “Hino Nacional” (OC, 2002, p. 51-52), extraído de Brejo das almas (1934), o poeta traz à tona o Brasil e sua brasilidade de forma crítico-reflexiva, irônica e bem-humorada.

O título do poema é uma alusão ao Hino Nacional brasileiro, um dos quatro símbolos da República Federativa do Brasil, cuja letra é de Joaquim Osório Duque Estrada (1870- 1927) e música de Francisco Manuel da Silva (1795- 1865). Seu caráter laudatório difere do poema em análise de tom crítico, reflexivo e contestatório. Antonio Cândido declara que a Literatura Brasileira assume um compromisso com a construção de uma nação: “[...] A literatura do Brasil, como a dos outros países latino-americanos, é marcada por este compromisso com a vida nacional no seu conjunto, circunstância que inexiste nas literaturas dos países de velha cultura” (1975, p. 18). Além da tonalidade do humor e da ironia, a poesia drummondiana apresenta um olhar arguto, perspicaz e comprometido com seu tempo em que “As leis não bastam”, por isso são necessárias palavras “roucas e duras, / irritadas, enérgicas” (OC, 2002, p. 125-130).

O poema “Hino Nacional”, composto de oito estrofes irregulares, é construído a partir de dois tempos verbais: presente do indicativo seguido de um verbo no infinitivo – “Precisamos descobrir”, “Precisamos colonizar”, “Precisamos educar”, “Precisamos louvar”, “Precisamos adorar” e Precisamos, precisamos esquecer”; futuro – “O que faremos importando francesas”, “Compraremos professores e livros”, “E cuidaremos do Estado Técnico”. Os verbos estão na primeira pessoa do plural, conferindo a ideia de que todos nós, poeta e leitores, reflitamos sobre Brasil e nosso papel em sua construção. O poeta brinca, ainda, com os verbos no gerúndio - “O Brasil está dormindo, coitado” - para conferir ao texto um tom de prolongamento e de mansidão. O país precisa ser conhecido e potencializado. Não pode e não deve permanecer “Deitado eternamente em berço esplêndido”.

Na segunda estrofe, o eu lírico questiona o que faremos importando francesas louras, alemãs gordas, russas nostálgicas, sírias fidelíssimas e as japonesas. O período da escritura de Brejo das almas (1934) é também o período mais intenso da imigração em solo brasileiro. Além disso, somos frutos de um processo de hibridação. A chegada de mais estrangeiros, leva-nos a pensar em um novo processo de colonização. Notar que as mulheres que chegam não são índias, tampouco portuguesas, marcando um distanciamento geográfico entre Europa e Oriente. Esse distanciamento é o mesmo vivenciado pelo eu lírico gauche e a realidade no qual ele está inserido.

Na estrofe seguinte, “Precisamos educar o Brasil”, o verbo educar vem acompanhado de outros, como comprar, assimilar, abrir e subvencionar. “Professores e livros” serão comprados. Na era da industrialização, pessoas são reduzidas à movimentação financeira. No quarto verso “assimilaremos finas culturas, / abriremos dancings e subvencionaremos as elites” a cultura-americana e as elites brasileiras são criticadas. Essa mesma análise já havia sido realizada pelos modernistas paulistas, sobretudo por Oswald de Andrade (1890-1954) em seu “Manifesto Antropofágico” publicado na Revista Antropofagia (1928-1929). Enquanto Drummond faz uma crítica à cultura estrangeira e às elites que a solidificam, Oswald apresenta uma proposta mais radical: devorar a cultura estrangeira e criar uma cultura nacional. Seria uma inversão de papéis: evoluiríamos da condição de devorado para devorador. O passado cultural seria engolido, um (novo) presente, construído. Atente-se, ainda, ao facto de que, ao longo do poema, o poeta diz do que precisamos e do que não precisamos.

Na quarta estrofe, em tom político, explicita-se uma (quase) promessa: “Cada brasileiro terá sua casa / com fogão e aquecedor elétricos, piscina, [...]”. Até os dias de hoje, é insinuado pelos governantes que cada brasileiro terá o mesmo padrão de vida, dentro de um estado laico, moderno e industrializado. O verso “E cuidaremos do Estado Técnico” remete-nos à influência científica e positivista que dominou o século XIX.

Somos uma “terra de sublimes paixões [...]”. Nesse instante, outra alusão é feita ao Hino Nacional “Nossos bosques têm mais vida / Nossa vida no teu seio mais amores”. Se palavra puxa palavra, diríamos que música/poema puxa poema, porque nos faz lembrar de “Canção do Exílio”*, do poeta Gonçalves Dias (1823-1864) “Nosso céu temais estrelas, / Nossas várzeas têm mais flores, / Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida mais amores”. O Hino Nacional traz em seu bojo os elogios que faltam ao poema drummondiano: “Gigante pela própria natureza / És belo, és forte, impávido colosso / E o teu futuro espelha essa grandeza” [...]. Somos uma nação apaixonada pelo samba e pelo futebol.

 

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* “Canção do Exílio” foi um poema escrito em 1843 e integra a obra lírica Primeiros Cantos (1843), composta pelo poeta romântico Gonçalves Dias; produzida em um momento de intenso nacionalismo, devido à recente separação entre a colônia brasileira e a metrópole portuguesa. A ordem é exaltar os valores naturais do Brasil. Quando o texto foi escrito, Dias cursava Faculdade de Direito em Coimbra. Vivia um exílio geográfico. Além de fazer alusão ao Hino Nacional, o poema alude à Canção Militar do Expedicionário (no trecho) “Por mais terras que eu percorra, não permita Deus que eu morra; Sem que volte para lá”.

 

Carlos Drummond de Andrade: O poeta na condição de leitor, Luciana Silva. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2021.