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sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

A Cidade da Confusão

Para além do «ser ou não ser» dos problemas ocos,
o que importa é isto:
- Penso nos outros.
Logo existo.

José Gomes Ferreira, Poeta Militante I


Rua do Benformoso, junto à praça do Martim Moniz, 19-12-2024
https://www.rtp.pt/noticias/pais/autarca-de-junta-indignado-com-operacao-policial-no-martim-moniz-pede-saida-da-ministra_n1622798

 

E assim João Sem Medo partiu para a singular Cidade da Confusão.

Os habitantes dessa cidade, como já sabem, andavam de pernas no ar, usavam gravatas na cintura, cintos no pescoço, galochas nas mãos e luvas nos pés. Os prédios em que moravam não dispunham de portas nem de janelas. Entrava-se e saía-se dos andares, através dos telhados, por intermédio de elevadores montados nas paredes exteriores das fachadas. Outra particularidade a distinguia das demais cidades: apresentava diariamente um aspeto panorâmico novo, porque não possuía ruas fixas. Na verdade a Lei obrigava os donos dos prédios a mudarem-nos todos os dias de orientação e de rua, segundo um plano de barafunda paranoica estabelecido por poetas surreal reformados. Para esse fim, e obedecendo a métodos de construção especiais, edificavam-nos sobre largas plataformas metálicas com rodas, para se deslocarem com mais facilidade. Mercê deste processo ideal, a confusão da Cidade atingia requintes impossíveis de ultrapassar porque os habitantes ignoravam onde moravam.

Em resumo: ninguém sabia a quantas andava. Os relógios não marcavam as horas, os minutos e os segundos, mas os séculos. Os governantes, os professores e o escol intelectual, cuidadosamente escolhidos entre as pessoas mais insignificantes da Cidade, pugnavam com denodo pela mumificação do Disparate de pernas para o ar. E ai daquele que não pronunciasse pelo menos dez asneiras por minuto. Ou não sujasse as grandes descobertas e empresas humanas (como a energia atómica ou os satélites, por exemplo) com teorias imbecis de amesquinhamento reles. Considerados moralmente mortos, os colegas tratavam logo de excluí-los, sem relutância nem remorsos, das respetivas Academias e Universidades.

Esta estupidez, preceituada como uma das mais galhardas manifestações da alma da Raça, cultivava-se desde a infância com esmeros maternais. As Escolas, onde os mestres se selecionavam não pela ciência demonstrada mas pela maneira de trajar e de fazer o nó na gravata, incumbiam-se de torcer os meninos até à incapacidade perfeita. Ensinavam-lhes de propósito coisas sem significação, palavras vazias, matérias inoperantes, ideias cadavéricas, sempre com mais de duzentos anos, pelo menos, e que, conservadas em álcool, graças ao seu desuso em cabeças vivas serviam para simulações de sistemas geniais recentes.

Também se chamavam ursos aos raros estudiosos. E, por severa determinação legal, só os incompetentes comprovados, com mais de 80% de erros ortográficos nas provas escritas e total inépcia para acertar nas contas de dividir, podiam ocupar os cargos cimeiros da Cidade da Confusão.

Por isso, ouviam-se com frequência frases elogiosas deste género: «Fulano é um idiota chapado! Está apto a solucionar todos os problemas, sobretudo os insolúveis! O Poeta Tal é um imbecil de génio!», etc., etc.

No meio desta trapalhada, em que tudo parecia desengonçar-se e fazer o pino, o pobre João Sem Medo esforçava-se por se manter imune ao contágio, repugnando-lhe aderir à lógica absurda de certos hábitos e cerimónias.

Assim, por exemplo: porque é que os confusionistas se sentavam sempre de costas voltadas para o palco a aplaudirem-se a si mesmos com delírio? (…) Porque mandavam para os museus os quadros maus? Porque frequentavam as praias de casaca e colarinhos de goma (consoante prescrevia a Lei), enquanto as mulheres passeavam pelas ruas com vestidos de noite e iam a bailes de fato de banho? (…)

As respostas a estas perguntas afiguravam-se tão precárias a João sem Medo que, certa manhã, receoso de ficar com a cabeça do avesso, decidiu meter-se no primeiro comboio (mesmo com asas) e safar-se da Cidade da Confusão.

Mas neste entrementes, ao virar a última esquina antes da estação, esbarrou com um indivíduo inquietante. Nada menos, nada mais do que um homem com os pés no chão, as mãos no ar, chapéu na cabeça, gravata em redor do pescoço, cinto na cintura e sapatos nos pés.

Caíram nos braços um do outro como velhos amigos.

— Até que enfim que encontro uma pessoa de juízo, um tipo normal — gritou João Sem Medo eufórico.— Já tinha saudades, palavra.

— E eu, então?... Ah!, quem me dera ter nascido na tua terra — queixou- -se o pobre homem.

— Porquê?

— Porque nesta cidade ninguém me entende… Porque choro quando sofro e rio quando me alegro. Porque digo «boas-tardes» de tarde e «bons-dias» de manhã. Porque não tomo banho vestido. Porque acendo a luz elétrica de noite, etc. — Isso prova apenas que tens a cabeça no lugar próprio — consolou-o João Sem Medo. — Pois é… Mas julgas que alguém acredita em mim? Qual! Todos os dias publico artigos de propaganda no meu jornal clandestino: Mãos no Ar. Pois parece que ninguém os lê. Até hoje, na Cidade da Confusão só consegui arranjar cinquenta adeptos da minha doutrina. (…) As autoridades acusam-me de traidor, calcula. Dizem que quero destruir as tradições da Raça. Fundaram até um jornal de propósito para me refutarem: O Coice. Segundo eles, a posição de mãos no chão e pés no ar é puramente espiritual… Um coice nas estrelas… Um coice para as Alturas…

Não pôde prosseguir. Num burburinho súbito, meia dúzia de homens saltaram dum automóvel aéreo e, com a rapidez petulante dos profissionais de dominar homens, enfiaram-lhe uma camisa de forças, impuseram-lhe uma mordaça e, a pontamãos (comparáveis em violência aos nossos pontapés), arrastaram o desgraçado para o carro.

— Pelo que vejo o senhor é estrangeiro! — observava entretanto um dos assaltantes, dirigindo-se a João Sem Medo.

— E com muito prazer.

— Desculpe o acidente — resmoneou o outro. — Mas o senhor estava a falar com um doido perigoso, fugido do manicómio.

— Um doido?... Devem estar enganados… Pareceu-me inteiramente normal!... Contou-me que era diretor dum periódico…

— Mentira! — interveio outro dos assaltantes (enfermeiro? polícia?) com os olhos cheios de lágrimas de riso. — É um pobre doido com a mania de nos querer obrigar a trazer os pés no chão. Como se isso fosse possível!

— É verdade!... Como se isso fosse possível! – repetiram todos em coro, a chorar às gargalhadas.

Então, João Sem Medo tapou os ouvidos e desarvorou para a estação de caminho de ferro mais próxima.

 

José Gomes Ferreira, “Capítulo VII - A Cidade da Confusão” in Aventuras de João Sem Medo. Lisboa: Dom Quixote, 2012, pp. 70-74

 


Aventuras de João Sem Medo é um livro constituído por 15 capítulos, nos quais se descrevem as aventuras que João viveu, após saltar o Muro que separava Chora-Que-Logo-Bebes, onde vivia, e a Floresta Branca.

Escreve um texto expositivo em que apresentes as linhas fundamentais da leitura do capítulo VII, “A Cidade da Confusão”, do livro Aventuras de João Sem Medo. O teu texto deve incluir uma parte introdutória, uma parte de desenvolvimento e uma parte de conclusão, respeitando os seguintes pontos.

• Explicitação do significado da expressão “singular Cidade da Confusão”.

• Referência ao que está incluído na expressão “Esta estupidez”.

• Indicação do que é normalidade e loucura para João Sem Medo, para os assaltantes e para o homem que é levado numa camisa-de-força.

• Explicitação das razões que levaram à escolha do título Mãos no Ar para o periódico.

• Explicitação da intenção da existência do jornal O Coice.

• Razões para a fuga de João Sem Medo para a estação.

(Fonte: Letras & Companhia. Português 9.º Ano. Carla Marques e Inês Silva. Edições Asa, 2013, pág. 227)



quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Do meu país, Eduardo White


 

DO MEU PAÍS

Do meu país. Do país que eu amo, do país que eu temo,
do país que sangro para comer no pão, do país que quero,
do país que doo, do país que amasso como se fosse chão,
do país que tenho, do país que guardo, do país que sonho
como se o lesse na mão, do país que espero, cigarro etéreo,
do país que a minha vida inteira respirou, do país que
lavro, do país que rasgo, do país que a poesia me chorou,
do país com carne, do país com veias, do país que é onde
o sol se deitou, do país que fosse o país que é o país onde
o futuro abalroou, do país do amor, do país dos outros,
do país que é também tudo o que sou, do país chegado,
do país sem barcos, do país que à minha janela me levou.

 

Eduardo White, Até amanhã, coração. Maputo, Imprensa Universitária, 2005


segunda-feira, 10 de junho de 2024

A língua que falas e escreves


 

A língua que falas e escreves
é uma árvore de sons
que tem nos ramos as letras,
nas folhas os acentos
e nos frutos o sentido
de cada coisa que dizes.

É uma língua tão antiga
como isto de ser português.
Teve o latim por avô,
que primeiro foi romano,
depois bárbaro,
mais tarde monge medieval
ou copista do Renascimento.

A língua cresceu com o país,
que se alongou até ao sul
e depois chegou às ilhas,
vencendo os tormentos do mar.
O país ganhou a forma
de uma língua de terra
capaz de usar palavras
como “lonjura” e “saudade”.

Foi a língua da viagem,
do assombro e da aventura,
usada para relatar
descobertas e naufrágios,
triunfos e derrotas
nas mais remotas paragens,
enquanto os porões se enchiam
com as raras especiarias
que tanta fortuna fizeram.

É uma língua que se veste
de baiana no brasil,
ganhando feitiços de som
em Angola e Moçambique
e novos significados
lá para as bandas de Timor.
É uma língua que ajudou
a fazer o comércio e a guerra
mas que hoje prefere
usar os verbos da paz.

Esta é a língua dos escritores,
de Eça e de Camilo,
e de muitos outros mais,
dos semeadores de sons,
dos povoadores de versos
de todos os que dizem a quem começa:
Tratem bem a nossa língua,
pois se a tratam mal
nem imaginam o mal que fazem
a este Portugal.

Esta é a língua dos meninos
que brincam com as palavras
e fazem delas brinquedos
para alegrarem o recreio
das histórias mais bonitas
que alguém pode contar.

E o orgulho que temos
nesta língua portuguesa
irá do berço para a escola
e da escola para a rua,
pondo em cada palavra
uma pepita de ouro
e uma centelha de lua,
pois afinal esta língua
será sempre minha e tua.

 

José Jorge Letria, Esta Língua Portuguesa, Porto, Ambar, 2007

 

De acordo com a leitura do poema “A língua que falas e escreves”, de José Jorge Letria, classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas.

1. No poema utiliza-se a metáfora da árvore para descrever a estrutura e a complexidade da língua portuguesa, associando letras, acentos e sentidos a diferentes partes da árvore.

2. A língua portuguesa é descrita como uma língua moderna e recente.

3. A língua portuguesa tem uma história não muito influente fora de Portugal.

4. A língua portuguesa é apresentada no poema como um meio de comunicação associado exclusivamente a aspetos negativos, como guerras e conflitos.

5. A alusão a figuras centrais na tradição literária de Portugal reforça a ideia de que a língua é um património valioso que deve ser cuidado e valorizado.

6. O poema faz um apelo para que a língua portuguesa seja preservada e tratada com cuidado, ligando sua importância à identidade cultural portuguesa.

7. No poema sugere-se que a língua portuguesa é apenas um objeto de estudo e não tem relação com a infância ou o quotidiano.

8. No final do poema, a língua portuguesa é descrita como algo que carrega uma pepita de ouro e uma centelha de lua, simbolizando seu valor e beleza.

 

Respostas:

1. Verdadeiro.

2. Falso. O sujeito poético afirma que a língua portuguesa é tão antiga quanto ser português e que teve o latim como ancestral, o que sugere uma longa história e evolução.

3. Falso. A língua portuguesa tem uma longa história, estando espalhada por diversas regiões do mundo, incluindo as ex-colónias portuguesas.

4. Falso. O poema menciona que a língua portuguesa ajudou no comércio e na guerra, mas hoje prefere usar "verbos da paz", indicando uma valorização da comunicação pacífica.

5. Verdadeiro.

6. Verdadeiro.

7. Falso. N poema refere-se a língua portuguesa como sendo a língua dos meninos que brincam com as palavras e das histórias que alegram o recreio, mostrando a sua presença no quotidiano e na infância.

8. Verdadeiro.

 

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Hino Nacional, Carlos Drummond de Andrade


 

HINO NACIONAL


Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
Com água dos rios no meio,
O Brasil está dormindo, coitado
Precisamos colonizar o Brasil.

O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonetes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...

Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...

Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão
de seus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

 

Carlos Drummond de Andrade, Brejo das almas, 1934

 

***

 

O Brasil em versos: uma análise do poema “Hino Nacional” de Carlos Drummond de Andrade e a construção da identidade nacional

 

Brejo das Almas, além de título da obra, é também o nome de uma pequena cidade de Minas Gerais. Causa-nos espanto a “epígrafe” do livro, exaltando as potencialidades financeiras dessa cidade, enquanto seu nome remete a algo ruim, tenebroso. É nessa ideia dialética que se baseia a obra: através da ironia, na maioria dos poemas, o poeta revela a ambivalência do mundo e da realidade brasileira.

Quando Drummond publicou Brejo das Almas, em 1934, o país vivia um clima político que tinha pretensão de tornar os brasileiros orgulhosos de sua nação. E é nesse momento que surge o poema que iremos analisar, o “Hino Nacional”. Em meio à efervescência política da época, o poeta mineiro traz à tona o Brasil e sua brasilidade.

No poema, Drummond problematiza uma das inquietudes contemporâneas, a sensível e persistente reivindicação da identidade nacional, um lugar comum nos escritos da intelectualidade brasileira. Nomes como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros. Entretanto, diferente dos ensaios históricos, o eu-lírico irônico do poema parece desenhar a inviabilidade dessa representação simbólica do país. Principalmente se pensando de forma totalizante, como as características dos projetos românticos, e de certa forma dos modernistas.

À primeira leitura, verificamos que o título do poema contém grande valor simbólico, algo solene, heróico, histórico, que nos leva a pensar a identidade nacional, o espírito de nação, no sentido corrente da palavra. Antes mesmo de iniciar a leitura, o leitor mais afoito, pode imaginar, que se trata de mais um texto ressaltando a grandeza de nossa pátria, em seguida, um leitor mais atento, enxerga algo de irônico nas palavras do poeta. De qualquer forma o poema permite no mínimo duas leituras, uma no sentido literal e outro no sentido irônico1.

O poema se compõe de oito estrofes irregulares, onde o jogo semântico é destaque para o desenvolvimento das ideias. O texto é construído por dois tempos verbais: presente do indicativo e futuro. Podemos destacar no primeiro o caso, o verbo “Precisamos” grafado na primeira pessoa do plural, vem sempre acompanhado de um segundo verbo no infinitivo. Vejamos: precisamos descobrir, colonizar, educar, louvar, adorar e esquecer. A forma como os vocábulos são dispostos nos remete ao positivo, presente não só no hino oficial, como na bandeira nacional2.

Em seguida temos os verbos no futuro, também grafados na primeira pessoa do plural: faremos, compraremos, assimilaremos, abriremos, subvencionaremos, cuidaremos. É importante chamar a atenção que todos esses verbos, incluindo o “precisamos”, exprimem ação, movimento, e dão dinâmica aos textos -agindo no presente e no futuro- ao mesmo tempo em que nos remete ao passado. Drummond ainda brinca com verbos no gerúndio, que acaba dando um tom prolongado, acentuando a mansidão presente no texto, e porque não, no país. Um bom exemplo encontra-se já nos primeiros versos: o Brasil está dormindo, coitado.

Na primeira estrofe, quando Drummond diz: Precisamos descobrir o Brasil!/Escondido atrás das florestas, / com a água dos rios no meio, /o Brasil está dormindo, coitado. / Precisamos colonizar o Brasil. Em um primeiro momento, nos três primeiros versos, podemos pensar que ele se refere a um Brasil ainda desconhecido, que até hoje, apesar das depredações, aparenta ser um enigma. No quarto verso, nota-se uma referência ao Hino Nacional oficial, “Deitado eternamente em berço esplêndido”, e nitidamente percebe-se um tom irônico, a palavra “coitado”, uma espécie de “tadinho”, pobrezinho, uma diminuição daquilo, que ao menos teoricamente, deveria ser grandioso. No quinto verso, ele dá início a próxima estrofe, e de certa forma se completa uma fase da história, o Brasil precisa ser descoberto e colonizado. Mas por um acaso, já fomos descobertos e colonizados! Porque precisamos fazer isso novamente? O que há de errado com esse Brasil já descoberto e colonizado? Aqui cabe também a leitura irônica, onde “Não precisamos descobrir e nem precisamos colonizar”, tudo isso já foi feito.

Na segunda estrofe, o autor diz: O que faremos importando francesas/muito louras, de pele macia, /alemãs gordas, russas nostálgicas para/garçonnettes dos restaurantes noturnos. /E virão sírias fidelíssimas. /Não convém desprezar as japonesas. Logo no primeiro verso, vemos novamente a ironia do poeta, como colonizar um país com francesas, alemãs, russas e japonesas? Mas a pergunta do autor é, o que faremos? Se nos remetermos aos textos de Freyre, lembraremos que esse é um país fruto da hibridação. E se levarmos em conta a época do poema, lembraremos que nesse tempo, por motivos históricos, o Brasil recebeu um grande número de estrangeiros, o que nos leva de volta ao quinto verso da primeira estrofe, precisamos colonizar o Brasil, e essa nova “invasão” de estrangeiros pode ser encarada como uma nova colonização. Um novo processo de hibridização.

No entanto, o que há de mais interessante nessa estrofe, é que as mulheres não são mais índias, muito menos portuguesas, mas francesas, alemãs, russas, sírias e até japonesas, marcando um percurso de distanciamento geográfico (da Europa até o extremo oriente). Tal distanciamento sugere o afastamento entre o eu-lírico e a realidade, fazendo com que ele, o gauche, crie ironicamente uma realidade torta, que se aproxima da realidade criada por aqueles que tentam descrever o Brasil sem abandonar o caráter ideológico.

Ainda podemos perceber que as características dadas às mulheres citadas no poema, também têm um grande apelo histórico, além de um distanciamento espacial, temos as características dada a cada povo. As mulheres francesas são retratadas como delicadas, as alemãs gordas, em um país de clima tenso, onde já nessa época acontecia a perseguição aos judeus. Interessante notar que, o autor reserva para as russas uma palavra estrangeira que remete, de certa forma, ao capitalismo, quando ele diz: russas nostálgicas para/garçonnettes dos restaurantes noturnos; podemos encarar essa frase como saudade de uma liberdade que não existe mais, trata-se de um país dominado pela ditadura socialista. Já as mulheres orientais, com diferenças culturais e físicas mais distantes de nossa realidade, além de geograficamente estarem mais distantes, não devem ser esquecidas, as sírias são mais que fiéis – talvez devido a sua religião –, as japonesas, apesar da aparência mais esguia (diferente do padrão nacional) não merecem ser desprezadas, com certeza porque também possuem seus encantos.

Percebemos que a ordem dos países citados: França, Alemanha, Rússia, Síria e Japão - demonstra um passeio pelo mundo, da jovem América, para o berço da humanidade. Notemos ainda que, a miscigenação se faz presente em vários momentos da história nacional. Como se a cada momento o Brasil fosse “re-colonizado”.

Na terceira estrofe, percebe-se a influência do estrangeirismo na construção do saber nacional. Precisamos educar o Brasil. /Compraremos professores e livros, /assimilaremos finas culturas, /abriremos dancings e subvencionaremos as elites. Logo no primeiro verso, temos o verbo educar sustentado por outros verbos como “comprar”, “assimilar”, “abrir” e “subvencionar”. O clima agora é de seriedade irônica. O primeiro e o último verbos, assim como a toda a estrofe, dão um efeito de crítica ao capitalismo que reduz tudo à movimentação financeira. No segundo verso fica claro que temos uma cultura altamente influenciada pelo o que é estrangeiro, não apenas porque fomos colonizados por etnias e culturas diferentes, mas também, e principalmente, porque sempre consideramos o que vem de fora melhor do que o que é criado aqui. Por isso compramos nosso conhecimento, e assimilamos o que for fino, porque somos colônia, e o melhor vem de fora, da metrópole. Por exemplo, no segundo verso, “livros”, que são coisas, são colocados na mesma posição sintática de “professores”, o que os torna também coisas. No último verso, notamos, talvez, o início da influência da cultura norte-americana e sua manutenção cultural as elites brasileiras, principal responsável pela “importação” cultural brasileira.

Durante todo o poema, podemos perceber um tipo de discurso politiqueiro, precisamos disso, precisamos daquilo, mas no quarto parágrafo, essa questão fica um pouco mais clara, o tom irônico do eu-lírico nos revela algumas promessas utópicas: Cada brasileiro terá sua casa/com fogão e aquecedor elétrico, piscina, /salão para conferências científicas. /E cuidaremos do Estado Técnico. Os versos insinuam que todo brasileiro terá o mesmo padrão de vida, focado em um “Estado técnico” algo que nos remete novamente a influência positivista, o valor a ciência e a um estado laico, onde a industrialização e a modernidade estariam presentes. É também o sonho americano em terras tupiniquins. É uma visão do Brasil como o “país do futuro”, assim como no Hino Nacional oficial: “em teu futuro espelha essa grandeza”.

É importante ressaltar que durante toda a construção do poema a frase “Precisamos...”, pode ser encarada em seu sentido literal, como em um sentido irônico ou contrário à afirmação, “Não precisamos...”. Na quinta estrofe, Drummond começa com: “Precisamos louvar o Brasil”, ou seja, no sentido literal, precisamos de apreço e de elogios, enaltecer suas virtudes, agora, se levarmos em consideração o tom irônico do eu-lírico, teremos: “Não precisamos louvar o Brasil”, já estamos fartos de elogios. Nos versos seguintes se diz: Não é só um país sem igual. /Nossas revoluções são bem maiores/do que quaisquer outras; nossos erros também./E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões... /os Amazonas inenarráveis... os incríveis João - Pessoas...

Trata-se de um país diferente, “sem igual”, um colosso, tudo aqui é maior, mais exagerado, mais intenso. Assim como no hino oficial: Gigante pela própria natureza, És belo, és forte, impávido colosso, /E o teu futuro espelha essa grandeza. No terceiro verso ele demonstra isso falando das revoluções, que segundo o texto são maiores, se nos remetermos ao hino nacional teremos os seguintes versos: Paz no futuro e glória no passado. /Mas, se ergues da justiça a clava forte, /Verás que um filho teu não foge à luta, /Nem teme, quem te adora, a própria morte. No entanto, nunca houve uma revolução de facto no Brasil, assim como não houve um povo heróico de brado retumbante, ao menos não de forma literal.

Quando questiona nossas virtudes, o autor recorre às paixões carnais para destacar o que há de bom e de sublime no país. Interessante notar que o poeta ignora, propositalmente ou não, o grotesco, particularidade tão inerente a “identidade nacional”. Na quinta estrofe, as contradições são colocadas lado a lado ainda por via da ironia. Aqui se reconhece o Hino Nacional original através do pronome possessivo “nossos”, seguido de nomes identificáveis ao país. O que antes era “bosques” e “vida”, agora são “revoluções” (que de facto o Brasil nunca teve...), “erros” e “virtudes”, estes últimos colocados lado a lado numa antítese que é prolongada até os últimos versos dessa estrofe: “Amazonas inenarráveis”, com sua imensidão, está no mesmo plano de “João - Pessoas”, cidade e gentes tão pequenas...

No sexto verso ele faz uma referência a um facto histórico que pode ser lido de forma dúbia. “Os incríveis João – Pessoas”, que em um sentido literal pode ser lido como uma referência ao assassinato do político paraibano3 que deu nome à cidade de João Pessoa, ou em um sentido irônico uma alusão ao João Ninguém, que de repente se transforma em um super João Pessoa.

A sexta estrofe é marcada por dois momentos de meditação. No primeiro verso o autor continua dizendo, se considerarmos o sentido literal, que “Precisamos adorar o Brasil”, ou seja, mais que amá-lo temos que adorá-lo, reverenciá-lo. Nos outros cinco versos do poema, Drummond se vale de uma estrutura anafórica para expressar um momento mais meditativo, com a frase “Se bem que”, ele introduz uma modulação lógica.

Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão/no pobre coração já cheio de compromissos... /se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, /por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

Quem são esses homens a que se refere o eu - lírico? Seriam os pensadores, que tentam de todas as formas “encontrar ou construir” uma identidade nacional? Ou então os políticos que tentam criar uma nação enaltecida? Ou ambos, que por motivos diferentes ou não, querem ver o Brasil enquanto nação. Estaria ele falando dos modernistas, de Oswald e do Manifesto Antropófago? Ou estaria Drummond falando dele próprio e de todos nós? A frase deixa esse questionamento, não se fechando com qualquer resposta.

Na última estrofe, chegamos a um momento de dúvida, de ceticismo por parte do autor. Após descobrir, colonizar, educar, louvar e adorar, é chegada à hora de esquecer o Brasil, para isso ele enfatiza repetindo o verbo “precisamos” duas vezes. É um momento de reflexão, o que antes parecia ser uma exaltação, a um canto em louvor da nação, agora mostra-se como algo que devora.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão
os brasileiros?

É nesse ponto que Drummond tece sua mais árdua crítica. Logo no primeiro verso, quando enfatiza que é necessário que esqueçamos o Brasil, o poeta refere-se ao Brasil dos livros, dos sociólogos e de todos outros pesquisadores. O Brasil grande, colossal, de infinita beleza, tão bem retratado em seu hino oficial, assim como em seus livros de histórias. Chega desses carinhos, dessa louvação, adoração, dessa construção romântica (ou romanceada). No quarto verso: O Brasil não nos quer! Está farto de nós! – o Brasil está farto dessa obsessão em construir esse espírito nacional único, fechado, delimitado.

No sexto verso, mais provocação. “Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil”. É nesse ponto que fica clara uma questão recorrente no texto, o Brasil oficial não coincide com o Brasil real, logo ele não existe. É no famigerado último verso, que se reserva a mais polêmica frase. “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”. Segundo Raul Antelo4 “não é que o Brasil não exista. Não existe qualquer identidade como matéria. Toda identidade é um desenho imaginário que produz efeitos simbólicos5”.

Há um Brasil que precede o Estado e, consequentemente, não pode ser reduzido à imagem oficial. É como se o Brasil fosse um signo tão pleno de sentido que não pudesse ser apreendido por uma simples operação hermenêutica. O velho clichê parece prevalecer nessa leitura: tão exuberante quanto sua natureza, o Brasil, o Brasil em si mesmo, o Brasil bem brasileiro das declarações ufanistas, só pode ser sentido com o coração e não interpretado racionalmente, pois, ante a plenitude do objeto, a linguagem parece incapaz de expressá-lo (ROCHA).6

“Nenhum Brasil existe”, porque existem vários brasis, e não apenas um. Sua origem é feita de pluralidade, enquanto o mundo corre atrás para entender a diversidade, o Brasil, há décadas, tenta fazer o caminho contrário, em busca de sua identidade. Talvez, o que muitos ainda não tenham entendido é que, talvez, nossa identidade, seja não ter uma identidade fixa e única, e sim diversa, “multi”. Por isso, de forma geral e genérica, podemos dizer que, o que hoje se vive com a globalização cultural já acontecia aqui, em proporções bem menores é claro, uma vez que nossa colonização se deu com a mistura cultural e étnica. Não falamos um único português, falamos sim variações do português.

No fim do poema, o tom de ironia começa a se dissolver, dando lugar ao lirismo pessoal do eu - lírico. Após uma série de sucessivas “brincadeiras” acerca do cenário brasileiro, ele começa a divagar sobre a realidade que percebe com seu olhar gauche.

Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos...
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

A introdução da subjetividade é garantida pelo subjuntivo do verbo “ser” (seja). A exclamação, abandonada desde o primeiro verso, retorna para contrastar com o tom de seriedade e subjetividade que essa estrofe contém. Os versos são maiores, mais densos, gerando uma tensão que explodirá na última estrofe:

[...] Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

Nesse momento já não predomina a ironia; o poeta adquire um tom sério e tenso. É o momento do questionamento de todas as divagações feitas a respeito do que é o Brasil e como são os brasileiros, ao longo de toda a sua História. O que antes era apenas “o” Brasil, agora aparece também como “nosso” Brasil, “este” Brasil, e, por fim, “nenhum” Brasil. O nome do país adquire novos sentidos; não se trata de um Brasil físico, pois se assim o fosse, chegaríamos à conclusão de que o poeta estava delirando (no sentido literal do termo) ao compor o poema. Trata-se das ideologias formuladas acerca deste país, do Brasil dos livros e dos ideólogos, que fundiu um “hiato” de si com a realidade, como relatou Marlise Meyer (2001).

Luiz Costa Lima (1968) revelou a existência de um “princípio-corrosão” na poesia de Drummond: “Corrosão, como a empregamos, não se confunde com derrotismo ou absenteísmo. Ao contrário, no contexto drummondiano ela aparece como a maneira de assumir a História, de se pôr com ela em relação aberta” (p. 136).

Assim, ao analisar “Hino Nacional”, ele afirma que a corrosão atua na medida em que o tom de blague das primeiras estrofes se finda com a seriedade das últimas. Isso nos faz pensar que a blague não basta para explicar a realidade; mas também não quer dizer que ela seja totalmente ineficiente. Corrosão, como explicou Costa Lima, não é simples destruição, mas sim reinvenção. O eu-lírico ironiza o próprio discurso patriótico modernista, que, em alguns momentos, atribui rótulos deficientes ao caráter do brasileiro.

A ironia abarca em si as antíteses e ambivalências presentes em todo o poema, pois ela também é um instrumento ambivalente. Sant’anna argumenta que

Por sua origem, a ironia é um instrumento de defesa e funciona como elemento reparador nas relações entre o indivíduo e o grupo social. Possui natureza dupla: sendo sinal de desajustamento do indivíduo em relação ao grupo de pessoas (ou pessoa), é também elemento de comunicação entre eles, funcionando como “correction”. [...] O humor é a válvula de escape de tensões numa relação (1972, p. 61).

Partindo desse ponto, chegamos à conclusão de que a linha irônica que se traça no decorrer do poema, divide-o em várias perspectivas, alimentando as oposições, as contradições, as antíteses. Por outro lado, o humor, sendo uma “válvula de escape”, permite obter, através da palavra, uma transformação que se realize de alguma forma na realidade.

O desfecho do poema é dado com uma interrogação que pode ser transcrita de outras formas: o que é ser brasileiro? O que é o Brasil? Tais questões são sugeridas não para serem respondidas, o que resultaria em sua eliminação. Ao contrário, o poema propõe que elas estejam sempre presentes em qualquer tentativa de caracterização da identidade nacional, tentativas que não se devem cessar, já que são elas que alimentam a vida cultural de um povo.

 

Notas:

1 Falaremos disso mais adiante.

2 “Gigante pela própria natureza, é belo, és forte impávido colosso...”; “Ordem e Progresso”.

3 Os defensores de João Pessoa alegam que ele foi um combatente das oligarquias locais e se contrapunha aos interesses de grupos tradicionais, embora ele mesmo proviesse de família de oligarcas. Seu assassinato foi considerado o estopim da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Pessoa_Cavalcanti_de_Albuquerque/>. Acesso em: 06/07/08.

4 Professor da UFSC.

5 Diz Raul, em um de seus ensaios escritos para o jornal O Estado de São Paulo .

6 Autor do prefácio do livro Nenhum Brasil Existe.

 

Referências:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Brejo das almas. Rio de Janeiro: Record, 2001.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1995.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: EdUSP, 1994.

DAMATTA, Roberto. O que faz do Brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2001.

GOMES, Ângela Maria de Castro. Confronto e compromisso no processo de constitucionalização (1930-1935). In: O Brasil republicano. Vol. 3. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, p. 7-72.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 2001.

LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo: Ed. Unesp,

2002.

LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

MEYER, Marlise. Um eterno retorno: as descobertas do Brasil. In: Caminhos do imaginário no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 19-46.

ROCHA, João Cezar de Castro. Nenhum Brasil existe. Ed. Topbooks, 2001.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O gauche no tempo. Rio de Janeiro: Lia, INL, 1972.

 

Juliana Nascimento, Revista FACEVV | Vila Velha | Número 5 | Jul./Dez. 2010 | p. 68-75

 

***

 

Outra análise do poema “Hino Nacional”, de Carlos Drummond de Andrade

 

No poema “Hino Nacional” (OC, 2002, p. 51-52), extraído de Brejo das almas (1934), o poeta traz à tona o Brasil e sua brasilidade de forma crítico-reflexiva, irônica e bem-humorada.

O título do poema é uma alusão ao Hino Nacional brasileiro, um dos quatro símbolos da República Federativa do Brasil, cuja letra é de Joaquim Osório Duque Estrada (1870- 1927) e música de Francisco Manuel da Silva (1795- 1865). Seu caráter laudatório difere do poema em análise de tom crítico, reflexivo e contestatório. Antonio Cândido declara que a Literatura Brasileira assume um compromisso com a construção de uma nação: “[...] A literatura do Brasil, como a dos outros países latino-americanos, é marcada por este compromisso com a vida nacional no seu conjunto, circunstância que inexiste nas literaturas dos países de velha cultura” (1975, p. 18). Além da tonalidade do humor e da ironia, a poesia drummondiana apresenta um olhar arguto, perspicaz e comprometido com seu tempo em que “As leis não bastam”, por isso são necessárias palavras “roucas e duras, / irritadas, enérgicas” (OC, 2002, p. 125-130).

O poema “Hino Nacional”, composto de oito estrofes irregulares, é construído a partir de dois tempos verbais: presente do indicativo seguido de um verbo no infinitivo – “Precisamos descobrir”, “Precisamos colonizar”, “Precisamos educar”, “Precisamos louvar”, “Precisamos adorar” e Precisamos, precisamos esquecer”; futuro – “O que faremos importando francesas”, “Compraremos professores e livros”, “E cuidaremos do Estado Técnico”. Os verbos estão na primeira pessoa do plural, conferindo a ideia de que todos nós, poeta e leitores, reflitamos sobre Brasil e nosso papel em sua construção. O poeta brinca, ainda, com os verbos no gerúndio - “O Brasil está dormindo, coitado” - para conferir ao texto um tom de prolongamento e de mansidão. O país precisa ser conhecido e potencializado. Não pode e não deve permanecer “Deitado eternamente em berço esplêndido”.

Na segunda estrofe, o eu lírico questiona o que faremos importando francesas louras, alemãs gordas, russas nostálgicas, sírias fidelíssimas e as japonesas. O período da escritura de Brejo das almas (1934) é também o período mais intenso da imigração em solo brasileiro. Além disso, somos frutos de um processo de hibridação. A chegada de mais estrangeiros, leva-nos a pensar em um novo processo de colonização. Notar que as mulheres que chegam não são índias, tampouco portuguesas, marcando um distanciamento geográfico entre Europa e Oriente. Esse distanciamento é o mesmo vivenciado pelo eu lírico gauche e a realidade no qual ele está inserido.

Na estrofe seguinte, “Precisamos educar o Brasil”, o verbo educar vem acompanhado de outros, como comprar, assimilar, abrir e subvencionar. “Professores e livros” serão comprados. Na era da industrialização, pessoas são reduzidas à movimentação financeira. No quarto verso “assimilaremos finas culturas, / abriremos dancings e subvencionaremos as elites” a cultura-americana e as elites brasileiras são criticadas. Essa mesma análise já havia sido realizada pelos modernistas paulistas, sobretudo por Oswald de Andrade (1890-1954) em seu “Manifesto Antropofágico” publicado na Revista Antropofagia (1928-1929). Enquanto Drummond faz uma crítica à cultura estrangeira e às elites que a solidificam, Oswald apresenta uma proposta mais radical: devorar a cultura estrangeira e criar uma cultura nacional. Seria uma inversão de papéis: evoluiríamos da condição de devorado para devorador. O passado cultural seria engolido, um (novo) presente, construído. Atente-se, ainda, ao facto de que, ao longo do poema, o poeta diz do que precisamos e do que não precisamos.

Na quarta estrofe, em tom político, explicita-se uma (quase) promessa: “Cada brasileiro terá sua casa / com fogão e aquecedor elétricos, piscina, [...]”. Até os dias de hoje, é insinuado pelos governantes que cada brasileiro terá o mesmo padrão de vida, dentro de um estado laico, moderno e industrializado. O verso “E cuidaremos do Estado Técnico” remete-nos à influência científica e positivista que dominou o século XIX.

Somos uma “terra de sublimes paixões [...]”. Nesse instante, outra alusão é feita ao Hino Nacional “Nossos bosques têm mais vida / Nossa vida no teu seio mais amores”. Se palavra puxa palavra, diríamos que música/poema puxa poema, porque nos faz lembrar de “Canção do Exílio”*, do poeta Gonçalves Dias (1823-1864) “Nosso céu temais estrelas, / Nossas várzeas têm mais flores, / Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida mais amores”. O Hino Nacional traz em seu bojo os elogios que faltam ao poema drummondiano: “Gigante pela própria natureza / És belo, és forte, impávido colosso / E o teu futuro espelha essa grandeza” [...]. Somos uma nação apaixonada pelo samba e pelo futebol.

 

_________

* “Canção do Exílio” foi um poema escrito em 1843 e integra a obra lírica Primeiros Cantos (1843), composta pelo poeta romântico Gonçalves Dias; produzida em um momento de intenso nacionalismo, devido à recente separação entre a colônia brasileira e a metrópole portuguesa. A ordem é exaltar os valores naturais do Brasil. Quando o texto foi escrito, Dias cursava Faculdade de Direito em Coimbra. Vivia um exílio geográfico. Além de fazer alusão ao Hino Nacional, o poema alude à Canção Militar do Expedicionário (no trecho) “Por mais terras que eu percorra, não permita Deus que eu morra; Sem que volte para lá”.

 

Carlos Drummond de Andrade: O poeta na condição de leitor, Luciana Silva. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2021.

 

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

«O menino da sua mãe», Fernando Pessoa




O MENINO DA SUA MÃE

 





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No plaino1 abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
– Duas, de lado a lado –,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue2,
Fita com olhar langue3
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino de sua mãe”.

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

longe, em casa, há a prece:
Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe

 

s. d.

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  - 217.

1.ª publ. in Contemporânea, 3.ª série, nº 1. Lisboa: 1926.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2052

 

__________

1 plaino: planície.

2 exangue: sem sangue.

3 langue: mortiço; sem brilho.

 

Apresente, de forma estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Com base nas três estrofes iniciais, indique seis características de figura representada.

2. Explicite um dos efeitos de sentido resultantes da antítese que se estabelece, na primeira quintilha, entre os versos 2 e 5.

3. Interprete, no seu contexto, os seguintes versos: «Tão jovem! Que jovem era! /Agora que idade tem?» (vv. 11-12).

4. Refira dois dos valores simbólicos do par de objetos formado pela «cigarreira» e pelo «lenço» (vv. 17 e 24).

5. Comente a importância da última estrofe na construção do sentido geral do poema, apoiando-se em quatro aspetos significativos.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. A figura representada nas três estrofes iniciais do poema apresenta as seguintes características:

- é um «jovem» (v. 11) soldado morto (vv. 1-6);

- encontra-se abandonado, em campo aberto («No plaino abandonado» - v. 1);

- tem o corpo «trespassado» por duas balas (vv. 3-4);

- apresenta a farda ensanguentada (v. 6);

- está de braços abertos, «estendidos» sobre a terra (v. 7);

- é «louro», de tez muito clara {«Alvo» -v. 8};

- evidencia uma lividez cadavérica («exangue» - v. 8);

- mostra um olhar fixo e vazio (vv. 9-10);

- perdeu, prematuramente, o futuro e os sonhos·(«os céus perdidos» - v. 10);

-é «Filho único», muito amado («0 menino da sua mãe», conforme esta o tratava - vv. 13-15).

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de seis características.

2. A antítese presente na primeira estrofe («Que a morna brisa aquece», «Jaz morto, e arrefece» - vv. 2 e 5) produz, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:

- oposição entre o calor da vida e o frio da morte (o sopro do vento suave e tépido, simbolizando a vida, contrasta com a fria rigidez do corpo do soldado «trespassado» por duas balas);

- oposição entre o movimento da «brisa» e a imobilidade do jovem («Jaz»);

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a explicitação de um efeito de sentido.

3. Por um lado, estes versos exprimem o lamento do sujeito poético pela morte do jovem (veja-se a repetição da palavra «jovem», cujo sentido é intensificado pelos vocábulos «Tão» e «Que», introduzindo frases exclamativas); por outro lado, salientam quer a extrema juventude do soldado no momento em que morte, quer a perplexidade provocada pela nova temporalidade (ou ausência dela) instaurada pela morte: o soldado passa a ter uma idade indefinida («Agora que idade tem?»).

4. O par de objetos formado pela «cigarreira» e pelo «lenço» tem, entre outros, os valores simbólicos de:

- representação das figuras femininas protetoras - «a mãe» e «a criada / Velha»;

- presentificação do mundo distante da casa e da infância;

- ineficácia das preces da «mãe» e da «criada / Velha» (mediada pela inutilidade dos objetos que as representam);

- brevidade da vida, sugerida (por hipálage) pela expressão «cigarreira breve»;

- pureza (da infância perdida), expressa pela «brancura» do «lenço» (a cair da algibeira);

- paz, evocada pela «brancura» «alada» do «lenço»;

- contraste (dramático) entre o aspeto dos objetos materiais e o do cadáver do jovem que os possuiu («cigarreira» «inteira / E boa», «brancura» do «lenço» vs «Ele é que já não serve»);

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a referência a dois dos valores simbólicos.

5. Esta estrofe é particularmente relevante na medida em que:

- institui uma quase circularidade no poema, ao articular a primeira e a última quintilhas por meio da recuperação e da transformação do quinto verso da primeira estrofe no quarto verso da sexta;

- representa e realça, através da reiteração e transformação do quinto verso da primeira estrofe no quarto verso da sexta, a progressiva e inevitável degradação física do cadáver do jovem;

- estabelece uma simetria estrutural pela repetição do verso 15, localizado no centro do poema e reiterado, desse modo, no seu termo;

- faz convergir os sentidos do poema na expressão «0 menino da sua mãe» - título, verso central e verso final;

- evidencia a incomunicabilidade instaurada pela guerra e pela distância entre o «menino» e as figuras maternas, bem como a impotência destas perante a ameaça consumada da morte;

- expressa uma posição crítica de denúncia do poder político («O Império») que envia para a guerra os jovens e assim tece as «Malhas» da sua morte, absurda aos olhos de todos, sobretudo daqueles que mais os amam;

- intensifica o tom disfórico do poema, sublinhando os sentimentos de impotência e de perda;

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a mobilização de quatro aspetos significativos.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2006, 1.ª fase

 



 

Intertextualidade

 

O tema e a imagem central do poema “O menino da sua mãe” são retomados em “Tomamos a vila depois de um intenso bombardeamento”, em que se descreve, segundo o mesmo registo metafórico, a imagem da “criança loura” que “jaz no meio da rua” como um “pequeno peixe – dos que boiam nas banheiras – à beira da estrada”. Significativo é notar que como “o menino da sua mãe” está morto, os afetos maternais são suprimidos dessa descrição do menino, convertido, significativamente, em “criança loura”, apenas.

Caio Gagliardi, https://modernismo.pt/index.php/m/661-menino-de-sua-mae

 



 

TOMÁMOS A VILA DEPOIS DUM INTENSO BOMBARDEAMENTO

 

A criança loura
Jaz no meio da rua,
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.

A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
— Dos que boiam nas banheiras —
À beira da estrada.

Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro...

E o da criança loura?
 

s. d.

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).   - 247. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/1837

 


 

Outros autores do século XX retomaram o poema “O menino da sua mãe”, do seguinte modo:

 

O SOLDADO MORTO
 
Os infinitos céus fitam seu rosto
Absoluto e cego
E a brisa agora beija a sua boca
Que nunca mais há de beijar ninguém.
 
Tem as duas mãos côncavas ainda
De possessão de impulso de promessa.
Dos seus ombros desprende-se uma espera
Que dividida na tarde se dispersa.
 
E a luz as horas as colinas
São como pranto, em volta do seu rosto
Porque ele foi jogado e foi perdido
E no céu passam aves repentinas.


Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo, Lisboa, Guimarães Editores, 1958

 

Jaz morto e arrefece o menino da sua mãe” (1973)
 escultura de Clara Menéres

 

O MENINO DA SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece
De varas trespassado
— Duas, de cada lado —
Jaz exposto e arreféce.

Raia-lhe a farda o sangue
Da quádrupla função.
Nórdico mouro exangue
Fita com olhar langue
O que ainda tem na mão.

Que varonil quimera!
Agora, que vara tem?
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome, e o mantivera:
O menino de sua mãe.

Caiu-lhe da algibeira
A lapiseira breve.
Dera-lhe o pai. Está inteira
E boa a lapiseira,
Ele é que já não escreve.

De outra algibeira, alada
Espuma de porto covo,
A brancura manchada
De um lenço... Foi a criada
Quando êle era mais novo.

Lá longe — na Casa do Conto — há prece:
«Que morra cêdo, e bem!»
Malhas que o Império tece!
Ainda vive e parece
O menino de sua mãe.

 

Mário Cesariny Vasconcelos, O Virgem Negra, Assírio & Alvim, 1989

 

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.

 

 


O menino da sua mãe, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 06-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/o-menino-da-sua-mae-fernando-pessoa.html