E assim
João Sem Medo partiu para a singular Cidade da Confusão.
Os
habitantes dessa cidade, como já sabem, andavam de pernas no ar, usavam
gravatas na cintura, cintos no pescoço, galochas nas mãos e luvas nos pés. Os
prédios em que moravam não dispunham de portas nem de janelas. Entrava-se e
saía-se dos andares, através dos telhados, por intermédio de elevadores
montados nas paredes exteriores das fachadas. Outra particularidade a
distinguia das demais cidades: apresentava diariamente um aspeto panorâmico
novo, porque não possuía ruas fixas. Na verdade a Lei obrigava os donos dos
prédios a mudarem-nos todos os dias de orientação e de rua, segundo um plano de
barafunda paranoica estabelecido por poetas surreal reformados. Para esse fim,
e obedecendo a métodos de construção especiais, edificavam-nos sobre largas
plataformas metálicas com rodas, para se deslocarem com mais facilidade. Mercê
deste processo ideal, a confusão da Cidade atingia requintes impossíveis de
ultrapassar porque os habitantes ignoravam onde moravam.
Em
resumo: ninguém sabia a quantas andava. Os relógios não marcavam as horas, os
minutos e os segundos, mas os séculos. Os governantes, os professores e o escol intelectual, cuidadosamente escolhidos entre as pessoas mais insignificantes da
Cidade, pugnavam com denodo pela mumificação do
Disparate de pernas para o ar. E ai daquele que não pronunciasse pelo menos dez
asneiras por minuto. Ou não sujasse as grandes descobertas e empresas humanas
(como a energia atómica ou os satélites, por exemplo) com teorias imbecis de
amesquinhamento reles. Considerados moralmente mortos, os colegas tratavam logo
de excluí-los, sem relutância nem remorsos, das respetivas Academias e
Universidades.
Esta
estupidez, preceituada como uma das mais galhardas manifestações da alma da
Raça, cultivava-se desde a infância com esmeros maternais. As Escolas, onde os
mestres se selecionavam não pela ciência demonstrada mas pela maneira de trajar
e de fazer o nó na gravata, incumbiam-se de torcer os meninos até à
incapacidade perfeita. Ensinavam-lhes de propósito coisas sem significação,
palavras vazias, matérias inoperantes, ideias cadavéricas, sempre com mais de
duzentos anos, pelo menos, e que, conservadas em álcool, graças ao seu desuso
em cabeças vivas serviam para simulações de sistemas geniais recentes.
Também se
chamavam ursos aos raros estudiosos. E, por severa determinação legal, só os
incompetentes comprovados, com mais de 80% de erros ortográficos nas provas
escritas e total inépcia para acertar nas contas de dividir, podiam ocupar os
cargos cimeiros da Cidade da Confusão.
Por isso,
ouviam-se com frequência frases elogiosas deste género: «Fulano é um idiota
chapado! Está apto a solucionar todos os problemas, sobretudo os insolúveis! O
Poeta Tal é um imbecil de génio!», etc., etc.
No meio
desta trapalhada, em que tudo parecia desengonçar-se e fazer o pino, o pobre
João Sem Medo esforçava-se por se manter imune ao contágio, repugnando-lhe
aderir à lógica absurda de certos hábitos e cerimónias.
Assim,
por exemplo: porque é que os confusionistas se sentavam sempre de costas
voltadas para o palco a aplaudirem-se a si mesmos com delírio? (…) Porque
mandavam para os museus os quadros maus? Porque frequentavam as praias de
casaca e colarinhos de goma (consoante prescrevia a Lei), enquanto as mulheres
passeavam pelas ruas com vestidos de noite e iam a bailes de fato de banho? (…)
As
respostas a estas perguntas afiguravam-se tão precárias a João sem Medo que,
certa manhã, receoso de ficar com a cabeça do avesso, decidiu meter-se no
primeiro comboio (mesmo com asas) e safar-se da Cidade da Confusão.
Mas neste
entrementes, ao virar a última esquina antes da estação, esbarrou com um
indivíduo inquietante. Nada menos, nada mais do que um homem com os pés no
chão, as mãos no ar, chapéu na cabeça, gravata em redor do pescoço, cinto na
cintura e sapatos nos pés.
Caíram
nos braços um do outro como velhos amigos.
— Até que
enfim que encontro uma pessoa de juízo, um tipo normal — gritou João Sem Medo
eufórico.— Já tinha saudades, palavra.
— E eu,
então?... Ah!, quem me dera ter nascido na tua terra — queixou- -se o pobre
homem.
— Porquê?
— Porque
nesta cidade ninguém me entende… Porque choro quando sofro e rio quando me
alegro. Porque digo «boas-tardes» de tarde e «bons-dias» de manhã. Porque não
tomo banho vestido. Porque acendo a luz elétrica de noite, etc. — Isso prova
apenas que tens a cabeça no lugar próprio — consolou-o João Sem Medo. — Pois é…
Mas julgas que alguém acredita em mim? Qual! Todos os dias publico artigos de
propaganda no meu jornal clandestino: Mãos no Ar. Pois parece que
ninguém os lê. Até hoje, na Cidade da Confusão só consegui arranjar cinquenta
adeptos da minha doutrina. (…) As autoridades acusam-me de traidor, calcula.
Dizem que quero destruir as tradições da Raça. Fundaram até um jornal de
propósito para me refutarem: O Coice. Segundo eles, a posição de mãos no
chão e pés no ar é puramente espiritual… Um coice nas estrelas… Um coice para
as Alturas…
Não pôde
prosseguir. Num burburinho súbito, meia dúzia de homens saltaram dum automóvel
aéreo e, com a rapidez petulante dos profissionais de dominar homens,
enfiaram-lhe uma camisa de forças, impuseram-lhe uma mordaça e, a pontamãos
(comparáveis em violência aos nossos pontapés), arrastaram o desgraçado para o
carro.
— Pelo
que vejo o senhor é estrangeiro! — observava entretanto um dos assaltantes,
dirigindo-se a João Sem Medo.
— E com
muito prazer.
—
Desculpe o acidente — resmoneou o outro. — Mas o senhor estava a falar com um
doido perigoso, fugido do manicómio.
— Um
doido?... Devem estar enganados… Pareceu-me inteiramente normal!...
Contou-me que era diretor dum periódico…
—
Mentira! — interveio outro dos assaltantes (enfermeiro? polícia?) com os olhos
cheios de lágrimas de riso. — É um pobre doido com a mania de nos querer
obrigar a trazer os pés no chão. Como se isso fosse possível!
— É
verdade!... Como se isso fosse possível! – repetiram todos em coro, a chorar às
gargalhadas.
Então,
João Sem Medo tapou os ouvidos e desarvorou para a estação de caminho de ferro
mais próxima.
José
Gomes Ferreira, “Capítulo VII - A Cidade da Confusão” in Aventuras de João
Sem Medo. Lisboa: Dom Quixote, 2012, pp. 70-74
Aventuras
de João Sem Medo é um livro constituído por 15 capítulos,
nos quais se descrevem as aventuras que João viveu, após saltar o Muro que separava
Chora-Que-Logo-Bebes, onde vivia, e a Floresta Branca.
Escreve um texto expositivo em que apresentes as linhas fundamentais da leitura do capítulo VII, “A Cidade da
Confusão”, do livro Aventuras de João Sem
Medo. O teu texto deve incluir uma parte introdutória, uma parte de
desenvolvimento e uma parte de conclusão, respeitando os seguintes pontos.
• Explicitação do significado da
expressão “singular Cidade da Confusão”.
• Referência ao que está incluído
na expressão “Esta estupidez”.
• Indicação do que é normalidade
e loucura para João Sem Medo, para os assaltantes e para o homem que é levado
numa camisa-de-força.
• Explicitação das razões que
levaram à escolha do título Mãos no Ar
para o periódico.
• Explicitação da intenção da
existência do jornal O Coice.
• Razões para a fuga de João Sem
Medo para a estação.
Do meu país. Do país que eu amo, do país que eu temo,
do país que sangro para comer no pão, do país que quero,
do país que doo, do país que amasso como se fosse chão,
do país que tenho, do país que guardo, do país que sonho
como se o lesse na mão, do país que espero, cigarro etéreo,
do país que a minha vida inteira respirou, do país que
lavro, do país que rasgo, do país que a poesia me chorou,
do país com carne, do país com veias, do país que é onde
o sol se deitou, do país que fosse o país que é o país onde
o futuro abalroou, do país do amor, do país dos outros,
do país que é também tudo o que sou, do país chegado,
do país sem barcos, do país que à minha janela me levou.
Eduardo White, Até amanhã, coração. Maputo, Imprensa Universitária, 2005
A língua que falas e escreves
é uma árvore de sons
que tem nos ramos as letras,
nas folhas os acentos
e nos frutos o sentido
de cada coisa que dizes.
É uma língua tão antiga
como isto de ser português.
Teve o latim por avô,
que primeiro foi romano,
depois bárbaro,
mais tarde monge medieval
ou copista do Renascimento.
A língua cresceu com o país,
que se alongou até ao sul
e depois chegou às ilhas,
vencendo os tormentos do mar.
O país ganhou a forma
de uma língua de terra
capaz de usar palavras
como “lonjura” e “saudade”.
Foi a língua da viagem,
do assombro e da aventura,
usada para relatar
descobertas e naufrágios,
triunfos e derrotas
nas mais remotas paragens,
enquanto os porões se enchiam
com as raras especiarias
que tanta fortuna fizeram.
É uma língua que se veste
de baiana no brasil,
ganhando feitiços de som
em Angola e Moçambique
e novos significados
lá para as bandas de Timor.
É uma língua que ajudou
a fazer o comércio e a guerra
mas que hoje prefere
usar os verbos da paz.
Esta é a língua dos escritores,
de Eça e de Camilo,
e de muitos outros mais,
dos semeadores de sons,
dos povoadores de versos
de todos os que dizem a quem começa:
Tratem bem a nossa língua,
pois se a tratam mal
nem imaginam o mal que fazem
a este Portugal.
Esta é a língua dos meninos
que brincam com as palavras
e fazem delas brinquedos
para alegrarem o recreio
das histórias mais bonitas
que alguém pode contar.
E o orgulho que temos
nesta língua portuguesa
irá do berço para a escola
e da escola para a rua,
pondo em cada palavra
uma pepita de ouro
e uma centelha de lua,
pois afinal esta língua
será sempre minha e tua.
José Jorge Letria, Esta Língua Portuguesa, Porto,
Ambar, 2007
De acordo com a leitura do poema “A língua que
falas e escreves”, de José Jorge Letria, classifica cada afirmação que se segue
como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas.
1.
No
poema utiliza-se a metáfora da árvore para descrever a estrutura e a
complexidade da língua portuguesa, associando letras, acentos e sentidos a
diferentes partes da árvore.
2.
A
língua portuguesa é descrita como uma língua moderna e recente.
3.
A
língua portuguesa tem uma história não muito influente fora de Portugal.
4. A língua portuguesa é apresentada no poema como um meio de
comunicação associado exclusivamente a aspetos negativos, como guerras e
conflitos.
5. A alusão a figuras centrais na tradição literária de Portugal reforça
a ideia de que a língua é um património valioso que deve ser cuidado e
valorizado.
6. O poema faz um apelo para que a língua portuguesa seja
preservada e tratada com cuidado, ligando sua importância à identidade cultural
portuguesa.
7.
No
poema sugere-se que a língua portuguesa é apenas um objeto de estudo e não tem
relação com a infância ou o quotidiano.
8.
No
final do poema, a língua portuguesa é descrita como algo que carrega uma pepita
de ouro e uma centelha de lua, simbolizando seu valor e beleza.
Respostas:
1. Verdadeiro.
2. Falso. O sujeito poético afirma que a
língua portuguesa é tão antiga quanto ser português e que teve o latim como ancestral,
o que sugere uma longa história e evolução.
3. Falso. A língua portuguesa
tem uma longa história, estando espalhada por diversas regiões do mundo,
incluindo as ex-colónias portuguesas.
4. Falso. O poema menciona que a
língua portuguesa ajudou no comércio e na guerra, mas hoje prefere usar
"verbos da paz", indicando uma valorização da comunicação pacífica.
5. Verdadeiro.
6. Verdadeiro.
7. Falso. N poema refere-se a língua portuguesa como sendo a língua dos meninos que brincam com as palavras
e das histórias que alegram o recreio, mostrando a sua presença no quotidiano e
na infância.
Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
Com água dos rios no meio,
O Brasil está dormindo, coitado
Precisamos colonizar o Brasil.
O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonetes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...
Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.
Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.
Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...
Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão
de seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
Carlos Drummond de Andrade, Brejo das almas, 1934
***
O Brasil
em versos: uma análise do poema “Hino Nacional” de Carlos Drummond de Andrade e
a construção da identidade nacional
Brejo das Almas,
além de título da obra, é também o nome de uma pequena cidade de Minas Gerais. Causa-nos
espanto a “epígrafe” do livro, exaltando as potencialidades financeiras dessa
cidade, enquanto seu nome remete a algo ruim, tenebroso. É nessa ideia
dialética que se baseia a obra: através da ironia, na maioria dos poemas, o
poeta revela a ambivalência do mundo e da realidade brasileira.
Quando Drummond publicou Brejo
das Almas, em 1934, o país vivia um clima político que
tinha pretensão de tornar os brasileiros orgulhosos de sua nação. E é nesse
momento que surge o poema que iremos analisar, o “Hino Nacional”. Em meio à
efervescência política da época, o poeta mineiro traz à tona o Brasil e sua
brasilidade.
No poema, Drummond problematiza uma das
inquietudes contemporâneas, a sensível e persistente reivindicação da
identidade nacional, um lugar comum nos escritos da intelectualidade
brasileira. Nomes como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, entre
outros. Entretanto, diferente dos ensaios históricos, o eu-lírico irônico do
poema parece desenhar a inviabilidade dessa representação simbólica do país.
Principalmente se pensando de forma totalizante, como as características dos projetos
românticos, e de certa forma dos modernistas.
À primeira leitura, verificamos que o título
do poema contém grande valor simbólico, algo solene, heróico, histórico, que
nos leva a pensar a identidade nacional, o espírito de nação, no sentido
corrente da palavra. Antes mesmo de iniciar a leitura, o leitor mais afoito,
pode imaginar, que se trata de mais um texto ressaltando a grandeza de nossa
pátria, em seguida, um leitor mais atento, enxerga algo de irônico nas palavras
do poeta. De qualquer forma o poema permite no mínimo duas leituras, uma no sentido
literal e outro no sentido irônico1.
O poema se compõe de oito estrofes
irregulares, onde o jogo semântico é destaque para o desenvolvimento das
ideias. O texto é construído por dois tempos verbais: presente do indicativo e futuro.
Podemos destacar no primeiro o caso, o verbo “Precisamos” grafado na primeira
pessoa do plural, vem sempre acompanhado de um segundo verbo no infinitivo.
Vejamos: precisamos descobrir, colonizar, educar, louvar, adorar e esquecer. A
forma como os vocábulos são dispostos nos remete ao positivo, presente não só
no hino oficial, como na bandeira nacional2.
Em seguida temos os verbos no futuro, também
grafados na primeira pessoa do plural: faremos, compraremos, assimilaremos,
abriremos, subvencionaremos, cuidaremos. É importante chamar a atenção que
todos esses verbos, incluindo o “precisamos”, exprimem ação, movimento, e dão
dinâmica aos textos -agindo no presente e no futuro- ao mesmo tempo em que nos
remete ao passado. Drummond ainda brinca com verbos no gerúndio, que acaba
dando um tom prolongado, acentuando a mansidão presente no texto, e porque não,
no país. Um bom exemplo encontra-se já nos primeiros versos: o Brasil está
dormindo, coitado.
Na primeira estrofe, quando Drummond diz:
Precisamos descobrir o Brasil!/Escondido atrás das florestas, / com a água dos
rios no meio, /o Brasil está dormindo, coitado. / Precisamos colonizar o Brasil.
Em um primeiro momento, nos três primeiros versos, podemos pensar que ele se
refere a um Brasil ainda desconhecido, que até hoje, apesar das depredações,
aparenta ser um enigma. No quarto verso, nota-se uma referência ao Hino
Nacional oficial, “Deitado eternamente em berço esplêndido”, e nitidamente
percebe-se um tom irônico, a palavra “coitado”, uma espécie de “tadinho”,
pobrezinho, uma diminuição daquilo, que ao menos teoricamente, deveria ser
grandioso. No quinto verso, ele dá início a próxima estrofe, e de certa forma
se completa uma fase da história, o Brasil precisa ser descoberto e colonizado.
Mas por um acaso, já fomos descobertos e colonizados! Porque precisamos fazer
isso novamente? O que há de errado com esse Brasil já descoberto e colonizado?
Aqui cabe também a leitura irônica, onde “Não precisamos descobrir e nem
precisamos colonizar”, tudo isso já foi feito.
Na segunda estrofe, o autor diz: O que
faremos importando francesas/muito louras, de pele macia, /alemãs gordas,
russas nostálgicas para/garçonnettes dos restaurantes noturnos. /E virão sírias
fidelíssimas. /Não convém desprezar as japonesas. Logo no primeiro verso, vemos
novamente a ironia do poeta, como colonizar um país com francesas, alemãs,
russas e japonesas? Mas a pergunta do autor é, o que faremos? Se nos remetermos
aos textos de Freyre, lembraremos que esse é um país fruto da hibridação. E se
levarmos em conta a época do poema, lembraremos que nesse tempo, por motivos
históricos, o Brasil recebeu um grande número de estrangeiros, o que nos leva
de volta ao quinto verso da primeira estrofe, precisamos colonizar o Brasil, e
essa nova “invasão” de estrangeiros pode ser encarada como uma nova
colonização. Um novo processo de hibridização.
No entanto, o que há de mais interessante
nessa estrofe, é que as mulheres não são mais índias, muito menos portuguesas,
mas francesas, alemãs, russas, sírias e até japonesas, marcando um percurso de
distanciamento geográfico (da Europa até o extremo oriente). Tal distanciamento
sugere o afastamento entre o eu-lírico e a realidade, fazendo com que ele, o gauche,
crie ironicamente uma realidade torta, que se aproxima da realidade criada por
aqueles que tentam descrever o Brasil sem abandonar o caráter ideológico.
Ainda podemos perceber que as características
dadas às mulheres citadas no poema, também têm um grande apelo histórico, além
de um distanciamento espacial, temos as características dada a cada povo. As
mulheres francesas são retratadas como delicadas, as alemãs gordas, em um país
de clima tenso, onde já nessa época acontecia a perseguição aos judeus.
Interessante notar que, o autor reserva para as russas uma palavra estrangeira
que remete, de certa forma, ao capitalismo, quando ele diz: russas nostálgicas
para/garçonnettes dos restaurantes noturnos; podemos encarar essa frase como
saudade de uma liberdade que não existe mais, trata-se de um país dominado pela
ditadura socialista. Já as mulheres orientais, com diferenças culturais e
físicas mais distantes de nossa realidade, além de geograficamente estarem mais
distantes, não devem ser esquecidas, as sírias são mais que fiéis – talvez
devido a sua religião –, as japonesas, apesar da aparência mais esguia (diferente
do padrão nacional) não merecem ser desprezadas, com certeza porque também
possuem seus encantos.
Percebemos que a ordem dos países citados:
França, Alemanha, Rússia, Síria e Japão - demonstra um passeio pelo mundo, da
jovem América, para o berço da humanidade. Notemos ainda que, a miscigenação se
faz presente em vários momentos da história nacional. Como se a cada momento o Brasil
fosse “re-colonizado”.
Na terceira estrofe, percebe-se a influência
do estrangeirismo na construção do saber nacional. Precisamos educar o Brasil.
/Compraremos professores e livros, /assimilaremos finas culturas, /abriremos
dancings e subvencionaremos as elites. Logo no primeiro verso, temos o verbo
educar sustentado por outros verbos como “comprar”, “assimilar”, “abrir” e
“subvencionar”. O clima agora é de seriedade irônica. O primeiro e o último
verbos, assim como a toda a estrofe, dão um efeito de crítica ao capitalismo
que reduz tudo à movimentação financeira. No segundo verso fica claro que temos
uma cultura altamente influenciada pelo o que é estrangeiro, não apenas porque
fomos colonizados por etnias e culturas diferentes, mas também, e
principalmente, porque sempre consideramos o que vem de fora melhor do que o
que é criado aqui. Por isso compramos nosso conhecimento, e assimilamos o que
for fino, porque somos colônia, e o melhor vem de fora, da metrópole. Por
exemplo, no segundo verso, “livros”, que são coisas, são colocados na mesma posição
sintática de “professores”, o que os torna também coisas. No último verso,
notamos, talvez, o início da influência da cultura norte-americana e sua
manutenção cultural as elites brasileiras, principal responsável pela
“importação” cultural brasileira.
Durante todo o poema, podemos perceber um
tipo de discurso politiqueiro, precisamos disso, precisamos daquilo, mas no
quarto parágrafo, essa questão fica um pouco mais clara, o tom irônico do eu-lírico
nos revela algumas promessas utópicas: Cada brasileiro terá sua casa/com fogão
e aquecedor elétrico, piscina, /salão para conferências científicas. /E
cuidaremos do Estado Técnico. Os versos insinuam que todo brasileiro terá o
mesmo padrão de vida, focado em um “Estado técnico” algo que nos remete
novamente a influência positivista, o valor a ciência e a um estado laico, onde
a industrialização e a modernidade estariam presentes. É também o sonho
americano em terras tupiniquins. É uma visão do Brasil como o “país do futuro”,
assim como no Hino Nacional oficial: “em teu futuro espelha essa grandeza”.
É importante ressaltar que durante toda a
construção do poema a frase “Precisamos...”, pode ser encarada em seu sentido
literal, como em um sentido irônico ou contrário à afirmação, “Não precisamos...”.
Na quinta estrofe, Drummond começa com: “Precisamos louvar o Brasil”, ou seja,
no sentido literal, precisamos de apreço e de elogios, enaltecer suas virtudes,
agora, se levarmos em consideração o tom irônico do eu-lírico, teremos: “Não
precisamos louvar o Brasil”, já estamos fartos de elogios. Nos versos seguintes
se diz: Não é só um país sem igual. /Nossas revoluções são bem maiores/do que
quaisquer outras; nossos erros também./E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
/os Amazonas inenarráveis... os incríveis João - Pessoas...
Trata-se de um país diferente, “sem igual”,
um colosso, tudo aqui é maior, mais exagerado, mais intenso. Assim como no hino
oficial: Gigante pela própria natureza, És belo, és forte, impávido colosso, /E
o teu futuro espelha essa grandeza. No terceiro verso ele demonstra isso
falando das revoluções, que segundo o texto são maiores, se nos remetermos ao
hino nacional teremos os seguintes versos: Paz no futuro e glória no passado.
/Mas, se ergues da justiça a clava forte, /Verás que um filho teu não foge à
luta, /Nem teme, quem te adora, a própria morte. No entanto, nunca houve uma
revolução de facto no Brasil, assim como não houve um povo heróico de brado
retumbante, ao menos não de forma literal.
Quando questiona nossas virtudes, o autor
recorre às paixões carnais para destacar o que há de bom e de sublime no país.
Interessante notar que o poeta ignora, propositalmente ou não, o grotesco, particularidade
tão inerente a “identidade nacional”. Na quinta estrofe, as contradições são
colocadas lado a lado ainda por via da ironia. Aqui se reconhece o Hino
Nacional original através do pronome possessivo “nossos”, seguido de nomes
identificáveis ao país. O que antes era “bosques” e “vida”, agora são
“revoluções” (que de facto o Brasil nunca teve...), “erros” e “virtudes”, estes
últimos colocados lado a lado numa antítese que é prolongada até os últimos
versos dessa estrofe: “Amazonas inenarráveis”, com sua imensidão, está no mesmo
plano de “João - Pessoas”, cidade e gentes tão pequenas...
No sexto verso ele faz uma referência a um facto
histórico que pode ser lido de forma dúbia. “Os incríveis João – Pessoas”, que
em um sentido literal pode ser lido como uma referência ao assassinato do
político paraibano3 que deu nome à cidade de João Pessoa, ou em um
sentido irônico uma alusão ao João Ninguém, que de repente se transforma em um
super João Pessoa.
A sexta estrofe é marcada por dois momentos
de meditação. No primeiro verso o autor continua dizendo, se considerarmos o
sentido literal, que “Precisamos adorar o Brasil”, ou seja, mais que amá-lo temos
que adorá-lo, reverenciá-lo. Nos outros cinco versos do poema, Drummond se vale
de uma estrutura anafórica para expressar um momento mais meditativo, com a
frase “Se bem que”, ele introduz uma modulação lógica.
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e
tanta solidão/no pobre coração já cheio de compromissos... /se bem que seja
difícil compreender o que querem esses homens, /por que motivo eles se
ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
Quem são esses homens a que se refere o eu -
lírico? Seriam os pensadores, que tentam de todas as formas “encontrar ou
construir” uma identidade nacional? Ou então os políticos que tentam criar uma nação
enaltecida? Ou ambos, que por motivos diferentes ou não, querem ver o Brasil
enquanto nação. Estaria ele falando dos modernistas, de Oswald e do Manifesto
Antropófago? Ou estaria Drummond falando dele próprio e
de todos nós? A frase deixa esse questionamento, não se fechando com qualquer
resposta.
Na última estrofe, chegamos a um momento de
dúvida, de ceticismo por parte do autor. Após descobrir, colonizar, educar,
louvar e adorar, é chegada à hora de esquecer o Brasil, para isso ele enfatiza repetindo
o verbo “precisamos” duas vezes. É um momento de reflexão, o que antes parecia
ser uma exaltação, a um canto em louvor da nação, agora mostra-se como algo que
devora.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirãoos
brasileiros?
É nesse ponto que Drummond tece sua mais
árdua crítica. Logo no primeiro verso, quando enfatiza que é necessário que
esqueçamos o Brasil, o poeta refere-se ao Brasil dos livros, dos sociólogos e
de todos outros pesquisadores. O Brasil grande, colossal, de infinita beleza,
tão bem retratado em seu hino oficial, assim como em seus livros de histórias. Chega
desses carinhos, dessa louvação, adoração, dessa construção romântica (ou
romanceada). No quarto verso: O Brasil não nos quer! Está farto de nós! – o
Brasil está farto dessa obsessão em construir esse espírito nacional único,
fechado, delimitado.
No sexto verso, mais provocação. “Nosso
Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil”. É nesse ponto que fica clara uma
questão recorrente no texto, o Brasil oficial não coincide com o Brasil real,
logo ele não existe. É no famigerado último verso, que se reserva a mais
polêmica frase. “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”.
Segundo Raul Antelo4 “não é que o Brasil não exista. Não existe qualquer
identidade como matéria. Toda identidade é um desenho imaginário que produz
efeitos simbólicos5”.
Há um Brasil que
precede o Estado e, consequentemente, não pode ser reduzido à imagem oficial. É
como se o Brasil fosse um signo tão pleno de sentido que não pudesse ser apreendido
por uma simples operação hermenêutica. O velho clichê parece prevalecer nessa leitura:
tão exuberante quanto sua natureza, o Brasil, o Brasil em si mesmo, o Brasil
bem brasileiro das declarações ufanistas, só pode ser sentido com o coração e
não interpretado racionalmente, pois, ante a plenitude do objeto, a linguagem
parece incapaz de expressá-lo (ROCHA).6
“Nenhum Brasil existe”, porque existem vários
brasis, e não apenas um. Sua origem é feita de pluralidade, enquanto o mundo
corre atrás para entender a diversidade, o Brasil, há décadas, tenta fazer o
caminho contrário, em busca de sua identidade. Talvez, o que muitos ainda não
tenham entendido é que, talvez, nossa identidade, seja não ter uma identidade
fixa e única, e sim diversa, “multi”. Por isso, de forma geral e genérica,
podemos dizer que, o que hoje se vive com a globalização cultural já acontecia
aqui, em proporções bem menores é claro, uma vez que nossa colonização se deu com
a mistura cultural e étnica. Não falamos um único português, falamos sim
variações do português.
No fim do poema, o tom de ironia começa a se
dissolver, dando lugar ao lirismo pessoal do eu - lírico. Após uma série de
sucessivas “brincadeiras” acerca do cenário brasileiro, ele começa a divagar
sobre a realidade que percebe com seu olhar gauche.
Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos...
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
A introdução da subjetividade é garantida
pelo subjuntivo do verbo “ser” (seja).
A exclamação, abandonada desde o primeiro verso, retorna para contrastar com o
tom de seriedade e subjetividade que essa estrofe contém. Os versos são
maiores, mais densos, gerando uma tensão que explodirá na última estrofe:
[...] Precisamos, precisamos esquecer o
Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
Nesse momento já não predomina a ironia; o
poeta adquire um tom sério e tenso. É o momento do questionamento de todas as
divagações feitas a respeito do que é o Brasil e como são os brasileiros, ao
longo de toda a sua História. O que antes era apenas “o” Brasil, agora aparece
também como “nosso” Brasil, “este” Brasil, e, por fim, “nenhum” Brasil. O nome
do país adquire novos sentidos; não se trata de um Brasil físico, pois se assim
o fosse, chegaríamos à conclusão de que o poeta estava delirando (no sentido
literal do termo) ao compor o poema. Trata-se das ideologias formuladas acerca deste
país, do Brasil dos livros e dos ideólogos, que fundiu um “hiato” de si com a
realidade, como relatou Marlise Meyer (2001).
Luiz Costa Lima (1968) revelou a existência
de um “princípio-corrosão” na poesia de Drummond: “Corrosão, como a empregamos,
não se confunde com derrotismo ou absenteísmo. Ao contrário, no contexto
drummondiano ela aparece como a maneira de assumir a História, de se pôr com
ela em relação aberta” (p. 136).
Assim, ao analisar “Hino Nacional”, ele
afirma que a corrosão atua na medida em que o tom de blague
das primeiras estrofes se finda com a
seriedade das últimas. Isso nos faz pensar que a blague
não basta para explicar a realidade; mas
também não quer dizer que ela seja totalmente ineficiente. Corrosão, como
explicou Costa Lima, não é simples destruição, mas sim reinvenção. O eu-lírico
ironiza o próprio discurso patriótico modernista, que, em alguns momentos,
atribui rótulos deficientes ao caráter do brasileiro.
A ironia abarca em si as antíteses e
ambivalências presentes em todo o poema, pois ela também é um instrumento
ambivalente. Sant’anna argumenta que
Por sua origem, a
ironia é um instrumento de defesa e funciona como elemento reparador nas
relações entre o indivíduo e o grupo social. Possui natureza dupla: sendo sinal
de desajustamento do indivíduo em relação ao grupo de pessoas (ou pessoa), é
também elemento de comunicação entre eles, funcionando como “correction”.
[...] O humor é a válvula de escape de tensões numa relação (1972, p.
61).
Partindo desse ponto, chegamos à conclusão de
que a linha irônica que se traça no decorrer do poema, divide-o em várias
perspectivas, alimentando as oposições, as contradições, as antíteses. Por outro
lado, o humor, sendo uma “válvula de escape”, permite obter, através da
palavra, uma transformação que se realize de alguma forma na realidade.
O desfecho do poema é dado com uma
interrogação que pode ser transcrita de outras formas: o que é ser brasileiro?
O que é o Brasil? Tais questões são sugeridas não para serem respondidas, o que
resultaria em sua eliminação. Ao contrário, o poema propõe que elas estejam
sempre presentes em qualquer tentativa de caracterização da identidade
nacional, tentativas que não se devem cessar, já que são elas que alimentam a
vida cultural de um povo.
Notas:
1
Falaremos disso mais adiante.
2
“Gigante pela própria natureza, é belo, és forte impávido
colosso...”; “Ordem e Progresso”.
3
Os defensores de João Pessoa alegam que ele foi um combatente das
oligarquias locais e se contrapunha aos interesses de grupos tradicionais,
embora ele mesmo proviesse de família de oligarcas. Seu assassinato foi
considerado o estopim da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Pessoa_Cavalcanti_de_Albuquerque/>.
Acesso em: 06/07/08.
4
Professor da UFSC.
5
Diz Raul, em um de seus ensaios escritos para o jornal O
Estado de São Paulo .
6
Autor do prefácio do livro Nenhum
Brasil Existe.
Referências:
ANDRADE,
Carlos Drummond de. Brejo das almas.
Rio de Janeiro: Record, 2001.
BARROS,
Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto.
São Paulo: Ática, 1990.
BOSI,
Alfredo. História concisa da literatura
brasileira. São Paulo:
Cultrix, 1995.
CANDIDO,
Antonio. O estudo analítico do poema.
São Paulo: EdUSP, 1994.
DAMATTA,
Roberto. O que faz do Brasil, Brasil?.
Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
FREYRE,
Gilberto. Casa grande & senzala.
Rio de Janeiro: Record, 2001.
GOMES,
Ângela Maria de Castro. Confronto e compromisso no processo de
constitucionalização (1930-1935). In: O Brasil
republicano. Vol. 3.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, p. 7-72.
HOLANDA,
Sérgio Buarque. Raízes do Brasil.
Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 2001.
LEITE,
Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro:
história de uma ideologia. São Paulo: Ed. Unesp,
2002.
LIMA,
Luiz Costa. Lira e antilira.
Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
MEYER,
Marlise. Um eterno retorno: as descobertas do Brasil. In: Caminhos
do imaginário no Brasil. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2001, p. 19-46.
ROCHA,
João Cezar de Castro. Nenhum Brasil existe.
Ed. Topbooks, 2001.
SANT’ANNA,
Affonso Romano de. O gauche no tempo.
Rio de Janeiro: Lia, INL, 1972.
Juliana
Nascimento, Revista FACEVV | Vila Velha | Número 5 | Jul./Dez. 2010 |
p. 68-75
***
Outra
análise do poema “Hino Nacional”, de Carlos Drummond de Andrade
No poema “Hino Nacional” (OC, 2002, p.
51-52), extraído de Brejo das almas(1934), o poeta traz à tona o
Brasil e sua brasilidade de forma crítico-reflexiva, irônica e bem-humorada.
O título do poema é uma alusão ao Hino
Nacional brasileiro, um dos quatro símbolos da República Federativa do Brasil,
cuja letra é de Joaquim Osório Duque Estrada (1870- 1927) e música de Francisco
Manuel da Silva (1795- 1865). Seu caráter laudatório difere do poema em análise
de tom crítico, reflexivo e contestatório. Antonio Cândido declara que a Literatura
Brasileira assume um compromisso com a construção de uma nação: “[...] A literatura
do Brasil, como a dos outros países latino-americanos, é marcada por este compromisso
com a vida nacional no seu conjunto, circunstância que inexiste nas literaturas
dos países de velha cultura” (1975, p. 18). Além da tonalidade do humor
e da ironia, a poesia drummondiana apresenta um olhar arguto, perspicaz e
comprometido com seu tempo em que “As leis não bastam”, por isso são
necessárias palavras “roucas e duras, / irritadas, enérgicas” (OC, 2002, p.
125-130).
O poema “Hino Nacional”, composto de
oito estrofes irregulares, é construído a partir de dois tempos verbais:
presente do indicativo seguido de um verbo no infinitivo – “Precisamos
descobrir”, “Precisamos colonizar”, “Precisamos educar”, “Precisamos louvar”, “Precisamos
adorar” e Precisamos, precisamos esquecer”; futuro – “O que faremos importando francesas”,
“Compraremos professores e livros”, “E cuidaremos do Estado Técnico”. Os verbos
estão na primeira pessoa do plural, conferindo a ideia de que todos nós, poeta
e leitores, reflitamos sobre Brasil e nosso papel em sua construção. O poeta
brinca, ainda, com os verbos no gerúndio - “O Brasil está dormindo, coitado” -
para conferir ao texto um tom de prolongamento e de mansidão. O país precisa
ser conhecido e potencializado. Não pode e não deve permanecer “Deitado
eternamente em berço esplêndido”.
Na segunda estrofe, o eu lírico
questiona o que faremos importando francesas louras, alemãs gordas, russas
nostálgicas, sírias fidelíssimas e as japonesas. O período da escritura de Brejo
das almas(1934) é também o período mais intenso da imigração em
solo brasileiro. Além disso, somos frutos de um processo de hibridação. A chegada
de mais estrangeiros, leva-nos a pensar em um novo processo de colonização.
Notar que as mulheres que chegam não são índias, tampouco portuguesas, marcando
um distanciamento geográfico entre Europa e Oriente. Esse distanciamento é o
mesmo vivenciado pelo eu lírico gauche e a realidade no qual ele está
inserido.
Na estrofe seguinte, “Precisamos educar
o Brasil”, o verbo educar vem acompanhado de outros, como comprar, assimilar,
abrir e subvencionar. “Professores e livros” serão comprados. Na era da industrialização,
pessoas são reduzidas à movimentação financeira. No quarto verso “assimilaremos
finas culturas, / abriremos dancings e subvencionaremos as elites” a
cultura-americana e as elites brasileiras são criticadas. Essa mesma análise já
havia sido realizada pelos modernistas paulistas, sobretudo por Oswald de
Andrade (1890-1954) em seu “Manifesto Antropofágico” publicado na Revista
Antropofagia (1928-1929). Enquanto Drummond faz uma crítica à cultura
estrangeira e às elites que a solidificam, Oswald apresenta uma proposta mais
radical: devorar a cultura estrangeira e criar uma cultura nacional. Seria uma inversão
de papéis: evoluiríamos da condição de devorado para devorador. O passado
cultural seria engolido, um (novo) presente, construído. Atente-se, ainda, ao
facto de que, ao longo do poema, o poeta diz do que precisamos e do que não
precisamos.
Na quarta estrofe, em tom político,
explicita-se uma (quase) promessa: “Cada brasileiro terá sua casa / com fogão e
aquecedor elétricos, piscina, [...]”. Até os dias de hoje, é insinuado pelos
governantes que cada brasileiro terá o mesmo padrão de vida, dentro de um estado
laico, moderno e industrializado. O verso “E cuidaremos do Estado Técnico”
remete-nos à influência científica e positivista que dominou o século XIX.
Somos uma “terra de sublimes paixões
[...]”. Nesse instante, outra alusão é feita ao Hino Nacional “Nossos bosques
têm mais vida / Nossa vida no teu seio mais amores”. Se palavra puxa palavra,
diríamos que música/poema puxa poema, porque nos faz lembrar de “Canção do
Exílio”*, do poeta
Gonçalves Dias (1823-1864) “Nosso céu temais estrelas, / Nossas várzeas têm
mais flores, / Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida mais amores”. O Hino
Nacional traz em seu bojo os elogios que faltam ao poema drummondiano: “Gigante
pela própria natureza / És belo, és forte, impávido colosso / E o teu futuro
espelha essa grandeza” [...]. Somos uma nação apaixonada pelo samba e pelo
futebol.
_________
*
“Canção do Exílio” foi um poema escrito em 1843 e integra a obra lírica Primeiros
Cantos (1843), composta pelo poeta romântico Gonçalves Dias; produzida em
um momento de intenso nacionalismo, devido à recente separação entre a colônia
brasileira e a metrópole portuguesa. A ordem é exaltar os valores naturais do
Brasil. Quando o texto foi escrito, Dias cursava Faculdade de Direito em
Coimbra. Vivia um exílio geográfico. Além de fazer alusão ao Hino Nacional, o
poema alude à Canção Militar do Expedicionário (no trecho) “Por mais terras que
eu percorra, não permita Deus que eu morra; Sem que volte para lá”.
Apresente, de forma estruturada, as suas
respostas ao questionário.
1. Com base nas três estrofes iniciais, indique seis características
de figura representada.
2. Explicite um dos efeitos de sentido resultantes da antítese
que se estabelece, na primeira quintilha, entre os versos 2 e 5.
3. Interprete, no seu contexto, os seguintes versos: «Tão jovem!
Que jovem era! /Agora que idade tem?» (vv. 11-12).
4. Refira dois dos valores simbólicos do par de objetos formado
pela «cigarreira» e pelo «lenço» (vv. 17 e 24).
5. Comente a importância da última estrofe na construção do sentido
geral do poema, apoiando-se em quatro aspetos significativos.
Explicitação de cenários de resposta:
1.
A figura representada nas três estrofes iniciais do poema apresenta as
seguintes características:
- é um «jovem» (v. 11) soldado morto (vv.
1-6);
- encontra-se abandonado, em campo aberto
(«No plaino abandonado» - v. 1);
- tem o corpo «trespassado» por duas balas
(vv. 3-4);
- apresenta a farda ensanguentada (v. 6);
- está de braços abertos, «estendidos»
sobre a terra (v. 7);
- é «louro», de tez muito clara {«Alvo» -v.
8};
- evidencia uma lividez cadavérica («exangue»
- v. 8);
- mostra um olhar fixo e vazio (vv. 9-10);
- perdeu, prematuramente, o futuro e os sonhos·(«os
céus perdidos» - v. 10);
-é «Filho único», muito amado («0 menino da
sua mãe», conforme esta o tratava - vv. 13-15).
Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de seis
características.
2.
A antítese presente na primeira estrofe («Que a morna brisa aquece», «Jaz
morto, e arrefece» - vv. 2 e 5) produz, entre outros, os seguintes efeitos de
sentido:
- oposição entre o calor da vida e o frio
da morte (o sopro do vento suave e tépido, simbolizando a vida, contrasta com a
fria rigidez do corpo do soldado «trespassado» por duas balas);
- oposição entre o movimento da «brisa» e a
imobilidade do jovem («Jaz»);
- …
Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a explicitação de um
efeito de sentido.
3.
Por um lado, estes versos exprimem o lamento do sujeito poético pela morte do
jovem (veja-se a repetição da palavra «jovem», cujo sentido é intensificado
pelos vocábulos «Tão» e «Que», introduzindo frases exclamativas); por outro
lado, salientam quer a extrema juventude do soldado no momento em que morte,
quer a perplexidade provocada pela nova temporalidade (ou ausência dela) instaurada
pela morte: o soldado passa a ter uma idade indefinida («Agora que idade tem?»).
4.
O par de objetos formado pela «cigarreira» e pelo «lenço» tem, entre outros, os
valores simbólicos de:
- representação das figuras femininas protetoras
- «a mãe» e «a criada / Velha»;
- presentificação do mundo distante da casa
e da infância;
- ineficácia das preces da «mãe» e da
«criada / Velha» (mediada pela inutilidade dos objetos que as representam);
- brevidade da vida, sugerida (por hipálage)
pela expressão «cigarreira breve»;
- pureza (da infância perdida), expressa
pela «brancura» do «lenço» (a cair da algibeira);
- paz, evocada pela «brancura» «alada» do
«lenço»;
- contraste (dramático) entre o aspeto dos
objetos materiais e o do cadáver do jovem que os possuiu («cigarreira» «inteira
/ E boa», «brancura» do «lenço» vs «Ele é que já não serve»);
- …
Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a referência a dois
dos valores simbólicos.
5.
Esta estrofe é particularmente relevante na medida em que:
- institui uma quase circularidade no
poema, ao articular a primeira e a última quintilhas por meio da recuperação e
da transformação do quinto verso da primeira estrofe no quarto verso da sexta;
- representa e realça, através da
reiteração e transformação do quinto verso da primeira estrofe no quarto verso
da sexta, a progressiva e inevitável degradação física do cadáver do jovem;
- estabelece uma simetria estrutural pela
repetição do verso 15, localizado no centro do poema e reiterado, desse modo,
no seu termo;
- faz convergir os sentidos do poema na
expressão «0 menino da sua mãe» - título, verso central e verso final;
- evidencia a incomunicabilidade instaurada
pela guerra e pela distância entre o «menino» e as figuras maternas, bem como a
impotência destas perante a ameaça consumada da morte;
- expressa uma posição crítica de denúncia
do poder político («O Império») que envia para a guerra os jovens e assim tece
as «Malhas» da sua morte, absurda aos olhos de todos, sobretudo daqueles que
mais os amam;
- intensifica o tom disfórico do poema, sublinhando
os sentimentos de impotência e de perda;
- …
Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a mobilização de
quatro aspetos significativos.
Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano
de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e
Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2006, 1.ª
fase
Intertextualidade
O tema e a
imagem central do poema “O menino da sua mãe” são retomados em “Tomamos a vila
depois de um intenso bombardeamento”, em que se descreve, segundo o mesmo
registo metafórico, a imagem da “criança loura” que “jaz no meio da rua” como
um “pequeno peixe – dos que boiam nas banheiras – à beira da estrada”.
Significativo é notar que como “o menino da sua mãe” está morto, os afetos
maternais são suprimidos dessa descrição do menino, convertido,
significativamente, em “criança loura”, apenas.
A criança loura
Jaz no meio da rua,
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.
A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
— Dos que boiam nas banheiras —
À beira da estrada.
Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro...
E o da criança loura?
s. d.
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota
explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942
(15ª ed. 1995). - 247. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/1837
Outros autores
do século XX retomaram o poema “O menino da sua mãe”, do seguinte modo:
O SOLDADO MORTO
Os infinitos céus fitam seu rosto
Absoluto e cego
E a brisa agora beija a sua boca
Que nunca mais há de beijar ninguém.
Tem as duas mãos côncavas ainda
De possessão de impulso de promessa.
Dos seus ombros desprende-se uma espera
Que dividida na tarde se dispersa.
E a luz as horas as colinas
São como pranto, em volta do seu rosto
Porque ele foi jogado e foi perdido
E no céu passam aves repentinas.
“O menino da sua mãe, Fernando
Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 06-01-2023.
Disponível em:https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/o-menino-da-sua-mae-fernando-pessoa.html