terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Era uma criatura oca vazia por fora vazia por dentro, João Habitualmente

 


A CRIATURA

 

Era uma criatura oca

vazia por fora

vazia por dentro

nem alta nem baixa

nem nova nem velha

de feitio brutal e forma barroca

 

Era tão oca

que nem o vento a enchia

nem a chuva a molhava

e o vento soprava e a chuva chovia

nada disso a movia

 

oca da cabeça aos pés

por cima e por baixo

de frente e de esguelha

oca de lés-a-lés

castanha cinzenta

e cinzenta castanha

nem o raio a tolhia

nem o sol a suava

 

Era uma criatura que se auto-devorava

 

comia a boca

com a sua própria boca

dava urros

aos seus próprios murros

deglutia as entranhas

e outras coisas  tamanhas

era oca e bacoca

dum cinza metal

não tinha cabeça

porque a tinha no estômago

e tinha tijolos no lugar dos miolos

era oca e bestial

comendo com a própria boca

mesmo a parte mais oca

a oca vazia

mesmo essa comia

 

Certa bela manhã

saciada de si

saltou para as ruas espalhando terrores

rompeu a roncar

largando vapores

comeu três poetas

e meia dúzia de artistas

comeu os livreiros e os alfarrabistas

pintou a manta e matou três pintores

 

Era uma criatura oca

tão oca e vazia

que todos olhavam e ninguém a via

tanto cirandou

que fez o que quis

roubou a princesa

comprou um polícia

e casou c’o juiz

 

Um dia

já de certa idade

subiu ao poder e comeu a cidade

 

João Habitualmente, De minha máquina com teu corpo

Cadernos do Campo Alegre/14, Porto, Fundação Ciência e Desenvolvimento, 2010

 

***

 

EM TODA A CASA

 

pelas paredes cheira ainda à tua pele cutânea

 

mas desde que te foste estar aqui é oco,

cansativo, uma espera. E às vezes (como se

tivéssemos chorado) respirar custa.

 

sobretudo nada apetece.

sair para a rua? Ir então em frente a repetir

os passos, passear nas avenidas a espaçar as

horas – dispersar a espera?

 

tudo cinzento. Choverá?

aqui é que não fico. No quarto onde dormimos

o espaço sobra, e cada coisa já morreu ou está a mais.

em toda a casa uma violência subterrânea:

a tua ausência

 

João Habitualmente, Os animais antigos

Vila do Conde, Objecto Cardíaco, 2006. ISBN 972-8983-04-2

 

José Luís Fernandes (Porto, 1961)
(João Habitualmente na poesia e 
Célio Lopes na prosa)


 

“João Habitualmente” [é o] pseudónimo do reconhecido professor universitário portuense (na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação daquela cidade) e cronista jornalístico José Luís Fernandes.

A sua poesia possui um carácter, a vários níveis, peculiar, primando pela celebração explícita do desejo sexual e por um humor repleto de sátira social e provocação descarnada, numa espécie de versão bocagiana atualizada para os nossos dias.

 

Paulo Pires, [ poesia vinte e um ], Antologia de 21 vozes poéticas da nova geração disponível em https://issuu.com/esteoficiodepoeta/docs/antologia_poesia_21

Biblioteca Municipal de Silves, 21 de março de 2021


 


CARREIRO, José. “Era uma criatura oca vazia por fora vazia por dentro, João Habitualmente”. Portugal, Folha de Poesia, 18-01-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/01/era-uma-criatura-oca-vazia-por-fora.html


segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Comigo desaprendes os gestos de outras vidas, Jorge Gomes Miranda

Nova Identidade, Jorge Gomes Miranda

 

PARIS

 

No café, enquanto falava tocava-me

fugazmente o braço.

Ia imaginando

como seria se ela percorresse com um dedo

a minha face,

os meus lábios inseguros

a segurarem as palavras,

um pouco da vida.

 

Afastei-lhe os cabelos da face,

de um modo suave,

como se dissesse: «Comigo desaprendes

os gestos de outras vidas.

Não queiras continuar

sozinha por mais tempo.»

 

Jorge Gomes Miranda, Nova Identidade,

Lisboa, edição Tinta da China, julho 2021. ISBN: 978-989-671-616-5

 


Jorge Gomes Miranda (1965)

 


NUM ÚNICO VOLUME, CINCO LIVROS DE JORGE GOMES MIRANDA QUE SÓ EXISTIAM EM EDIÇÃO DE AUTOR

Jorge Gomes Miranda estava, como se diz de forma equívoca, «desaparecido» há década e meia? Fazer não é o mesmo que aparecer, como documentam os doze livrinhos em edição fora do mercado que o autor entretanto publicou. Este volume reedita cinco dessas coletâneas de circulação restrita: O Muro das Jubilações, regresso aos «dias aladinescos» da infância e juventude, com as aulas, as raparigas, as piscinas, os livros, os lugares, mas também com o registo da delapidação da paisagem e do desaparecimento de espécies; Nova Identidade, investigação urbana, policial e amorosa onde o culpado, como escreveu Auden, é sempre o tempo; A Herança, inventário terno e magoado de objetos e ausências; Por Baldios, a Garça e A História de Uma Enxurrada, fábulas com espectros, reencontros, desamparos. Autobiográficos, narrativos e comunicativos, sem descurarem a forma, estes poemas reivindicam bens que continuam um bem, ainda que apenas na memória, e esconjuram males que vêm com a idade ou com a sociedade do espetáculo. Confissões uns, invenções outros, monólogos dramáticos, imprecações, têm em comum uma ética que consiste na interrogação exigente daquilo que fica e daquilo que passa: «E pergunto: as coisas ainda existem?»

 

Pedro Mexia, https://tintadachina.pt/produto/nova-identidade/, julho 2021

 



CARREIRO, José. “Comigo desaprendes os gestos de outras vidas, Jorge Gomes Miranda”. Portugal, Folha de Poesia, 17-01-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/01/comigo-desaprendes-os-gestos-de-outras.html



quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Eu vou pedir emprestado a palavra POESIA


 

SAMBA DA UTOPIA

 

Se o mundo ficar pesado

Eu vou pedir emprestado

A palavra POESIA

 

Se o mundo emburrecer

Eu vou rezar pra chover

Palavra SABEDORIA

 

Se o mundo andar pra trás

Vou escrever num cartaz

A palavra REBELDIA

 

Se a gente desanimar

Eu vou colher no pomar

A palavra TEIMOSIA

 

Se acontecer afinal

De entrar em nosso quintal

A palavra tirania

 

Pegue o tambor e o ganza

Vamos pra rua gritar

A palavra UTOPIA

 


Jonathan Silva: voz

Ceumar Coelho - participação encantada: voz

Filpo Ribeiro: viola dinâmica

Lucas Brogiolo: percussão

Marcos Coin: violão

Coro: Karen Menatti, Lilian de Lima, Eva Figueiredo, Cris Raséc, Luciana Rizzo, Dinho Lima Flor, William Guedes, Rodrigo Mercadante e Lucas Vedovoto.

Gravado no Juá Estúdio

Vídeo: Bruta Flor Filmes




CARREIRO, José. “Eu vou pedir emprestado a palavra POESIA”. Portugal, Folha de Poesia, 12-01-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/01/eu-vou-pedir-emprestado-palavra-poesia.html