terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

A Velha do Restelo

Giorgione - La Vecchia

 

A Velha do Restelo | por Frederico Lourenço

O Velho do Restelo - lamento chocar-vos - talvez não seja um homem. Poderá ser uma mulher. Estaríamos a falar, no fundo, da Velha do Restelo.

Por incrível que pareça, foi na jesuítica revista «Brotéria» que se deu o primeiro passo que levaria, ulteriormente, ao desvendamento da identidade escondida do Velho do Restelo, concretamente no número que saiu em Novembro de 1980.

Nesse volume da revista, o Dr. Joaquim Carvalho publicava um artigo sobre Os Lusíadas em que argumentava o conhecimento, por parte de Camões, do poema «Argonáutica», escrito por Apolónio de Rodes no século III antes da era cristã.

Segundo a análise feita pelo Dr. Carvalho a passos do poema «Argonáutica» (na tradução latina que Camões lera) e a passos d' Os Lusíadas, haveria pormenores de riquíssimo significado que não eram compreensíveis, na epopeia camoniana, a não ser que aceitássemos que Camões estava a remeter para o antigo poema helenístico.

Li o artigo do Dr. Carvalho há muitos anos e, de imediato, a pista de vasculhar em Apolónio de Rodes galvanizou a minha atenção. Seria possível....? Faria sentido....? Seria aqui que eu encontraria a base para justificar a minha intuição de que o Velho do Restelo era, na realidade, uma Velha....?

Pensei logo na estância IV.90 d' Os Lusíadas, em que uma mãe chorosa se despede do filho que vai embarcar para a Índia.

Meu Deus.... parecia-me óbvio! Estes versos eram a recriação camoniana da despedida chorosa da mãe de Jasão, antes de o filho embarcar para a Cólquida («Argonáutica» I.261-291).

Pus-me, na altura, a estudar debaixo do microscópio o Canto I da «Argonáutica», comparando-o com o canto IV d' Os Lusíadas. Não me saía da cabeça a ideia obsessiva de que o Velho do Restelo era um disfarce da VelhA do Restelo.

A resposta apareceu em dois versos misteriosos do poema de Apolónio de Rodes («Argonáutica» I.315-316). Esses versos fizeram-me perceber que o Velho agoirento de Camões é o desenvolvimento de algo que Apolónio elide.

Ou seja: Camões faz-nos ouvir a voz à qual Apolónio tira a fala. As palavras que ficaram por dizer no poema do século III a.C. são ditas, pela pena de Camões, no século XVI português.

Que palavras são essas? No poema de Apolónio, somos colocados perante este momento de mistério e de silêncio: no momento em que os Argonautas estão já a dirigir-se para a nau, avança ao seu encontro uma mulher idosa.

Esta anciã é sacerdotisa de Ártemis e tem algo de urgente para dizer ao herói, Jasão. No entanto, a multidão arrasta o herói até à praia, antes que a anciã consiga verbalizar a sua profecia.

Apolónio pinta em dois versos a imagem da Velha deixada para trás. Vêmo-la sozinha, silenciosa, na berma do caminho. As palavras que lhe ficaram atravessadas na garganta nunca mais serão proferidas - mas Apolónio consegue transmitir a sensação quase palpável de que a sua importância é (ou teria sido) premente.

Nunca mais serão proferidas? Teriam ficado para sempre não ditas, se Camões não tivesse ressuscitado a velha sacerdotisa de Ártemis, colocando as palavras que ela nunca pôde dizer em voz alta na boca do Velho do Restelo:

«Vã cobiça.... ó fraudulento gosto.... Que mortes, que perigos, que tormentas, que crueldades.... Dura inquietação d'alma.... mísera sorte, estranha condição!»

Ora diz-se que os maiores intérpretes literários não são as pessoas das Letras, mas sim as pessoas dos sons, criadoras de música. Ninguém entendeu melhor Goethe do que o compositor Hugo Wolf; ninguém entendeu melhor a poesia de Michelangelo do que o mesmo Wolf ou Benjamin Britten; ninguém entendeu melhor a poesia de Rainer Maria Rilke do que Paul Hindemith.

Em 1975, um jovem de 12 anos chamado Frederico assistiu, no Teatro Nacional de São Carlos, à récita da ópera «O Canto da Ocidental Praia», de António Vitorino d'Almeida. A ópera não foi especialmente bem recebida pelo público e a segunda coisa de que me lembro dessa ocasião foi de ouvir a minha mãe no intervalo, a conversar com o que se chamava na altura o grupo dos «habitués» de São Carlos, sobre a última récita em que a minha mãe lá tinha ouvido ópera. E todos diziam que, no «Così fan tutte» de Mozart, Teresa Stich-Randall tinha sido sublime. O que equivalia a dizer que a presente ópera portuguesa, com os seus cantores portugueses, não era grande coisa.

Se a ópera era grande coisa ou não já não vos saberia dizer -

nem eu confiaria hoje naquilo que teria sido meu gosto musical aos 12 anos. Mas há, de facto, uma coisa dessa récita que ficou na minha cabeça para sempre: a figura do Velho do Restelo, que entra em cena a cantar «Ó vã cobiça!». Não me esquecerei nunca do chapéu à infante D. Henrique na cabeça da cantora.

Sim, da cantora. Porque o Velho do Restelo - pelo menos é essa a minha recordação - foi cantado por uma mulher, Dulce Cabrita.

Em 1975, os jesuítas da «Brotéria» ainda não tinham publicado o artigo que levaria a que, graças ao Dr. Carvalho e (já agora) à minha modesta pessoa, todos percebêssemos o que poderia estar por trás desta intuição artística.

Mesmo sem o Dr. Carvalho e sem estas especulações do futuro Frederico Lourenço (que, em 1975, como já referi, ainda só tinha 12 anos), mesmo assim, a abrir o Verão quente de 1975, o Velho do Restelo assumira-se no palco do Teatro Nacional como Velha do Restelo, saudosa de uma «Idade d'ouro» que, sem que ela o soubesse, estava lentamente a nascer: o Portugal do pós 25 de Abril, de que todas e todos nos podemos orgulhar.

 

Frederico Lourenço, Coimbra, 24-02-2024

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sábado, 17 de fevereiro de 2024

Mar Me Quer


 

Mar Me Quer

 

O Mar me quer, eu sou feliz só por preguiça
deixei escapar a maré, adormecido
Zeca Perpétuo, sou reformado do mar
tenho juízo de mamba pelo seu olhar

Mar me quer, bem me quer 
Canto chão de luarmina
o coração é uma praia
diz Celestiano à menina

Mar me quer, bem me quer 
com olhos de tubarão
meu avô falava certo
quem demora tem razão

Todas as noites despetalou flores a mulata 
Dona Luarmina, minha vizinha 
logo de manhã passa sonhos pelo rosto 
atrasa a ruga, impede o tempo

 

Letra e música de João Afonso

 

João Afonso Lima (Beira, 1965) é um cantor português. Viveu em Moçambique até 1978, com seus pais e irmãos. Colheu influências da música urbana africana e da música popular portuguesa, esta última pela influência de Zeca Afonso, seu tio materno. A sua colaboração em Maio Maduro Maio (1994), em parceria com José Mário Branco e Amélia Muge, valeu-lhe a atribuição do Prémio José Afonso.

Cristina Mielczarski Santos, A ponte entre a palavra da alma e a palavra do papel: epistolário ficcional miacoutiano. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras, 2013. http://hdl.handle.net/10183/77153

 

***

 

O poema "Mar Me Quer" de João Afonso é uma adaptação musical da novela Mar Me Quer, do escritor moçambicano Mia Couto, cuja leitura se encontra orientada na nossa página da Lusofonia.

Na novela Mar Me Quer, «Mulata Luarmina e Zeca Perpétuo partilham território de vizinhança, chão de terra tão mais velho que eles, olhando o mar que é sempre quem mais viaja.

Luarmina ensombreada de um qualquer silêncio, que de tão longo parece segredo, entardece todos os dias na companhia de Zeca, ouvindo as histórias que vão povoando a paisagem.

Zeca Perpétuo sonha sempre o mesmo: se embrulhar com ela, arrastá-la numa grande onda que os faça inexistir.

Luarmina foi aprendendo mil defesas para as insistências namoradeiras de Zeca, mas um dia resolve negociar falas e outras proximidades, não em troca de aventuras sonhiscadas de Zeca, mas de suas exatas memórias.

E como diz o avô Celestiano "o coração é uma praia", em que o mar, porque nos quer, acaricia memórias e apazigua ausências.

Avô Celestiano é a sabedoria do tempo. Mas também é o fabricador de sonhos. Por via dos sonhos, ele visita os vivos e conduz, na sombra dos aléns, os destinos e os amores de Zeca e Luarmina.

"O que faz andar a estrada? … o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. … para isso que servem os caminhos. Para nos fazerem parentes do futuro." (Mia Couto, Mar Me Quer

 

Natália Luiza, Mar me quer, Coimbra, Cena Lusófona, 2002(Adaptação dramatúrgica da novela homónima de Mia Couto, encomendada pela Cena Lusófona, e colocada em palco pela companhia Teatro Meridional, num espetáculo estreado em maio de 2001, no Teatro Taborda em Lisboa.)

 



 

LER MAIS EM:

 

Mar me quer (1998) -  leitura orientada

Apresentação da obra

Resumo da obra

Desfiar memórias como quem vai desfolhando flores (sobre Mar me quer, de Mia Couto)

Mar me quer: a outra face da lua

O mundo ficcional de Mia Couto – Mar me quer ou o coração é uma praia

Mar me quer: carta como elemento de primeiro contacto.

Imaginância rima com infância: os livros de receção infanto-juvenil de Mia Couto - Mar me quer

Mar me quer, de Mia Couto, entre as literaturas do insólito e juvenil

Mar me quer - propostas de trabalho

 


domingo, 21 de janeiro de 2024

A escrita, por Afonso Cruz

Afonso Cruz, visao.pt/jornaldeletras

 

Ao contrário do que muitas vezes se imagina, a escrita não surgiu para gravar pensamentos, sentimentos, meditações, mas essencialmente para gravar contabilidade, o peso da cevada guardada num celeiro, a quantidade de cerveja guardada em talhas de barro. A escrita surgiu para passarmos faturas e isso começou por ser feito em pedra ou em barro, materiais com alguma durabilidade que ironicamente são a grande matéria-prima das ruínas, já que outros materiais mais efémeros não duram o suficiente para isso. Os números começaram a ser escritos antes das palavras, as faturas precederam a poesia. E isto é algo que jamais perdoarei à história da humanidade.

Também, em pedra, se gravaram códigos e leis. O monólito de Hamurabi é um dos exemplos mais conhecidos. Moisés gravou em pedra os mandamentos e essa foi talvez a primeira grande ruína da escrita, pois foram partidas quase de imediato pelo próprio autor. Desceu a montanha, viu que o povo estava a adorar um bezerro de ouro e irritado partiu as tábuas. Obviamente, deste tipo de escrita, nasce o castigo, o pecado o medo, a censura. Uma sociedade deveria evoluir procurando cada vez mais liberdade porque só assim as nossas ações têm valor. Alguém que pratica a bondade porque é obrigado, não é necessariamente bondoso, quem pratica a justiça porque é obrigado, não é necessariamente justo. A compulsão deveria ser substituída pela educação, pela cultura, para poder resultar numa sociedade verdadeiramente sã.

A sedentarização trouxe-nos a escrita e esta ganhou um poder imenso, como nos diz Dylan Thomas, no poema “A mão ao assinar este papel”:

A subscrição foi submetida com sucesso!
Parte inferior do formulário
A mão ao assinar este papel arrasou    [uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua
 [taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e    [reduziram a metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um    [rei.(…)
A mão ao assinar o tratado fez nascer    [a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas    [vieram;
maior se torna a mão que estende o seu    [domínio
sobre o homem por ter escrito um    [nome.
Os cinco reis contam os mortos mas    [não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem    [acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como    [outras o céu;
 mas nenhuma delas tem lágrimas para    [derramar.

 

O ato de escrever solidifica o pensamento, e este, muitas vezes, torna-se lei, verdade absoluta, relegando os outros ângulos de uma mesma questão, com certeza tão verdadeiros como o que foi escrito e aceito, para o campo da especulação, da mentira e dos contos para crianças. Estamos no terreno do pensamento único, do Deus único, da certeza dogmática, da verdade monolítica, uma espécie de baleia branca, que nos faz desprezar todas as outras baleias. Estas verdades inquestionáveis surgem muitas vezes sob a forma de lei económica, um fenómeno que não é exclusivo do nosso tempo. Chesterton escreveu o seguinte em 1910:

“(…) os grandes nobres que no século XIX se tornaram proprietários de minas e gestores de caminho de ferro garantiram a toda a gente com enorme seriedade que o não faziam por gosto, mas devido a uma Lei Económica recentemente descoberta. E da mesma maneira os prósperos políticos da nossa geração aprovam leis que retiram os filhos às mães pobres; e proíbem calmamente os seus arrendatários de beber cerveja nos pubs. Mas (ao contrário do que o leitor possa supor) contra tal insolência não se erguem universais vozes de protesto, classificando-a de escandaloso feudalismo. Porque a aristocracia é sempre progressiva; a aristocracia é uma forma de impor o ritmo. E as festas dos aristocratas prolongam-se cada vez mais pela noite dentro.”

Voltando às ruínas:

O tempo, claro, é o mais eficiente construtor de ruínas, de casas mortas, de lixo, do fim das coisas, de rugas. O universo é uma espécie de artista ao contrário, que faz com que uma escultura volte a ser pedra bruta ou areia. Contraditoriamente, o tempo também valoriza os objetos e o que resta deles, e, assim, é bem possível que um dia tenhamos turistas só para ver os escombros do nosso país, um pouco como visitamos o Coliseu de Roma.

A certa altura, durante a colonização inglesa da Índia, alguém se lembrou de vender o Taj Mahal em leilão e aos pedaços. A ideia era fazer daquilo uma grande ruína e vender os destroços, bocados de pedra, para decorar lareiras britânicas. Para experimentar este disparate histórico decidiram começar por desmantelar o Forte Vermelho de Agra, construído pela mesma pessoa que mandou edificar o Taj Mahal e vendê-lo pedra a pedra. Como não funcionou, desistiram do plano. Apesar de esta história não estar provada, corroborada pela escrita, não deixa de ser credível. Fomos, ao longo da História, capazes de coisas bem piores.

Passaram-se milénios desde a origem da escrita, mas os números continuam a preceder a poesia, e, de um modo mais lato, toda a cultura e a própria noção de humanidade.

 

Afonso Cruz, “Baleia Branca”, Jornal de Letras, 05-03-2015. Crónica disponível em: https://visao.pt/jornaldeletras/cronicas-jl/2015-03-05-baleia-brancaf812274/

 

***

 

Afonso Cruz inicia e conclui a sua crónica com uma crítica à primazia dos interesses económicos sobre a arte, que se manifesta desde a origem da escrita até aos nossos dias. O autor expressa o seu desgosto pelo facto de a escrita ter nascido para registar contabilidade e não para criar poesia, mas o que ele realmente quer dizer é que deseja que os Homens apreciem mais a beleza das palavras do que as vantagens comerciais.

O autor revela implicitamente a sua frustração com a sobreposição da funcionalidade à estética, ao dizer que não perdoa à humanidade o facto de a escrita dos números ter surgido antes da escrita da poesia. A sua crítica assenta no desejo de uma sociedade em que a poesia e a linguagem sejam mais importantes do que as necessidades práticas do comércio. A sua esperança é que a cultura, a educação e a arte consigam superar as pressões comerciais, gerando assim uma sociedade mais bela e significativa.

 


segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Receitas de Ano Novo e uma definição de Poeta

 


Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

 

Carlos Drummond de Andrade, Discursos de Primavera e Algumas Sombras. São Paulo, Companhia das Letras, 1977

 

"Receita de Ano Novo" - ilustração de Sónia Oliveira (in Letras & Companhia 9, 2013)


Pode causar estranheza ao leitor porque a receita é um texto de caráter utilitário, normalmente utilizado para orientação de quem cozinha, e o título em causa pertence a um poema, que é um texto literário. Além disso, indica como se pode obter algo imaterial – um bom Ano Novo.

De acordo com o sujeito poético, quatro ingredientes um Ano Novo terá de ter para ser “belíssimo”: ter a cor do arco-íris ou a cor da sua paz; ser incomparável com outros anos mal vividos ou sem sentido; ser novo nas sementinhas e no coração, espontâneo; ser tão perfeito no dia a dia que passe despercebido.

O poeta dirige-se a quem pretende “ganhar um Ano Novo”, referindo, por exemplo, que não valerá a pena beber champanhe, enviar ou receber mensagens ou acreditar que, a partir de janeiro, as coisas mudam.

O interlocutor, para o conseguir, terá de lutar por ele, de merecê-lo e de procurá-lo dentro de si. 

Carla Marques e Inês Silva, Letras & Companhia - Português 9.º Ano. Lisboa, Edições Asa, 2013



Download do vídeo disponível aqui.

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Boas saídas e entradas

Ainda ontem

Tentei fazer uma crítica do que me aconteceu em 2023 como se estivesse a avaliar um telemóvel. De um lado do caderno listei os prós e, do outro, os contras.

Os prós esgotaram-se num instante e amaldiçoei a estrutura binária que dei à minha avaliação, levando ao desperdício da primeira metade do caderno, quase todo vazio.

E logo ali aprendi uma primeira lição. Esta mania dos prós e contras, de dividir tudo em dois, como se os positivos e negativos se equilibrassem e, pior ainda, como se fossem importantes, esta mania só mostra uma coisa: que já estamos a ditar a resposta que queremos (que é aquela que nos dá jeito, que dá pouco trabalho, e se compreende facilmente), mesmo antes de fazermos a pergunta.

Schopenhauer, condenado a ser lido quando estamos mais próximos dos vinte anos do que qualquer ser humano merece estar, fazia questão de dizer que o prazer, num mundo cheio de sofrimento, é apenas a ausência de sofrimento.

Mas que ausência! Que gloriosa ausência, a demonstrar a ironia daquele “apenas”!

Quando comecei a pôr nos “prós” os dias em que não acordei com dores, os dias em que não pus em causa o sentido da vida, e as manhãs e tardes em que nenhuma enxaqueca me visitou, o caderno encolheu de um momento para o outro.

É sempre bom ler os pessimistas. Mas há um género de pessoa que abomino: aquele que lê os pessimistas só para se sentir melhor. É o equivalente filosófico de começar a ler o jornal pela necrologia e pelas tragédias.

Essas pessoas não aguentam que haja quem seja menos miserável do que elas. Tendo os pessimistas por companhia exclusiva, asseguram-se que são os pintainhos menos deprimidos do curral.

Schopenhauer era um grande escritor, cheio de ideias, que falava de tudo e de alguma coisa, e que não tinha medo nenhum de se pronunciar sobre as grandes questões da vida. Foi condenado a ser julgado sem ser lido: uma tragédia (para os não-leitores) que nem o próprio Schopenhauer teria apreciado.

Boas entradas!

 

Crónica de Miguel Esteves Cardoso, jornal Público, 31-12-2023


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Antes de acabar o ano gostaria de deixar uma definição de poeta que pode ajudar a enfrentar as agruras do próximo ano.

Poeta: pessoa que consegue tornar o dia, por mais chato que este seja, numa aventura cómica.

Obviamente haverá outras definições e também serão boas. Conheço muita rapaziada para quem poeta é quem está macambúzio, ou a vomitar as entranhas, de preferência à beira de uma sarjeta no Bairro Alto. Feitios.

E obviamente que ser poeta não nos protege de um tiro, uma conta da água, uma perna partida, uma expulsão do apartamento, uma perda de emprego, uma doença má tipo gripe, cancro ou joanetes.

Ainda assim, não desajuda. E com uma depressão é um pequeno mecanismo mental (traduzo para os mainovos: uma app) que pode fazer milagres, com a vantagem de não vir em comprimido. E o lado bom é que, com o treino, vicia.

Repito, até porque a repetição faz parte da poesia:

Poeta: pessoa que consegue tornar o dia, por mais chato que este seja, numa aventura. De preferência, cómica.

Rui Zink, https://www.facebook.com/rui.zink.7/posts/10160374955862968, 30-12-2023