sábado, 31 de dezembro de 2022

O Bandarra - Primeiro Aviso na Mensagem, de Fernando Pessoa


Mensagem, Fernando Pessoa

Terceira Parte: O Encoberto

II: Os Avisos




Primeiro
O Bandarra

Sonhava, anónimo e disperso,
O Império por Deus mesmo visto,
Confuso como o Universo
E plebeu como Jesus Cristo.

Não foi nem santo nem herói,
Mas Deus sagrou com Seu sinal
Este, cujo coração foi
Não português, mas Portugal

28-3-1930

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934

 

 

O Bandarra

Nascido por volta de 1500, Gonçalo Anes, de alcunha «O Bandarra», famoso sapateiro da Vila de Trancoso (Beira Alta), foi autor de trovas, largamente divulgadas, não raras vezes refundidas, interpretadas ou modificadas à medida dos anseios do momento, sobretudo em épocas de crise. Pode dizer-se que a obra do famoso sapateiro beirão, perdida a independência nacional, e desafiando os rigores da Inquisição (o próprio Bandarra havia sido objecto de um processo em 1541), não só gozou de enorme prestígio, como depressa se transformou no evangelho do sebastianismo.

Sobre o Bandarra e as suas profecias discorre Pessoa abundantemente em Sobre Portugal.

A reter, por agora, é a importância que o poeta da Mensagem lhe consagra, seja pelo que ele representa dessa «voz do Povo português», que grita a «existência sagrada de Portugal», seja pelo que nele existe de impulsionador do «nosso sentimento imperial». Um Bandarra que é «um nome colectivo», pois inclui os que se lhe seguiram, e que, «servindo-se do seu tipo de visão e da sua forma literária, buscaram legitimamente o anonimato designando as suas trovas como sendo do Bandarra também» (Pessoa: 1981, 175). É, em parte, como eco dessa apropriação colectiva que o Bandarra nos é definido na Mensagem como aquele «cujo coração foi / Não português mas Portugal». 

Dicionário da Mensagem, Artur Veríssimo. Porto, Areal Editores, 2000, pp. 16-17


https://purl.pt/13965/1/P119.html

 

Questionário sobre o poema “Primeiro: O Bandarra”, de Fernando Pessoa:

1. Explicite a ideia transmitida pelo verso 2 “O Império por Deus mesmo visto,”.

2. Demonstre como, na primeira estrofe, o poeta homenageia a figura de Bandarra.

3. Refira como é reconhecida a heroicidade da figura apresentada pelo poeta, apesar da negação formulada no verso 5.

4. Explique o verso final, relacionando-o com os anteriores.

 

(Prova Escrita de Conhecimentos Específicos de Português, Instituto Politécnico de Leiria, 20-06-2020. Disponível em: https://www.ipleiria.pt/academicos/wp-content/uploads/sites/51/2021/02/Enunciado-da-prova-de-Portugues_20062020.pdf)

 

 



 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. 

 


O Bandarra - Primeiro Aviso na Mensagem, de Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 31-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/o-bandarra-primeiro-aviso-na-mensagem.html


sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

O Encoberto ou o Rosicrucismo na Mensagem, de Fernando Pessoa

 

Mensagem, de Fernando Pessoa

Terceira Parte: O Encoberto

Pax in excelsis

I - Os Símbolos

 


 

Quinto

O ENCOBERTO

 

Que símbolo fecundo
Vem na aurora ansiosa?
Na Cruz Morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.

Que símbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa, que é o Cristo.

Que símbolo final
Mostra o sol já desperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.

s.d.

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).  - 87. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/102

 

ROSACRUZ


«A Rosa é, simultaneamente, o Cristo e o Encoberto, ambos são a Vida - o Cristo é a Vida do Mundo e o Encoberto é a Vida da Nação» (Silva Carvalho: 1981). Ou seja, a vida que, metade de nada, morre e se regenera. (Veríssimo: 2000, 141)

 

Rosicrucismo

Do rosicrucismo pode ler, numa enciclopédia ou num livro da especialidade, as suas remotas origens, os seus fundadores, as sociedades secretas que inspirou, a sua pretensa ligação à Maçonaria, aspetos que não cabem no âmbito deste estudo. O nosso propósito é bem mais modesto: trata-se tão-só de saber qual o interesse que o tema tem para a compreensão da Mensagem, designadamente do poema […] “O Encoberto” […].

Sobre o poema, ouçamos Carlos Castro da Silva Carvalho (1981, 32):

«Que símbolo é esse? Uma Rosa (A Vida, o Cristo, A Rosa do Encoberto) numa cruz (morta do mundo, o Destino, morta e fatal), isto é, o símbolo da rosacruz: sobre uma cruz, à volta do centro definido pelos dois madeiros, sete rosas, envolvendo uma oitava, essa implícita, no centra; o todo inscrito numa estrela de cinco pontas.

Este símbolo é, para os rosacruzes, um símbolo de geração que ‘contém a chave da evolução passada, constituição presente e desenvolvimento futuro do homem, além do método de realização desse desenvolvimento’ [Silva Carvalho cita Max Heindel]; a cruz representa o homem: ‘O madeiro maior representa o corpo, os dois horizontais, os dois braços, o madeiro curto, superior, representa a cabeça…’ e a Rosa, essa, o Libertador, o Cristo, o Cabeça Central, ‘… e a rosa está colocada no lugar da laringe’.»

[Outros autores situam esta rosa sobre o coração, símbolo da alma e da faculdade do conhecimento, simbologia ligada à do Sol, presente no poema.]


ROSACRUZ


Note, também, que o percurso seguido por Carlos Castro da Silva Carvalho lhe permite, com elevado acerto, concluir, intersecionando a religiosidade da rosa cruz com o misticismo nacionalista, que «a Rosa é simultaneamente o Cristo e o Encoberto, ambos são a Vida - o Cristo é a Vida do Mundo e o Encoberto é a Vida da Nação.»

Não menos importante é constatar, sem nos alongarmos na simbologia esotérica que atravessa o poema, que a rosa é, na iconografia cristã, o símbolo das chagas de Cristo e do sangue, que derramado, representa a redenção, a regeneração da vida, a ressurreição, a imortalidade. A mesma simbologia é, hereticamente, atribuída ao Encoberto no poema.

A estes elementos vem juntar-se o facto de «O Encoberto» ser justamente o quinto dos símbolos que a Mensagem inclui. Note que o número cinco é símbolo de um novo ciclo que começa, denunciado também, no poema, no ciclo do sol, saído da noite (e da morte), desde a «aurora ansiosa» ao despertar, passando pelo «dia já visto», onde a Rosa surge, significativamente, com um símbolo fecundo, divino e final.

Pressupõe este novo ciclo um recomeço, já anunciado nos «Símbolos» que, na Mensagem, precedem o poema consagrado ao Encoberto. Trata-se do já profetizado regresso de D. Sebastião, não do D. Sebastião «que houve» (M, 42), que este morreu em Alcácer, mas do que com Deus se guardou, i. e., um D. Sebastião mítico, sacralizado, profeta que, a si próprio, se anuncia como Messias. Note as maiúsculas heréticas em «O» e «Esse»:

É O que eu me sonhei que eterno dura,

É Esse que regressarei.

(M, 81)

Há de regressar, com a legitimidade de quem é o Desejado, (e aqui o rosicrucismo liga-se à simbologia da Demanda), «Galaaz com pátria», bramindo a «Excalibur do Fim», trazendo consigo o Quinto Império, a «Eucaristia Nova» contra a apatia do presente. Um regresso tornado indispensável e do qual se espera.

Que a sua Luz ao mundo dividido

Revele o Santo Graal!

(M, 84)

Uma espera que vive na ânsia e na impaciência do eu do poema que dá forma ao terceiro dos «avisos»:

Quando virás a ser o Cristo

De a quem morreu o falso Deus,

E a despertar do que existo

A Nova Terra e os Novos Céus?

Bibl.: Carlos Castro da Silva Carvalho, «Aspectos formais do nacionalismo místico da Mensagem», in Colóquio/Letras, n.º 62, julho de 1981, p. 26

 

Artur Veríssimo, Dicionário da Mensagem. Porto, Areal Editores, 2000, pp. 119-121

 

 

A trajetória do Cristo e a sustentação do discurso prospetivo

Como temos visto, os poemas, tratando de um presente negativo, marcado pelo decaimento e pelo ostracismo da nação portuguesa, voltam-se para um futuro em que se dará o ressurgimento da proeminência de Portugal, principal tematização da última parte da obra. Essa tematização de Mensagem se explica pela atualização do ato preditivo próprio do discurso messiânico (..., então b), que envolve uma necessária sustentação (se a, ...).

No messianismo português, a crença numa condição de nação eleita é o que sustenta a previsão de retomada de uma proeminência análoga à do passado. Em última análise, os poemas que tematizam a constituição de Portugal (sobretudo na parte 1, Brasão) e seus feitos gloriosos durante a expansão ultramarina (notadamente na parte 2, Mar Português) constituem uma forma de busca de comunhão em torno da crença nessa eleição.

Mais concretamente, porém, há poemas que permitem observar uma sustentação do discurso preditivo na homologação da história de Portugal com a do Cristo. Essa aproximação, que atravessa diferentes poemas da obra, aparece no segundo poema, O das quinas, no qual se apresenta a “verso-máxima”: “Compra-se a glória com desgraça”. Ressalta-se aí o valor do sofrimento, tido como uma marca de eleição num processo de espiritualização associado a Portugal, como se viu, por exemplo, no poema “O Quinto Império”, já analisado. A confirmação dessa máxima se dá a partir do exemplo prototípico do Cristo: “Foi com desgraça e com vileza / Que deus ao Cristo definiu / Assim o opôs à Natureza / E Filho o ungiu”. Graças a esse poema, a trajetória de sofrimento (e de posterior glória) do Cristo associa-se à trajetória de Portugal, relação evocada em diferentes poemas de Mensagem.

Além do já analisado poema (Terceiro) que identifica o retorno do Encoberto com a parousia do Cristo, o poema D. Felipa de Lencastre (PESSOA, 2010, p. 30), por exemplo, remete à homologação de que falamos. A personagem histórica, chamada no poema de “Humano ventre do Império”, por ter sido mãe de vários membros da corte portuguesa e mesmo de monarcas, é associada à Virgem Maria (“Que arcanjo teus sonhos veio /Velar, maternos, um dia?”).

Já na parte 3 de Mensagem, a relação volta no símbolo maior do messianismo português: a figura do Encoberto. […]

Nesse poema, a identificação do Encoberto com o Cristo se dá graças à figura da Rosa, que, de acordo com Quesado (1999, p. 148), é um símbolo esotérico para a vida. Com efeito, vai-se da Vida que é Rosa, passa-se pela Rosa que é o Cristo e chega-se à Rosa do Encoberto, numa espécie de transferência (doação do objeto de valor vida, em termos narrativos) que sugere a ressurreição gloriosa do Encoberto, como a do Cristo. A cruz parece ser utilizada, no poema, como o símbolo ambíguo que é na simbologia cristã, indicando a morte salvadora do Cristo e, ao mesmo tempo, seu martírio necessário (“Na Cruz, que é o Destino/ A Rosa, que é o Cristo”).

Esses símbolos retomam, assim, a história de sacrifício do Cristo, trazendo do passado (“Que símbolo divino/ Traz o dia já visto?”) o exemplo que faz crer no ressurgimento de Portugal pelas mãos do Encoberto. Aqui ecoa o verso-máxima do já citado poema O das quinas: “compra-se a glória com desgraça”. A eleição implica, como no caso do Cristo, o necessário sofrimento (o destino) que antecede e assegura a vida gloriosa. Essa lógica é o que permite a geração do “símbolo final” (A Rosa do Encoberto), que já é possível observar no presente (“mostra o sol já desperto”), marcado, como no caso do Cristo, por um sofrimento fatalista (Na Cruz morta e fatal).

A nosso ver, os poemas analisados evidenciam que, de forma mais ampla, a crença numa eleição divina para um destino que mescla desgraça e glória e, de forma mais restrita, a homologação da história de Portugal à do Cristo são elementos que, retomados e reelaborados poeticamente pelo enunciador, remetem a um argumento de base para o discurso prospectivo. A explicitação da fórmula argumentativa resultaria num encadeamento como: se somos eleitos como foi o Cristo, então, como o Cristo, aguarda-nos uma ressurreição gloriosa, aqui atualizado num contexto de adesão prévia, como é próprio do gênero epidítico.

Clebson Brito, A configuração do discurso messiânico numa perspectiva semiótica e argumentativa. Belo Horizonte, Faculdade de Letras da UFMG, 2015

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.




O Encoberto ou o Rosicrucismo na Mensagem, de Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 30-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/o-encoberto-ou-o-rosicrucismo-na.html



quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

O Desejado - terceiro símbolo na Mensagem, de Fernando Pessoa

 

Mensagem, de Fernando Pessoa

Terceira Parte: O Encoberto

Pax in excelsis

I - Os Símbolos


Terceiro

O DESEJADO

 

Onde quer que, entre sombras e dizeres,
Jazas, remoto, sente-te sonhado,
E ergue-te do fundo de não-seres
Para teu novo fado!

Vem, Galaaz1 com pátria, erguer de novo,
Mas no auge da suprema prova,
A alma penitente do teu povo
À Eucaristia2 Nova.

Mestre da Paz, ergue teu gládio3 ungido4,
Excalibur5 do Fim, em jeito tal
Que sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Gral6!
 

18-1-1934

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934

 

________________

(1) Galaaz: Galaaz é o herói da demanda do Santo Graal, o cavaleiro perfeito, eleito entre os melhores, predestinado a vencer. Tem a honra de ser o primeiro a aceder ao Santo Graal.

(2) Eucaristia: na teologia católica, sacramento que é Cristo sob as espécies do pão e do vinho consagrados;

ato litúrgico, com sentido de ação de graças e de sacrifício, durante o qual se realiza a consagração eucarística.

(3) Gládio: espada.

(4) Ungir: untar com óleo; dar posse ou investir de autoridade por meio de unção; sagrar.

(5) Excalibur: espada oferecida pelo Rei Artur a Galaaz para este ir em demanda do Santo Graal.

(6) Graal: copo ou cálice de que Jesus Cristo se teria servido na última ceia com os discípulos e no qual José de Arimateia teria recolhido o sangue e a água dimanados das chagas do Salvador na cruz; segundo lendas medievais bretãs, o Santo Graal teria sido levado para a Bretanha (atual Inglaterra) no ano 64 d. C. e depositado numa capela dentro de um bosque. A demanda (procura) do Santo Graal serviu de tema a uma série de lendas e romances do ciclo do rei Artur e dos seus cavaleiros da Távola Redonda.

 

 

I – Questionário sobre o poema “O Desejado”, de Fernando Pessoa

Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Explique como, na primeira quadra, o sujeito poético perspetiva a figura de D. Sebastião.

2. Explicite o apelo a D. Sebastião, a partir da apóstrofe «Galaaz com pátria» (verso 5).

3. Interprete a figura do cavaleiro e a sua missão na estrofe final.

4. Considere o poema “O Desejado”, de Fernando Pessoa, e as estâncias 15-17 Do Canto I de Os Lusíadas, abaixo transcritas. Compare os dois textos, explicitando os significados neles construídos.

15

«E, enquanto eu estes canto, e a vós não posso,

Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,

Tomai as rédeas vós do Reino vosso:

Dareis matéria a nunca ouvido canto.

Comecem a sentir o peso grosso

(Que polo mundo todo faça espanto)

De exércitos e feitos singulares

De África as terras e do Oriente os mares.

16

Em vós os olhos tem o Mouro frio,

Em quem vê seu exício afigurado;

Só com vos ver, o bárbaro Gentio

Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;

(...)

17

Em vós esperam ver-se renovada

Sua memória e obras valerosas;

E lá vos tem lugar, no fim da idade,

No templo da suprema Eternidade.»

CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas – Canto I, est. 15-17

 

(Prova Escrita de Conhecimentos Específicos de Português, Instituto Politécnico de Leiria, 04-06-2016. Disponível em: https://www.ipleiria.pt/wp-content/uploads/2017/04/Portugu%C3%AAs_M23_2016.pdf)

 

https://purl.pt/13965/1/P111.html

 

II – Comentário de texto

Elabore um comentário global do poema “O Desejado”, de Fernando Pessoa, que integre os seguintes tópicos:

  • estrutura externa e interna do poema;
  • tom exortativo / apelativo
  • identificação e caracterização do invocado;
  • razões subjacentes à invocação;
  • integração do texto na estrutura da obra e sua justificação.

 

Proposta de correção:

O poema apresentado é constituído por três estrofes regulares de quatro versos cada (quadras), estendendo-se a regularidade à própria métrica, dado que os 3 primeiros versos de cada estrofe são decassílabos e os últimos hexassílabos (6 sílabas métricas).

A rima é cruzada, tal como se pelo esquema rimático (a b a b / c d c d / e f e f), pobre e consonântica.

A harmonia visível a nível formal perpassa a nível do conteúdo. Com efeito, o poema desenvolve-se de forma linear, dado que a primeira estrofe funciona como introdução, onde se inicia o apelo àquele que no momento jaz adormecido, inconsciente, ainda, do destino que lhe está reservado. Na segunda estrofe, o apelo continua e começam a desvendar-se as razões que subjazem ao pedido que é feito: a pátria espera queele” a venha erguer, isto é, o povo sofredor exige dele a “suprema prova”, que o fará atingir a “Eucaristia Nova”, ou seja, a glória de outrora, a projecção da nação. Na última estância, a exortação ao “Mestre da Paz” continua, mas aqui é perceptível a recompensa reservada ao “Galaaz” que usou a espada ungida, cujaluz” permitirá à nação revelar-se.

O tom exortativo estende-se por todo o poema, sugerindo a angústia e aflição do sujeito poético que, através das apóstrofes e do imperativo, reclama a presença do predestinado (D. Sebastião), de modo a que a glória do povo português possa ser restabelecida. Logo na primeira estrofe surge a forma verbal “ergue-te” que remete para o estado de inércia em que se encontrava o invocado; na segunda, temos novamente o uso do imperativo do verbo vir (“vem”) e o vocativo “Galaaz com pátria”; na terceira estrofe, apostrofa-se o “Mestre da Paz” e emprega-se, de novo, a forma verbal “ergue”, agora referindo-se à espada.

O apelo é, assim, sucessivamente feito a alguém que jaz “remoto” no “fundo do não-ser” e que vai, aos poucos, ser desvendado, ainda que metaforicamente, como sendo um “Galaaz com pátria”, o “Mestre da Paz”, caracterizado, primeiro, como alguém que foi esquecido, que deixou de ser, mas que ainda tem pátria e que, por isso, deve preparar-se para o seunovo fado”, o de ultrapassar a suprema prova. Para isso, pode contar com o “gládio ungido”, que na sua mão funcionará comoLuzpara o “mundo dividido”. Parece, pois, possível antever-se, neste Galaaz, a figura lendária de D. Sebastião, desaparecido em Alcácer-Quibir, mas em quem o povo depositava a sua , a sua esperança, vendo nele o salvador, o redentor da pátria adormecida, apenas envolta em glórias antigas que urgiam recuperar.

Se a nação portuguesa não se encontrasse num estado de marasmo e de estagnação, não teria havido a necessidade de ancoragem no mito sebastianista, vendo no rei desaparecido o guia, aquele que seria capaz de revitalizar a força espiritual dos portugueses, de modo a que a chama, que se ateara no tempo das descobertas, fosse novamente avivada e fizesse Portugal recuperar a fama outrora alcançada, através da construção do “Quinto Império”, que seria superior ao anterior, porque do domínio cultural e espiritual.

Pela temática que o poema encerra, é fácil ver-se aqui o mesmo tom que percorre os textos da terceira parte da Mensagem. Com efeito, é nesta parte (“O Encoberto”) que se refere o desfazer, a morte do império português, um império moribundo, que exige o lançamento do gérmen da ressurreição, ante- vendo-se, também, o nascimento, isto é, o despoletar para a vida, porque D. Sebastião viria, numa manhã de nevoeiro, comandar os portugueses, dando-lhes novo alento, fazendo-os acreditar na sua superioridade, na sua potencialidade para construir um novo império. 

(Dossier Exame ‑ Português A, 12º ano, Maria José Peixoto, Célia Fonseca, Edições ASA, 2003)

  

 

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O Desejado - terceiro símbolo na Mensagem, de Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 29-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/o-desejado-terceiro-simbolo-na-mensagem.html


quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

O Quinto Império (Mensagem, Fernando Pessoa)

Mensagem, Fernando Pessoa

Terceira Parte - O Encoberto

I - Os Símbolos

 



 

Segundo

O QUINTO IMPÉRIO

 





5





10





15





20





25

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz -
Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa - os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

21-2-1933

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).  - 82. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/96

 

 

Linhas de leitura do poema “O Quinto Império”, de Fernando Pessoa:

Trata-se de um poema que afirma uma filosofia sobre o homem e o viver.

 

Da Terceira Parte/O Encoberto (D. Sebastião), este é o segundo símbolo, o do Quinto Império que iluminará a alma nacional revelando-lhe grandeza futura.

 

O poema divide-se em três partes:

1.ª parte, estrofes I e II (vv. 1-10) - Para o poeta, e retomando o que vinha dizendo desde a 1ª parte, a única coisa que faz sentido na vida é o sonho - «Triste de quem vive em casa/ Contente com o seu lar[reparaste, certamente, no oxímoro] / Sem que um sonho, no erguer de asa,/ Faça até mais rubra a brasa / Da lareira a abandonar.» Ou seja: sem o sonho, capaz de remover montanhas, a vida é triste, ainda que no conforto sensato do lar. Prosseguindo, nesta espécie de introdução, constituída pelas 2 primeiras quintilhas, o poeta reincide no oxímoro, ao afirmar: «Triste de quem é feliz!»

Naturalmente que tal afirmação paradoxal necessitaria de explicação: é que quem é feliz limita-se a viver por viver, «porque a vida dura» e enquanto dura - como se dizia no poema D. Sebastião (da 1ªparte-Brasão), «sem a loucura que é o homem / mais que a besta sadia /cadáver adiado que procria?» E nós já sabemos que para Pessoa, loucura é o sonho que impele a ir mais além. O que distingue o homem do animal é a capacidade de sonhar e de partir nas asas ou nas naus do sonho, para que a obra nasça. (Pais: 2001, 141-142)

 

Em síntese: o poeta faz a apologia do sonho, que evita a mediocridade de viver e favorece a grandeza da alma, que possibilita os grandes feitos. (Guerra: 1999)

 

2ª parte, estrofe III (vv. 11-15) - O poema prossegue, com uma breve visão da História e do que faz a História: «Eras sobre eras se somem /No tempo que em eras vem./ Ser descontente é ser homem.» A História faz-se de descontentes e ser descontente, como diz, é próprio do homem, capaz de ter como força condutora a «visão que a alma tem.» (Pais: 2001, 141-142)

 

Portanto, reflectindo sobre a História, a passagem do tempo, o poeta volta a salientar que a insatisfação constante é o motor do impulso que conduz à felicidade, entendida como uma vida plenamente realizada.

 

3ª parte, estrofes IV e V (vv. 16-25) - O poeta sonhador, que já leu a história do passado, volta-se para o futuro.  Assim, passando a antever o futuro - a profecia -, a partir do olhar sobre o passado dos quatro impérios /tempos – o grego, o romano, o cristão, o europeu, e em tempos de «erma noite»,– o poeta afirma que virá o dia em que «a terra será teatro / Do dia claro» – o dia em que alguém virá «viver a verdade /Que morreu D. Sebastião».[1]

 

Aqui a lição da História é a vitória do homem sobre o tempo:

«E assim» (v.16), conclui, «A terra será...», profetiza. Finalmente chama o ator a que venha ocupar o seu lugar, o lugar que o tempo domi­nado lhe destinou.

 

Passados os quatro impérios que a tradição estabeleceu, com base no sonho de Nabucodonosor, que se transcreve em texto próprio, e da qual Fernando Pessoa diverge, surgirá o Quinto Império: a Idade Perfeita, a Eterna Luz, a Paz Universal. É clara a influência da Bíblia sobre Fernando Pessoa.

 

O advento do Quinto Império apenas se concretizará com o regresso de D. Sebastião; qual Fénix, fará surgir das cinzas o Império Universal, cuja cabeça será a Pátria Lusitana. Retoma o poema "O dos Castelos", fortificando assim a unidade da obra.

 

Fernando Pessoa conhecia a Bíblia e, por isso, apresenta D. Sebastião como um símile de Cristo, morto e ressuscitado. (Guerra: 1999) 

Mas atenção ao seguinte equívoco sobre o Quinto Império:

Entre as leituras equívocas que o Quinto Império suscita, estão aquelas que o fazem convergir para um império ecuménico de inspiração cristã, no sentido estrito da profecia tradicional. Esse império, profetizado pelo Bandarra e trabalhado intelectualmente por António Vieira, inspira o de Pessoa, mas não é por este reproduzido nos mesmos termos. A cristianização do Quinto Império, na Mensagem, de todo, insustentável. (Artur Veríssimo, Dicionário da Mensagem. Porto, Areal Editores, 2000).

 

É da morte de D. Sebastião que nasce o «sonho» que faz a «brasa» «mais rubra».

 

Da visão profunda que, na escuridão, vê já a luz, brota a certeza profética de um novo domínio, de um quinto império: «[] o dia claro, que no atro/ Da erma noite começou.».

 

Desperta-se a evidência de estar no intervalo entre os impérios que já foram e o «quinto império» que há de vir e há de ser português, animado pelo «sonho» (3), pelo «erguer da asa» (3), «pela visão que a alma tem» (15), um império espiritual, «dia claro» (19) a inventar.

 

Formalmente o poema apresenta-se como uma despretensiosa série de quatro quintilhas, aparentemente simples, mas densas de significado, a fazer lembrar as quintilhas de Sá de Miranda ao seu rei D. João III. Fernando Pessoa não tem rei a quem as enviar. Escreve-as para fazer nascer um império. Lança um pregão, um desafio a um povo que tem de reencontrar o seu domínio: «Quem vem? [...] que morreu D. Sebastião.» O ritmo do verso, a tradicional redondilha maior, integra-se perfeitamente nesta intencionalidade.

 

A imagística («vive em casa»; «contente com o seu lar»; «a brasa da lareira»; «a lição da raiz») traduz a percepção da rusticidade, da domesticidade de um destinatário — povo, adormecido, domado, cego, imerso na «erma noite».

 

«quem»; «Quem?» — é o pronome que, no seu mistério, concentra o nome que não desvenda: ninguém e todos. Este é o sujeito que o enunciado encobre: não o escolhe e não o indica. Chamamento envolto em mistério, destinado a quem seja capaz do «sonho», do «erguer da asa».

 

O discurso, no seu tecido verbal, vai poetizando o pregão:

- «rubra a brasa», em que as sonoridades combinadas da labial e da vibrante sopram e explodem, acendendo plasticamente a imagem;

- «triste e feliz», em que o oxímoro, ao confundir, aviva o engano, desmascara a ilusão;

- a ordem sintática buscada na expressão popular: triste de mim, triste de ti, «triste de quem...», onde a implantação idiomática do «de» torna a toada lamentosa, afadistada, de cantiga da rua;

- as palavras repetem-se, enleiam-se em jogos que as sublinham («vive/vida/vida»; «eras/eras/eras»), ganham o recorte da expressão feita do falar popular: «eras sobre eras».

 

A linguagem é entretecida de jogos («ser é ser»; «o dia claro» e «erma noite») que, pelo seu poder encantatório, garantem verdade poética, atração, fascínio para os ouvidos para que preparam o repto final: «Quem vem...?» (Soares: 2000, 51-52)



[1] Nesta última quintilha e nos dois últimos versos, novo dizer diferentemente as coisas. Pessoa 'infringe' as normas sintácticas, considerando o verbo morrer como transitivo – assim, e em simetria com a expressão: viver a verdade –surge um: morrer a verdade.

O «que» de «Que morreu D. Sebastião» é, assim, pronome relativo, referindo-se a ' verdade' e desempenhando a função de complemento directo de «morreu». Se há infracção sintáctica em relação à norma, é evidente que tal vai trazer consigo um reforço da atitude, do modo como actuou D. Sebastião: morrer a verdade é bem mais, sentimo-lo, que viver a verdade. (Pais: 2001, 141-142) 

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Homem enterrado vivo, Antoine Wiertz, 1838

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Sugestãovisiona o Módulo de Português do 12.º Ano respeitante à análise e interpretação do poema “O Quinto Império”, de Fernando Pessoa: 





 

In: Projeto #ESTUDOEMCASA. O sebastianismo na Mensagem. Os poemas "O Quinto Império" e "Nevoeiro" -Aula 23 de Português do 12.º Ano, 08-02-2021. Disponível em: https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e522879/portugues-12-ano

 

 

Poderá também gostar de:

  •  Texto & Pretexto – “O Quinto Império – Fernando Pessoa em linguagem matemática”, por João Ribeiro (colaboração na revisão e edição: professora de Matemática Fátima Delgado):

Na sequência de uma atividade realizada no âmbito do estudo da obra Mensagem de Fernando Pessoa, o aluno João Ribeiro, do 12.º F, turma da professora de Português Dulce Sousa, associou a proposição inscrita na imagem ao lado, sobre o conceito de Quinto Império, à linguagem matemática, da forma que abaixo se apresenta, com o intuito de representar uma afirmação de cariz literário sob a forma de um raciocínio lógico-matemático.

Biblioteca da Escola Secundária Daniel Sampaio. Disponível em: https://bibliblogue.wordpress.com/2015/05/29/texto-pretexto-o-quinto-imperio-fernando-pessoa-em-linguagem-matematica-por-joao-ribeiro/, 29-05-2015
 

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O Quinto Império (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 28-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/o-quinto-imperio-mensagem-fernando.html