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quarta-feira, 10 de junho de 2020

O que é amar um país, Tolentino de Mendonça

Discurso de Tolentino de Mendonça na cerimónia das comemorações do Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas, em 10 de Junho de 2020.




O QUE É AMAR UM PAÍS

Agradeço ao senhor Presidente o convite para presidir à Comissão das comemorações do dia 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Estas comemorações estavam para acontecer não só com outro formato, mas também noutro lugar, a Madeira. No poema inicial do seu livro intitulado Flash, o poeta Herberto Helder, ali nascido, recorda justamente «como pesa na água (…) a raiz de uma ilha». Gostaria de iniciar este discurso, que pensei como uma reflexão sobre as raízes, por saudar a raiz dessa ilha-arquipélago, também minha raiz, que desde há seis séculos se tornou uma das admiráveis entradas atlânticas de Portugal.
É uma bela tradição da nossa República esta de convidar um cidadão a tomar a palavra neste contexto solene para assim representar a comunidade de concidadãos que somos. É nessa condição, como mais um entre os dez milhões de portugueses, que hoje me dirijo às mulheres e aos homens do meu país, àquelas e àqueles que dia-a-dia o constroem, suscitam, amam e sonham, que dia-a-dia encarnam Portugal onde quer que Portugal seja: no território continental ou nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, no espaço físico nacional ou nas extensas redes da nossa diáspora.
Se interrogássemos cada um, provavelmente responderia que está apenas a cuidar da sua parte – a tratar do seu trabalho, da sua família; a cultivar as suas relações ou o seu território de vizinhança – mas é importante que se recorde que, cuidando das múltiplas partes, estamos juntos a edificar o todo. Cada português é uma expressão de Portugal e é chamado a sentir-se responsável por ele. Pois quando arquitetamos uma casa não podemos esquecer que, nesse momento, estamos também a construir a cidade. E quando pomos no mar a nossa embarcação não somos apenas responsáveis por ela, mas pelo inteiro oceano. Ou quando queremos interpretar a árvore não podemos esquecer que ela não viveria sem as raízes.

Camões e a arte do desconfinamento
Pensemos no contributo de Camões. Camões não nos deu só o poema. Se quisermos ser precisos, Camões deixou-nos em herança a poesia. Se, à distância destes quase quinhentos anos, continuamos a evocar coletivamente o seu nome, não é apenas porque nos ofereceu, em concreto, o mais extraordinário mapa mental do Portugal do seu tempo, mas também porque iniciou um inteiro povo nessa inultrapassável ciência de navegação interior que é a poesia. A poesia é um guia náutico perpétuo; é um tratado de marinhagem para a experiência oceânica que fazemos da vida; é uma cosmografia da alma. Isso explica, por exemplo, que Os Lusíadas sejam, ao mesmo tempo, um livro que nos leva por mar até à India, mas que nos conduz por terra ainda mais longe: conduz-nos a nós próprios; conduz-nos, com uma lucidez veemente, a representações que nos definem como indivíduos e como nação; faz-nos aportar – e esse é o prodígio da grande literatura – àquela consciência última de nós mesmos, ao quinhão daquelas perguntas fundamentais de cujo confronto, um ser humano sobre a terra, não se pode isentar.
Se é verdade, como escreveu Wittgenstein, que «os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo», Camões desconfinou Portugal. A quem tivesse dúvidas sobre o papel central da cultura, das artes ou do pensamento na construção de um país bastaria recordar isso. Camões desconfinou Portugal no século XVI e continua a ser para a nossa época um preclaro mestre da arte do desconfinamento. Porque desconfinar não é simplesmente voltar a ocupar o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo plenamente; poder modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas, como um exercício deliberado e comprometido de cidadania. Desconfinar é sentir-se protagonista e participante de um projeto mais amplo e em construção, que a todos diz respeito. É não conformar-se com os limites da linguagem, das ideias, dos modelos e do próprio tempo. Numa estação de tetos baixos, Camões é uma inspiração para ousar sonhos grandes. E isso é tanto mais decisivo numa época que não apenas nos confronta com múltiplas mudanças, mas sobretudo nos coloca no interior turbulento de uma mudança de época.

Que a crise nos encontre unidos
Gostaria de recordar aqui uma passagem do Canto Sexto d’Os Lusíadas, que celebra a chegada da expedição portuguesa à Índia. Os marinheiros, dependurados na gávea, avistam finalmente «terra alta pela proa» e passam notícia ao piloto que, por sua vez, a anuncia vibrante a Vasco da Gama. O objetivo da missão está assim cumprido. Mas o Canto Sexto tem uma exigente composição em antítese, à qual não podemos não prestar atenção. É que à visão do sonho concretizado não se chega sem atravessar uma dura experiência de crise, provocada por uma tempestade marítima que Camões sabiamente se empenha em descrever, com impressiva força plástica. Digo sabiamente, porque não há viagem sem tempestades. Não há demandas que não enfrentem a sua própria complexificação. Não há itinerário histórico sem crises. Isso vem-nos dito n’Os Lusíadas de Camões, mas também nas Metamorfoses de Ovídio, na Eneida de Virgílio, na Odisseia de Homero ou nos Evangelhos cristãos.
No itinerário de um país, cada geração é chamada a viver tempos bons e maus, épocas de fortuna e infelizmente também de infortúnio, horas de calmaria e travessias borrascosas. A história não é um continuum, mas é feita de maturações, deslocações, ruturas e recomeços. O importante a salvaguardar é que, como comunidade, nos encontremos unidos em torno à atualização dos valores humanos essenciais e capazes de lutar por eles.
Mas à observação realística que Camões faz da tempestade, gostaria de ir buscar um detalhe, na verdade uma palavra, para a reflexão que proponho: a palavra «raízes». Na estância 79, falando dos efeitos devastadores do vento, o poeta diz: «Quantas árvores velhas arrancaram/ Do vento bravo as fúrias indignadas/ As forçosas raízes não cuidaram/Que nunca para o Céu fossem viradas». A leitura da imagem em jogo é imediata: as velhas árvores reviradas ao contrário, arrancadas com violência ao solo, expõem dramaticamente, a céu aberto, as próprias raízes. A tempestade descrita por Camões recorda-nos, assim, a vulnerabilidade, com a qual temos sempre de fazer conta. As raízes, que julgamos inabaláveis, são também frágeis, sofrem os efeitos da turbulência da máquina do mundo. Não há super-países, como não há super-homens. Todos somos chamados a perseverar com realismo e diligência nas nossas forças e a tratar com sabedoria das nossas feridas, pois essa é a condição de tudo o que está sobre este mundo.

O que é amar um país
O Dia de Portugal, e este Dia de Portugal de 2020 em concreto, oferece-nos a oportunidade de nos perguntarmos o que significa amar um país. A pensadora europeia Simone Weil, num instigante ensaio destinado a inspirar o renascimento da Europa sob os escombros da Segunda Grande Guerra, de cujo desfecho estamos agora a celebrar o 75º aniversário, escreveu o seguinte: um país pode ser amado por duas razões, e estas constituem, na verdade, dois amores distintos. Podemos amar um país idealmente, emoldurando-o para que permaneça fixo numa imagem de glória, e desejando que esta não se modifique jamais. Ou podemos amar um país como algo que, precisamente por estar colocado dentro da história, sujeito aos seus solavancos, está exposto a tantos riscos. São dois amores diferentes. Podemos amar pela força ou amar pela fragilidade. Mas, explica Simone Weil, quando é o reconhecimento da fragilidade a inflamar o nosso amor, a chama deste é muito mais pura.
O amor a um país, ao nosso país, pede-nos que coloquemos em prática a compaixão – no seu sentido mais nobre – e que essa seja vivida como exercício efetivo da fraternidade. Compaixão e fraternidade não são flores ocasionais. Compaixão e fraternidade são permanentes e necessárias raízes de que nos orgulhamos, não só em relação à história passada de Portugal, mas também àquela hodierna, que o nosso presente escreve. E é nesse chão que precisamos, como comunidade nacional, de fincar ainda novas raízes.
Nestes últimos meses abateu-se sobre nós uma imprevista tempestade global que condicionou radicalmente as nossas vidas e cujas consequências estamos ainda longe de mensurar. A pandemia que principiou como uma crise sanitária tornou-se uma crise poliédrica, de amplo espetro, atingindo todos os domínios da nossa vida comum. Sabendo que não regressaremos ao ponto em que estávamos quando esta tempestade rebentou, é importante, porém, que, como sociedade, saibamos para onde queremos ir. No Canto Sexto d’Os Lusíadas a tempestade não suspendeu a viagem, mas ofereceu a oportunidade para redescobrir o que significa estarmos no mesmo barco.

Reabilitar o pacto comunitário
O que significa estar no mesmo barco? Permitam-me pegar numa parábola. Circula há anos, atribuída à antropóloga Margaret Mead, a seguinte história. Um estudante ter-lhe-ia perguntado qual seria para ela o primeiro sinal de civilização. E a expectativa geral é que nomeasse, por exemplo, os primeiríssimos instrumentos de caça, as pedras de amolar ou os ancestrais recipientes de barro. Mas a antropóloga surpreendeu a todos, identificando como primeiro vestígio de civilização um fémur quebrado e cicatrizado. No reino animal, um ser ferido está automaticamente condenado à morte, pois fica fatalmente desprotegido face aos perigos e deixa de se poder alimentar a si próprio. Que um fémur humano se tenha quebrado e restabelecido documenta a emergência de um momento completamente novo: quer dizer que uma pessoa não foi deixada para trás, sozinha; que alguém a acompanhou na sua fragilidade, dedicou-se a ela, oferecendo-lhe o cuidado necessário e garantindo a sua segurança, até que recuperasse. A raiz da civilização é, por isso, a comunidade. É na comunidade que a nossa história começa. Quando do eu fomos capazes de passar ao nós e de dar a este uma determinada configuração histórica, espiritual e ética.
É interessante escutar o que diz a etimologia latina da palavra comunidade (communitas). Associando dois termos, cum e munus, ela explica que os membros de uma comunidade – e também de uma comunidade nacional – não estão unidos por uma raiz ocasional qualquer. Estão ligados sim por um múnus, isto é, por um comum dever, por uma tarefa partilhada. Que tarefa é essa? Qual é a primeira tarefa de uma comunidade? Cuidar da vida. Não há missão mais grandiosa, mais humilde, mais criativa ou mais atual.
Celebrar o Dia de Portugal significa, portanto, reabilitar o pacto comunitário que é a nossa raiz. Sentir que fazemos parte uns dos outros, empenharmo-nos na qualificação fraterna da vida comum, ultrapassando a cultura da indiferença e do descarte. Uma comunidade desvitaliza-se quando perde a dimensão humana, quando deixa de colocar a pessoa humana no centro, quando não se empenha em tornar concreta a justiça social, quando desiste de corrigir as drásticas assimetrias que nos desirmanam, quando, com os olhos postos naqueles que se podem posicionar como primeiros, se esquece daqueles que são os últimos. Não podemos esquecer a multidão dos nossos concidadãos para quem o Covid19 ficará como sinónimo de desemprego, de diminuição de condições de vida, de empobrecimento radical e mesmo de fome. Esta tem de ser uma hora de solidariedade. No contexto do surto pandémico, foi, por exemplo, um sinal humanitário importante a regularização dos imigrantes com pedidos de autorização de residência, pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. O desafio da integração é, porém, como sabemos, imenso, porque se trata de ajudar a construir raízes. E essas não se improvisam: são lentas, requerem tempo, políticas apropriadas e uma participação do conjunto da sociedade. Lembro-me de um diálogo do filme do cineasta Pedro Costa, «Vitalina Varela», onde se diz a alguém que chega ao nosso país: «chegaste atrasada, aqui em Portugal não há nada para ti». Sem compaixão e fraternidade fortalecem-se apenas os muros e aliena-se a possibilidade de lançar raízes.

Fortalecer o pacto intergeracional
Reabilitar o pacto comunitário implica robustecer, entre nós, o pacto intergeracional. O pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e desigual, como se não fossemos a cada momento um todo inseparável: velhos e jovens, reformados e jovens à procura do primeiro emprego, avós e netos, crianças e adultos no auge do seu percurso laboral. Precisamos, por isso, de uma visão mais inclusiva do contributo das diversas gerações. É um erro pensar ou representar uma geração como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os outros.
A tempestade provocada pelo Covid19 obriga-nos como comunidade, a refletir sobre a situação dos idosos em Portugal e nesta Europa da qual somos parte. Por um lado, eles têm sido as principais vítimas da pandemia, e precisamos chorar essas perdas, dando a essas lágrimas uma dignidade e um tempo que porventura ainda não nos concedemos, pois o luto de uma geração não é uma questão privada. Por outro, temos de rejeitar firmemente a tese de que uma esperança de vida mais breve determine uma diminuição do seu valor. A vida é um valor sem variações. Uma raiz de futuro em Portugal será, pelo contrário, aprofundar a contribuição dos seus idosos, ajudá-los a viver e a assumir-se como mediadores de vida para as novas gerações. Quando tomei posse como arquivista e bibliotecário da Santa Sé, uma das referências que quis evocar nesse momento foi a da minha avó materna, uma mulher analfabeta, mas que foi para mim a primeira biblioteca. Quando era criança, pensava que as histórias que ela contava, ou as cantilenas com que entretinha os netos, eram coisas de circunstância, inventadas por ela. Depois descobri que faziam parte do romanceiro oral da tradição portuguesa. E que afinal aquela avó analfabeta estava, sem que nós soubéssemos, e provavelmente sem que ela própria o soubesse, a mediar o nosso primeiro encontro com os tesouros da nossa cultura.
Robustecer o pacto intergeracional é também olhar seriamente para uma das nossas gerações mais vulneráveis, que é a dos jovens adultos, abaixo dos 35 anos; geração que, praticamente numa década, vê abater-se sobre as suas aspirações, uma segunda crise económica grave. Jovens adultos, muitos deles com uma alta qualificação escolar, remetidos para uma experiência interminável de trabalho precário ou de atividades informais que os obrigam sucessivamente a adiar os legítimos sonhos de autonomia pessoal, de lançar raízes familiares, de ter filhos e de se realizarem.

Implementar um novo pacto ambiental
A pandemia veio, por fim, expor a urgência de um novo pacto ambiental. Hoje é impossível não ver a dimensão do problema ecológico e climático, que têm uma clara raiz sistémica. Não podemos continuar a chamar progresso àquilo que para as frágeis condições do planeta, ou para a existência dos outros seres vivos, tem sido uma evidente regressão. Num dos textos centrais deste século XXI, a Encíclica Laudato Sii’, o Papa Francisco exorta a uma «ecologia integral», onde o presente e o futuro da nossa humanidade se pense a par do presente e do futuro da grande casa comum. Está tudo conectado. Precisamos de construir uma ecologia do mundo, onde em vez de senhores despóticos apareçamos como cuidadores sensatos, praticando uma ética da criação, que tenha expressão jurídica efetiva nos tratados transnacionais, mas também nos estilos de vida, nas escolhas e nas expressões mais domésticas do nosso quotidiano.

Uma viagem que fazemos juntos
Camões n’Os Lusíadas não apenas documentou um país em viagem, mas foi mais longe: representou o próprio país como viagem. Portugal é uma viagem que fazemos juntos há quase nove séculos. E o maior tesouro que esta nos tem dado é a possibilidade de ser-em-comum, esta tarefa apaixonante e sempre inacabada de plasmar uma comunidade aberta e justa, de mulheres e homens livres, onde todos são necessários, onde todos se sentem – e efetivamente são – corresponsáveis pelo incessante trânsito que liga a multiplicidade das raízes à composição ampla e esperançosa do futuro. Portugal é e será, por isso, uma viagem que fazemos juntos. E uma grande viagem é como um grande amor. Uma viagem assim – explica Maria Gabriela Llansol, uma das vozes mais límpidas da nossa contemporaneidade –, não se esgota, nem cancela na fugaz temporalidade da história, mas constitui uma espécie de «rasto do fulgor» que exprime a ardente natureza do sentido que interrogamos.

Mosteiro dos Jerónimos, 10 de junho de 2020
Cardeal D. José Tolentino Mendonça
Presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas 2020



(sublinhado nosso)

CARREIRO, José. “O que é amar um país, Tolentino de Mendonça”. Portugal, Folha de Poesia, 10-06-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/06/o-que-e-amar-um-pais-tolentino-de.html



quinta-feira, 21 de maio de 2020

Morrer de Brasil



Morrer de Brasil

A Flávio Migliaccio
e aos sem ração ou conforto
sem-terra
sem-teto
aos movimentos de mulheres
LGBTI
às centrais sindicais
às organizações de favelas
de olhos aparelhados em campo de pregos
- tantos houvesse
jamais votei em facho,
esse que da vida é porcino.
Menino de perdidos cantos,
dai engenho a uma vida inteira
pois de sorte boa do planalto nem votos
apenas sangue e língua viperina.

José Carreiro, 2020-05-21

Análise textual

O poema "Morrer de Brasil", de José Maria de Aguiar Carreiro, é uma espécie de manifesto contra a opressão e a injustiça social que afetam os mais vulneráveis da sociedade brasileira. O título é uma frase forte que sugere a situação desesperante de muitos brasileiros, especialmente os mais pobres e marginalizados. A homenagem ao ator Flávio Migliaccio, que na sua carta de despedida lamenta a situação do país e a desilusão com a humanidade, dá uma dimensão ainda mais trágica ao poema.

O poema começa com uma referência direta aos mais pobres da sociedade e aos grupos que lutam por uma vida digna: "sem-terra/sem-teto/aos movimentos de mulheres/LGBTI/às centrais sindicais/às organizações de favelas". Trata-se, pois, de uma homenagem aos "sem ração ou conforto" que são vítimas de opressão e exclusão social. O sujeito poético reconhece a importância dos movimentos de mulheres e LGBTI, bem como das organizações de favelas e das centrais sindicais, que lutam pela igualdade e justiça social.

Ele mostra solidariedade para com essas pessoas e afirma que nunca votou em "facho", um termo pejorativo para designar os políticos de extrema direita que promovem a intolerância e apoiam medidas autoritárias e repressivas. A escolha da palavra "porcino" para caracterizar o facho é significativa, pois o porco é um animal que muitas vezes é associado à sujidade. Deste modo, o sujeito poético critica os políticos fascistas e sua falta de humanidade, comparando-os a porcos.

O sujeito poético utiliza ainda a imagem de um menino que canta canções perdidas e que precisa encontrar engenho para enfrentar as dificuldades da vida. É como se este menino representasse as comunidades marginalizadas que lutam pela sobrevivência num país que as marginaliza. A sorte boa do planalto, que o sujeito poético menciona, não é compartilhada por estas comunidades, que só conhecem a viperina língua dos opressores. Diante das dificuldades do país, não se pode contar com a sorte ou com a benevolência do poder político. É necessário lutar, com todas as armas à disposição, para se fazer ouvir e transformar a realidade: "dai engenho a uma vida inteira/pois de sorte boa do planalto nem votos/apenas sangue e língua viperina".

O poema "Morrer de Brasil" é um grito de dor e de esperança, um apelo à consciência de todos os que se preocupam com a justiça social e com o futuro da sociedade brasileira. É também uma homenagem àqueles que, como Flávio Migliaccio, lutaram e sofreram por um país mais justo e mais humano.

Análise textual solicitada em 19-02-2023 a ChatGPT (Feb 13 Version)disponível em https://chat.openai.com/chat (texto revisto e adaptado)






Cajuína

Existirmos, a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria-vida era tão fina
e éramos olharmo-nos intacta a retina
A Cajuína, cristalina em Teresina

“Cajuína” in Cinema transcendental, 1979, Caetano Veloso


“Existirmos: a que será que se destina?” é o primeiro verso de “Cajuína”, uma canção de Caetano Veloso. Bela, solar e dançante, “Cajuína” refere-se a uma bebida homónima à base de sumo de caju, típica de Teresina, capital do Piauí.

Caetano inspirou-se no néctar cristalino e doce para escrever um forró em homenagem a Torquato Neto, poeta e parceiro que suicidou-se muito novo, em 1972, não só mas também por não aguentar os anos de chumbo da ditadura militar brasileira.

Torquato escreveu, Caetano musicou e Gal Cantou: “Mamãe, mamãe não chore / Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz, Mamãe, seja feliz / Mamãe, mamãe não chore / Não chore nunca mais, não adianta eu tenho um beijo preso na garganta / Eu tenho um jeito de quem não se espanta / Eu tenho corações fora peito / Mamãe, não chore, não tem jeito.”


Não teve jeito. Para Torquato. Nem para Flávio Migliaccio, ator veterano de tantas novelas que também passaram aqui em Portugal e que há alguns dias se enforcou. Flávio deixou uma carta a dizer: “Tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este e com esse tipo de gente que acabei encontrando.”

Alguém escreveu que Migliaccio morreu de Brasil. A frase faz sentido, mas é imprecisa. Morrer de Brasil refere uma doença mais geral, endémica, que atravessa séculos. Sempre se morreu de Brasil, às vezes de escravidão, seca no sertão, outras pela inflação ou por corrupção e tantos outros “ãos”, que fazem boas rimas pobres, mas nunca uma solução.

Para se morrer de Brasil não é necessário estar no Brasil. O mundo morre de Brasil a cada árvore queimada da Amazónia, a cada criança favelada que não sobrevive pela ação do tráfico, pela falta de esgotos, pela subnutrição. Crescida, tal criança poderia ser um Pelé, um Vinicius de Morais, uma Elis Regina, um Ayrton Senna e assim deixar o mundo mais vivo. Mas não.

Portugal também morre de Brasil pois a tragédia moral e social de um país, qualquer país, é uma tragédia que contagia, que ensombra toda uma ideia de civilização. Mais ainda quando acontece a um povo com quem partilhamos o sangue e a língua.

Mas, repito, a doença agora é outra. Ou outras. Há a covid e há o bolsonarismo. São vírus de cepas parecidas, levam à falência de órgãos vitais, seja um pulmão ou o coração ou cérebro ou o congresso nacional.

Pode não parecer, mas este texto é sobre a vida. Falar de mortos é lembrar aos vivos (inclusive eu) que sobramos nós para fazer alguma coisa.

“Existirmos: a que será que se destina?”

Humildemente, respondo: para vencer as trevas é preciso luz, é preciso arte, é preciso diálogo, é preciso poesia, é preciso redescobrir a empatia.

O antídoto para uma coisa má costuma ser o seu antónimo: uma coisa boa. Esta aí: pessoas boas (e o Brasil tem destas quase duas centenas de milhão) precisam compreender isto e atuar enquanto há tempo. Só assim é que poderemos (todos) não morrer mais de Bolsonaro.

Edson Athayde, “Como não morrer de Bolsonaro”, Lisboa, Jornal de Negócios, 2020-05-20




CARREIRO, José. “Morrer de Brasil”. Portugal, Folha de Poesia, 21-05-2020 (última atualização: 19-02-2023). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/05/morrer-de-brasil.html


domingo, 10 de maio de 2020

A poética pandémica



Há uma espécie de poética pandémica, um discurso levantado do vocabulário que subitamente se inventou ou colocou a uso, e que vai procurando dar sentido a tanto que começámos por não saber explicar.

Metidos em cárcere, por mais privilegiado, expressões novas ou recuperadas procuram servir de clarões naquilo que tentamos dizer, não apenas para sabermos como nos sentimos mas, sobretudo, numa ansiosa estratégia para entender como ficaremos depois disto.
O vocabulário anda à procura do sentido, anda à procura do futuro, naturalmente que para nos educar acerca de como chegar ao desejável. Os nomes que damos aos assuntos deste cárcere é também como pensamos que sairemos dele.
Uma das razões para que os escritores se encontrem detidos no monotema do Mundo passa pela sensação desnatural de convocar outras dimensões da vida que não a sobrevivência elementar a um inimigo invisível e ubíquo. Qualquer esforço para apelar a causas e interesses que não se relacionem com o espectro da realidade atual acaba por parecer uma pretensão arrogante, até uma forma de inconsciência ou desrespeito para com quem batalha, padece, morre ou arrisca morrer.
Os escritores estão como oráculos a auscultar na página branca, a partir de seus obstinados diários da pandemia, o que a sorte, a ciência e a política ditam para amanhã. Contudo, o mais que se vai lendo são deriva e angústia. Os escritores encontrarão uma solução tão à sorte quanto o mais afincado cientista. A intuição aponta mas não é concreto esclarecimento. É uma inclinação. Tem mais de medo ou desejo do que de evidência puramente racional.
O esforço que nos está a competir a todos - nós, aqueles cujo contributo maior é o isolamento mais rigoroso possível - passa por uma revisão ética e pela higienização dos gestos e dos compromissos. E isso começa no cuidado com o discurso, e a força de não compactuar com as narrativas extremas.
Estamos num tempo em que os grandes jogadores apostam nos extremos. Pois é exatamente contra quem nos devemos atempar. Entre tudo quanto se procura desenhar, parasitando agora o susto da pandemia e as inevitáveis faltas que acontecerão, o mais grave do futuro será colaborarmos ingenuamente com quem dissemina já discursos de intolerância e ódio para ratificar a intolerância e o ódio e, naquela poética pandémica que define sobretudo como nos preparamos para uma nova normalidade, convencer as pessoas a quererem isso mesmo: a intolerância e o ódio.
Se puderem atentar no modo como falam do que nos acontece, escolham a paritária, livre, construção humana. Só assim fará sentido que mereçamos sequer voltar às ruas um dia.

Valter Hugo Mãe, Jornal de Notícias, 2020-05-10
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sexta-feira, 1 de maio de 2020

Dia do Trabalhador, versos do poeta popular João Sardinha

João Sardinha (Poeta Popular)



DIA DO TRABALHADOR

Hoje é o 1.º de Maio
Dia do Trabalhador
Pandemia olha que eu caio
Valha-me Jesus Senhor

Dia do Trabalhador
Foi feito para festejar
Mas fique em casa por favor
Até Pandemia passar

O Dia é Nacional
Incluídos os Açores
No Brasil Internacional
Este dos Trabalhadores

Festa do Trabalhador
Também no Brasil chamado
Pelo Vírus sim senhor
Dia não é festejado

Do Trabalhador este dia
Em mais Países feriado
Lá pela Pandemia
Este não é festejado

Trabalhador é o dia
Para Homem ou Mulher
Mas com a Pandemia
Vai ser o que Deus quiser

Não vale a pena esmorecer
Leve a vida com Amor
Se de Pandemia não morrer
Sabe Deus Nosso Senhor

Trabalhar não é pecado
Mas o bom está p’ra vir
Para já hoje é feriado
E fim de semana a seguir

Se trabalhar está na hora
Mas Pandemia não abranda
Mesmo para jantar fora
Só no quintal ou varanda

Dia do Trabalhador
Quem vai hoje trabalhar
Covid-19 é um horror
Casa sair nem pensar

Temos de ter confiança
Se há trabalho a fazer
Não esqueça a esperança
É a última a morrer

Pensando ir trabalhar
Se não for faz muito bem
Até Pandemia passar
Eu fico em casa também
 
 
Versejador: João Sardinha
Fonte: DIÁRIO DOS AÇORES, Ponta Delgada, 2020-05-01
 
 



CARREIRO, José. “Dia do Trabalhador, versos do poeta popular João Sardinha”. Portugal, Folha de Poesia, 01-05-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/05/dia-do-trabalhador.html


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