Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.
Quero um cavalo que é só meu,
seja baio ou alazão,
sentir o vento na cara,
sentir a rédea na mão.
Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.
Não quero muito do mundo:
quero saber-lhe a razão,
sentir-me dono de mim,
ao resto dizer que não.
Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.
Eugénio de Andrade, Aquela
nuvem e outras. Porto, Asa, 1986
Leitura
O poema "Não quero, não" de Eugénio de
Andrade é uma expressão
clara da busca pela liberdade individual e da rejeição do militarismo. A
repetição do verso "não quero, não quero, não" reforça a negação de uma vida militar e, por conseguinte, da guerra. Este refrão cria
uma musicalidade que atrai leitores de todas as idades, cumprindo o
objetivo de cativar tanto crianças quanto adultos.
O cavalo, figura central do poema, simboliza a
liberdade e a autonomia. O desejo do eu lírico de possuir um cavalo "seja
baio ou alazão" e de "sentir o vento na cara" e "a rédea na
mão" expressa uma aspiração por uma vida livre, em que ele é o dono do seu
próprio destino. Este anseio por independência e contato com a natureza
contrasta com a vida regimentada de um soldado ou capitão. A
negação do militarismo, sustentada pela repetição enfática do
verso central, é evidente no desejo do eu lírico por uma vida simples e
autêntica, livre das imposições externas.
O poema “Não quero, não”, expressão lírica que revela
a busca pela liberdade individual e a recusa de certos papéis sociais, combina
elementos da tradição literária escrita e oral. Através do uso de rimas,
aliterações, reiterações e estribilhos, evoca a musicalidade típica das canções
e poesias orais. A métrica de sete sílabas e a simplicidade da linguagem ligam
o leitor à cadência da fala quotidiana e às narrativas populares.
Textos de apoio
Trata-se de um poema no qual, para além da
«reivindicação da liberdade individual» (José António Gomes, Figurações do Desejo e da
Infância em Eugénio de Andrade. Porto: Tropelias & Cª, 2010, p. 45), conotada
com a figura do cavalo a galope e a «rédea na mão» (ANDRADE, 1999, p. 44), se
pressente a negação, sustentada estilisticamente pela repetição do verso «não
quero, não quero, não», do materialismo, do militarismo e, por consequência da guerra,
como aponta José António Gomes.
Diz Eugénio de Andrade, no breve mas
substancial texto «À maneira de explicação, se tal for necessário», com que
encerra o seu livro de poemas Aquela
Nuvem e Outras (1986), consagrado à infância (mesmo se é,
como todas as boas obras destinadas a uma receção por parte da infância e da
juventude, de leitura cativante e proveitosa para todas as idades): «a simples
matéria sonora – rimas, aliterações, reiterações, estribilhos, consonâncias – é
fonte de sedução e razão de encantamento desde que o homem se demorou, pela
primeira vez, a escutar o vento entre os ramos» (servimo-nos da 11.ª ed., Vila
Nova de Famalicão, Edições Quasi, 2005, sem numeração de páginas; com cores e
ilustrações que de imediato arrebatam os sentidos do leitor ou do simples utente
do livro, materializando em corpos icónico -empíricos a construção poética que,
com a imagem, transfigura a legibilidade do mundo conhecido e desconhecido). De
certo modo, cumpre-se a cada leitura (silenciosa ou em voz alta) o desejo
formulado pelo poeta exatamente no fim do posfácio: «Quis misturar a minha voz às
vozes anónimas da infância – oxalá ela venha a tornar-se anónima também». E,
para isso, nem é necessário que se exija destes poemas a disseminação e a
persistência na memória coletiva oral, a contaminação com outros textos e o
desdobramento em variantes, a sua adequação, numa palavra, às leis da
tradicionalidade: não só porque, ainda nas palavras do poeta, a «uma retórica
de fogo de artifício» se opõe aqui «uma poética da luz, articulando a nudez e a
transparência com a simplicidade de quem fala para que outros o escutem – daí o
uso frequente das sete sílabas contadas que é o ritmo natural e português da
nossa fala, se não for também o dos nossos passos», mas igualmente porque em
cada um destes textos se cumpre a utopia de uma voz literária primordial; uma voz
de vozes, forte e total, que, no caso, pelo recurso ágil à arte poética própria
das obras literárias orais e pela convocação de uma memória literária (oral e
escrita) que modela um tecido intertextual muito rico e diverso, faz de cada um
destes textos um monumento já tradicional (com o que, diríamos, quase deixa de
ser funcional o conceito de popularizante ou de popularismo estético, tal é a verdade
destes textos, em si mesmos alheios às categorias com que muitas vezes partimos
para a análise de certas obras: oral/escrito, popular/culto, tradicional/não
tradicional, etc.).
A melodia está
na tonalidade de Mi M e tem um âmbito de 8ª Perfeita [Si 2 – Si 3].
Na 1ª parte é
constituída por notas repetidas e intervalos melódicos de 2ª (m e M) e 3ª
menor. Na 2ª parte tem intervalos de 2ª (m e M), 3ª (m e M) e uma 4ª P e uma 5ª
diminuta.
As duas partes
começam e terminam na Tónica (Mi). A 1ª parte é inteiramente composta por três
notas: o 1º grau (tónica de Mi M), e os graus superior e inferior (Fá# e Ré#,
que é a Sensível de Mi Maior). A 2ª parte, apesar de oferecer uma maior variedade
melódica, arpejando os acordes de Tónica e da Sensível (ou da 7ª da Dominante
com a fundamental omitida), pode ser vista como uma versão mais elaborada da
parte anterior, já que, não só a harmonia e o ritmo harmónico se mantêm, como a
Tónica e a Sensível surgem nos mesmos tempos dos compassos.
Destaca-se
nesta parte a utilização dos referidos arpejos do acorde de tónica, um arpejo
Perfeito Maior (“cavalo
só”) e da Sensível, um arpejo diminuto (“ou alazão”),
e o intervalo de 5ª diminuta descendente, em “só meu”.
Características
rítmicas
A melodia está
escrita no compasso 2/4, binário de tempos de divisão binária.
É composta por
duas partes A e B, apresentando a segunda uma variação rítmica, aquando da sua
repetição (B’). O ritmo é silábico e quase exclusivamente escrito em colcheias
e semínimas, destacando-se a célula rítmica, [colcheia duas
semicolcheias], presente em todas as frases da canção, e a célula
[colcheia pontuada semicolcheia], que aqui surge como uma transformação da
célula anterior.
A melodia
divide-se em duas partes organizadas no esquema formal AA BB’ AA BB’ AA,
funcionando a parte A como um refrão. A parte A é constituída por (aa’), a
parte B por (bc) e a parte B’ por (bd).
Arranjo/Instrumentação
O arranjo
segue o plano formal seguinte: Introd. AA BB’ AA BB’ AA
O presente
arranjo foi concebido para ser interpretado por voz acompanhada ao piano.
Entretanto, na versão áudio aqui apresentada e interpretada pelo autor do
arranjo, foram acrescentados outros instrumentos que julgou poderem
enriquecer a sonoridade da canção.
Poemas de Eugénio de Andrade Lidos Pelo Autor, 1972
LETTERA
AMOROSA
Respiro o teu corpo:
sabe a lua-d’água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
sabe ao sol dos rios,
sabe a rosa-louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.
Eugénio
de Andrade, Mar de setembro,
1977 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017
***
Adentrando pelo título,
observa-se em “Lettera Amorosa” a configuração de uma carta de amor que,
de certa forma, é o próprio corpo lido pelo poeta que o sabe de cor e que o colore
para o leitor usando o branco (lua, cal, luz) e o rubro (sangue, cair da noite).
A construção em
redondilhas é responsável pela simetria do poema que sugere a perfeição do
corpo físico evocado. Tal construção, de fácil assimilação, envolve o leitor
num movimento rápido e ritmado, fazendo-o se sentir, também, sabedor do
corpo/poema. Às vogais fechadas do primeiro verso (Respiro o teu corpo),
sucedem, ao longo do poema, vogais abertas (sabe, d’água, molhada, nua,
rosa-louca, pedra amarga) que funcionam como a entrega do corpo físico/textual
ao poeta/leitor.
A repetição do verbo “sabe”
no início dos versos 2/4/5/6/8/10/11 promove um anelo graças ao ritmo dado ao
poema. A recorrência é um “modo tático pelo qual a linguagem procura recuperar
a sensação de simultaneidade” e demonstra que “se está a caminho e que se insiste
em prosseguir” (BOSI, 2000, p. 41). Assim, por meio da reiteração do
som/palavra materializa-se a vertigem do ato de exploração/leitura amorosa do
corpo/poema.
A cada “sabe” o
significado se condensa em saber e sabor que o poeta degusta, sinestesicamente,
com os olhos e a inteligência. Na tradição filosófica do haiku, o sentir “é alguma
coisa que está entre o pensamento e a sensação, o sentimento e a idéia” (PAZ,
1991, p. 197). Essa disposição oriental encontra-se no primeiro verso, no qual
há a integração do poeta/leitor com o corpo/texto assim que ele o “respira”, ou
seja, a sensação olfativa é distribuída ao paladar (sabor) e ao intelecto
(saber).
As imagens elementares da
terra (cal), da luz, do vento (brisa), da água (rio) são evocadas para compor
uma pluralidade na unidade harmônica do corpo/natureza/texto. Diz Eugénio que
“a terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para dar corpo a todo o amor
de que minha poesia é capaz. As minhas raízes mergulharam desde a infância no
mundo mais elemental” (1990, p. 288). Assim, as metáforas elementares são,
nesta poesia, imagensgeratrizes, pois geram uma nova imagem adjetivada, muitas
vezes dissonante racionalmente, mas sensivelmente harmônica.
É exemplar a imagem “luz
mordida” que funde a abstração da claridade ao ato concreto de morder, o qual
contém o escuro da boca fechada e a fome, imagem erótica do desejo. Já “brisa
nua” humaniza a natureza à medida que torna visual o elemento “ar” por meio da
sensação táctil: ao associar o frescor da brisa ao descritivo nua, o poeta
potencializa a sensação ao máximo, gerando a imagem de um arrepio. A
normalidade sofre um abalo com a cópula da imagem arrepio (imagem-gerada pelas
imagens-geratrizes) ao sabor, gerando uma imagem virtual da língua sobre o
corpo. Lembrando Bosi: “A realidade da imagem está no ícone. A verdade da
imagem está no símbolo” (2000, p. 46).
A imagem do nenúfar “lua
d’água ao amanhecer” recria, a partir dos elementos luz (contido em lua) e
água, uma reação quase química no poema, dando-lhe claridade (no branco da
flor) e umidade (no orvalho do amanhecer). Não se pode esquecer que na
filosofia oriental “o orvalho, a névoa, as nuvens e outros vapores estão associados
ao fluido feminino” (PAZ, 1979, p. 94). Nessa fusão surge o corpo desejado
transfigurado pelo corpo poemático: branco e molhado, acordando para o
poeta/leitor. Essa imagem é reiterada na seguinte: “cal molhada” é a parede
branca das construções portuguesas escorrendo a água da chuva, como o corpo fluindo
e sugado no poema.
Mas, a tela eugeniana
recebe, ainda, pinceladas de um vermelho vivo, dos “sangue dos rios” e
“rosa-louca”. Na primeira imagem, o sangue como essência da vida potencializa a
água doce dos rios, símbolo da vida para Bachelard, que pulsa/corre nas veias
humanas como o rio no seu leito. Nessa recriação, todo o sabor sensível e
intelectual do movimento erotizado da vida. Já em rosa-louca, a efemeridade
conferida ao termo rosa junta-se ao adjetivo que representa o desespero da
paixão, materializado na passagem do dia para a noite, do branco para o
vermelho da flor. E, passagem, também, do doce para o “amargo” da “pedra” que representa
a frieza do fim e a possibilidade do sabor e concretude em sua boca.
“Lettera Amorosa, Eugénio de Andrade”,
José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-18. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/lettera-amorosa-eugenio-de-andrade.html
Ilustração do poema “Urgentemente”,
por Sónia Oliveira. (in Letras & Companhia 9, C. Marques e I. Silva. Lisboa, Edições Asa, 2013)
URGENTEMENTE
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
Eugénio
de Andrade, Até amanhã, 1956
(1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017
I - Linhas
de leitura do poema “Urgentemente”, de Eugénio de Andrade
Este poema é uma mensagem da urgente
construção do amor, da permanência na unidade, imperativa em
todos os tempos e lugares e, por isso, meta-histórica e universal.
Os
elementos do discurso que a nível morfológico revelam a intensidade do apelo:
«É
urgente» (vv. 1,2,3,7,9,13);
A
utilização dos verbos «inventar», «multiplicar» e «descobrir» reforçam não só a
ideia de urgência, mas também da necessidade de construção e de multiplicação
desse amor...
Os
elementos que recriam o amor:
«Um
barco no mar» (que pode simbolizar a salvação);
«inventar
alegria»;
«multiplicar
os beijos, as searas» (aumentando a amizade, a felicidade e a fraternidade para
que frutifiquem como as searas);
«descobrir
rosas e rios e manhãs claras» (a beleza das rosas, a presença do outro, a
alegria da claridade da manhã);
«permanecer»
(não desistindo da construção desse ambiente de fraternidade e de amizade):.
Os
conceitos que se opõem ao amor:
É necessário destruir (por serem contrárias
ao amor): «certas palavras»; «ódio, solidão e crueldade»; «alguns lamentos»;
«muitas espadas»;
É preciso acabar com o «silêncio» e com a
«luz impura».
Valor semântico-simbólico de alguns vocábulos:
barco: a viagem, a
salvação;
espadas: guerra, ódio,
violência;
silêncio: solidão, falta
de comunicação;
rosas: beleza, pureza,
amizade;
manhãs claras: alegria,
pureza, paz.
Divisão em partes e assunto de cada parte:
O poema pode dividir-se em quatro momentos,
de acordo com a organização estrófica e com os verbos utilizados.
A primeira estrofe surge como apelo geral à
urgência (da descoberta das «rosas e rios / e manhãs claras») pois só ele pode
salvar (ser «um barco no mar»);
na segunda estrofe, o apelo liga-se à
necessidade de «destruir» tudo o que impede a construção desse amor – dessa
liberdade (portanto, a urgência da destruição de «certas palavras» como «ódio,
solidão e crueldade, / alguns lamentos, / muitas espadas»);
na terceira parte, surge a necessidade de
«inventar», «multiplicar» e «descobrir» o que é belo e dá sentido à vida – alegria,
beijos, searas, rosas e risos e manhãs claras – e que permite
construir ou reconstruir um mundo mais autêntico e fraterno (em síntese, a 3ª
estrofe marca a necessidade da invenção da «alegria» e do amor – «multiplicar
os beijos, as searas»);
a última estrofe justifica, de modo mais explícito,
a postura ética assumida, já que a imagem simbólica do silêncio abafa a
mensagem das palavras («cai o silêncio nos ombros») e a luz perde o seu
carácter benfazejo para se tornar impura, causando a dor. Portanto, na
última estrofe, em forma de conclusão, o poeta volta a referir o que impede o
amor e faz «doer», para dizer que não se pode desistir, perder a esperança, que
é forçoso «permanecer».
Linguagem:
Linguagem rica, variada e sugestiva;
Funções apelativa e emotiva;
Vocabulário utilizado (É urgente, amor,
barco, inventar alegria, multiplicar os beijos, rosas e rios, permanecer...)
transmitindo a ideia de busca do amor, de construção de paz e de liberdade;
Objetivo
a atingir: convencer da urgência do amor...
Recursos estilísticos:
anáfora (vv. l, 2,3)
repetições
metáfora (v. 2)
hipérbole (vv. 3-6) (vv.
11-12)
aliterações /s/ (vv. 3-6)
aliterações/r/(vv. 7-10)
antíteses (destruir / inventar) (amor /
ódio)
personificação (v. 12)
sinestesia («descobrir rosas e rios»)
O poema à luz do título da
obra (AtéAmanhã).
Sem amor não há futuro...
AtéAmanhã garante essa margem de esperança e reafirma a
persistência na invenção do amor...
(adaptado de: Português A
e B: acesso ao ensino superior 2000, Vasco Moreira, Hilário
Pimenta. Porto, Porto Editora, 2000. Coleção: Acesso ao ensino superior:
preparação para a prova de exame nacional - 12º ano, pp. 187, 406, 407; Para
uma leitura de sete poetas contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença,
1997, pp. 127-128)
II - Lê atentamente o poema “Urgentemente”, de Eugénio de Andrade, e
responde, de modo estruturado, às perguntas abaixo apresentadas.
1.Este é um poema que com certeza já
conhecerás. Revisita-o através desta análise.
1.1. Propõe uma interpretação simbólica para o
elemento “barco no mar”.
2.Explica o sentido do verso “É urgente
destruir certas palavras”, clarificando o que “É urgente destruir”.
3.Interpreta a terceira estrofe, tendo em
conta o valor simbólico e metafórico das palavras.
4.Relê a quarta estrofe.
4.1.Explicita o significado dos dois primeiros
versos “Cai o silêncio nos ombros,/ e a luz impura até doer”, relacionando-os
com o conteúdo da estrofe anterior.
4.2.Mostra como estes dois versos se poderão
articular com a linha de leitura “Representações do contemporâneo”.
Elabore um comentário
global do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- tema e sua relação com o
eufórico/disfórico;
- expressividade das formas
verbais;
- simbologia dos nomes;
- recursos estilísticos
relevantes.
Proposta de
correção do comentário de texto:
Neste poema de Eugénio de
Andrade ressalta um tom apelativo e são vários os elementos discursivos que
revelam a sua intensidade.
Tendo como tema
fundamental o apelo que lança a toda a humanidade, não será de estranhar que se
percecione, desde o título, um grito que reclama a harmonia. Além do mais, é visível
a oposição entre os aspetos negativos e os positivos, contrapondo-se, deste
modo, os elementos eufóricos e disfóricos.
Além da repetição
sistemática do vocábulo "urgente", os verbos "inventar", "multiplicar"
e "descobrir" sugerem, também, a necessidade de expandir o amor e
contribuem para reforçar a ideia que defende desde o início: espalhar a
harmonia no mundo, começando pelos homens.
Há, ainda, outras expressões
que remetem para a necessidade de fazer prevalecer o amor sobre a humanidade. É
o caso da expressão "um barco no mar", a sugerir a salvação, uma vez
que esse sentimento também pode salvar o Homem da destruição iminente; o mesmo
é sugerido pelas expressões "inventar alegria", "multiplicar os
beijos, as searas", "descobrir rosas e risos / e manhãs claras"
que, para além de simbolizarem o eufórico, servem igualmente para despertar a
vontade de aumentar a amizade, a felicidade e a fraternidade.
A última expressão
simboliza ainda a beleza, a alegria e a presença do outro.
O verbo
"permanecer" conota a insistência e a necessidade de se construir um ambiente
fraterno e amigável.
Todavia, há muitos
elementos que sugerem a oposição ao amor e que, por isso, é preciso destruir,
destacando-se o "ódio / solidão e crueldade / alguns lamentos / muitas
espadas", o "silêncio", a "luz impura". De facto, a
negatividade ou disforia que envolve este vocabulário serve para destacar,
novamente, a vantagem da sobreposição do amor, em detrimento destes aspetos
negativos que pairam no mundo.
E se os vocábulos usados
sugerem o disfórico, os verbos também adquirem valores opostos. Assim, “inventar"
e "permanecer" remetem, respetivamente, para a necessidade de voltar
a construir a amizade e a fraternidade, partindo dei nada para ai não existir impureza,
e para a ideia de persistência, de luta constante, para que a esperança não se
apague e "a luz impura" se imponha "até doer". Já o verbo
"destruir" encerra uma conotação negativa, embora no contexto se
reporte à destruição de todos os aspetos impeditivos à implantação desse amor,
assumindo, deste modo, um valor positivo.
Há outros termos que
convém descodificar, dado que o seu valor semântico se associa à mensagem que
se pretende transmitir. Destaque-se, por exemplo, o substantivo
"barco" como símbolo da viagem que permitirá a fuga e a consequente salvação,
enquanto "espadas" Indicia sentimentos contrários e sugere a guerra,
o ódio, a violência; a palavra "silêncio" remete para o isolamento, a
solidão, a falta de comunicação; já "rosas" conotam beleza, harmonia,
amor, pureza e os "risos" e as "manhãs claras" apontam para
a felicidade, a alegria e a paz.
Sendo Eugénio de Andrade
considerado o artista da palavra, não é de estranhar que utilize uma linguagem
rica e variada, selecionando o vocabulário que lhe permita transmitir o seu
apelo e as razões por que o faz. Além do mais, serve-se de um conjunto de
recursos de estilo que servem a sua intencionalidade: a anáfora e as
repetições, a traduzir a insistência do apelo; as antíteses, para apresentar duas
realidades distintas e permitir a opção pela mais benéfica para a humanidade;
as aliterações em "s" e em "r", a sugerirem a reflexão e a preocupação;
as hipérboles, usadas primeiramente como forma de acentuar a destruição e
depois para acentuar a urgência do amor; a metáfora, que serve para imprimir o
valor simbólico à mensagem.
Em conclusão, poder-se-á
afirmar que todos os processos usados pelo autor concorrem para clarificar a
mensagem que o poema encerra: sem amor não há futuro nem harmonia no mundo. O
próprio título da obra "Até amanhã" conota a esperança e a
persistência da necessidade de inventar e construir o amor.
Dossier Exame ‑
Português A, 12º ano, Maria José Peixoto, Célia Fonseca, Edições ASA, 2003. ISBN:
972-41-3415-6
IV - Oficina
de escrita criativa
O seguinte fragmento trata-se de uma transcrição incompleta do poema de Eugénio de Andrade. Completa-o de forma expressiva.
“Urgentemente, Eugénio de
Andrade”, José Carreiro. Folha
de Poesia, 2022-11-17. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/urgentemente-eugenio-de-andrade.html
Eugénio
de Andrade, Os amantes sem dinheiro,
1950 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017
Linhas de leitura do “Poema à mãe”,
de Eugénio de Andrade
O poeta
sente-se dividido entre a necessidade vital de cortar o cordão umbilical que
prendia a criança à esfera protetora da mãe e a pena de ter de o fazer.
Por isso, o
seu discurso é meigo, persuasivo, justificativo, e não um grito impetuoso de
adolescente que rompe abruptamente com as amarras da servidão.
O fantasma da
traição filial persegue o sujeito, que se debate com a dificuldade de se
desembaraçar do abraço superprotetor e narcísico de quem devia conceber a
maternidade como uma dádiva ao mundo e não como a posse egoísta de um objeto.
Daqui a consciência da relação filial como um amor infeliz (v.11),
em face da incompreensão do natural crescimento. As queixas, ainda que duras
(v. 10), acerca dessa incompreensão, expressas através de imagens
visuais do retrato adormecido (v. 4) e da perda das rosas brancas no
retrato da moldura (vv. 12-13), são compensadas pela reiteração de
fidelidade filial, apesar das mudanças verificadas; «às vezes ainda sou o
menino / que adormeceu nos teus olhos; // ainda aperto contra o coração / rosas
tão brancas / como as que tens na moldura.» (vv. 23-27)
As rosas
brancas da inocência, se bem que perdidas, ainda são nostalgicamente
recordadas, juntamente com os sinais auditivos da voz materna, associada à memória
do conto popular: «ainda oiço a tua voz: Era uma vez, uma princesa».
E, apesar do
impulso natural de crescer e da sedução dos novos «leitos onde o frio não se
demora» (v. 7) apesar da imensidade da noite, a emancipação adolescente
é negativamente conotada com a exploração dos olhos pelas aves (v.
34).
Por isso, ao
sair da moldura (v. 33) do quadro infantil, ao deixar as rosas
(v. 37) da inocência, ao partir com as aves (v. 38), o sujeito
guarda no seu interior a voz materna como símbolo da persistência de um
passado.
(Para uma leitura de sete
poetas contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença, 1997, pp. 122-123)
***
Note que a diferença fundamental é a atividade passada do Eu/Tu em
confronto com a fixidez (confinada ao espaço da «moldura») do presente.
Note o
conservar do passado «dentro de mim» (v. 36), ou seja, a transformação dada
apenas como exterior («todo o meu corpo cresceu» (v. 32)). Assim se justificará
a presença dessa mãe irremediavelmente perdida, mas mantida presente, como a
chama de Vesta1, em toda a obra de Eugénio de Andrade.
(In Poemas de E. de A., Paula Morão,
Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, p. 76)
__________
Vesta – brilhante e pura como a chama que a simboliza, é a
mais bela das divindades romanas. Para os Latinos personifica a Terra e o Fogo;
mas os Romanos conservaram-lhe apenas a segunda atribuição, reduzindo-a,
todavia, ao lume exclusivamente familiar e dos templos. (in Mitologia Geral I,
Mª Lamas, Ed. Estampa, 1991, p. 362)
Maria dos Anjos Fontinhas (mãe de Eugénio de Andrade)
Texto de apoio
O trabalho
contínuo de transubstanciação que a poesia eugeniana realiza da própria
sensação de perda do instante − frequentemente agregada à dor da separação da
mãe − revela-se em imagens fugidias e evanescentes como essa (bem como os
“sonhos tresmalhados” do poema), ou como, por exemplo, as “pedras” lançadas ao
horizonte em “Abril”, poema imediatamente posterior a “Os amantes sem
dinheiro”, no qual novamente encontramos uma criança em meio às primeiras
descobertas:
Abril
Brinca a manhã
feliz e descuidada,
como só a manhã
pode brincar,
nas curvas
longas desta estrada
onde os ciganos
passam a cantar.
Abril anda à
solta nos pinhais
coroado de rosas
e de cio,
e num salto
brusco, sem deixar sinais,
rasga o céu azul
num assobio.
Surge uma
criança de olhos vegetais,
carregados de
espanto e de alegria,
e atira pedras
às curvas mais distantes
– onde a voz dos
ciganos se perdia.
(ANDRADE, 1966, p. 66)
Embora o
cenário seja de infância e de êxtase paradisíaco, em que a própria manhã de
“Abril” brinca junto à criança, enleada aos elementos da paisagem “no cio”, há
o contraponto da fugacidade do tempo. A estrada impõe a movimentação do espaço
e nela “ciganos” passam a cantar, cujas vozes já se perdem na “curva”.
“Ciganos”, sem morada permanente, são passageiros como as “aves” e, no poema,
produzem música que se confunde com imagem, já que o menino lança pedras ao
espaço como se pudesse, literalmente, enxergar o som subindo aos ares. Música e
imagem são novamente distinguidas como unidades essenciais da poesia e,
desintegradas aqui, operam, assim como a “ave” no poema anterior, um retorno à
enformação básica da palavra poética, permitindo que o leitor tenha acesso à
emoção pura, à intuição, a uma dada excitação espiritual ou perceção sensorial
que estão na base de qualquer formação simbólica.127
Desse
modo, o poema poderia sugerir a visão do menino-poeta diante da descoberta de
sua vocação, que atira pedras à música-imagem, como se pudesse tocá-la, e
vislumbra um horizonte em ascensão, desmanchando a plenitude de “abril à solta
nos pinhais”.
Dentre
todas essas imagens fluidas e recorrentes, a “ave”, sendo o elemento nuclear
nesse livro, encaminha, assim como o “fruto” no volume anterior, a uma visão da
conceção poética eugeniana. Se considerarmos a themata da arte poética
tal como listada por Lubomir Dolezel128, a “ave” oferece uma reflexão bastante
vasta sobre os domínios e alcances da linguagem poética, além de apontar para o
problema da criatividade, já que ela frequentemente se associa à mãe, figura
identificada, desde o prefácio, como principal motivação do poético nesse
segundo livro da coletânea.129
No
quarto poema do livro, “Canção para minha mãe”, em que a figura materna é diretamente
nomeada, encontramos novamente a imagem de um pássaro, porém ligado agora a uma
cena de outono e esterilidade − ainda que a criança apareça juntando os cabelos
destrançados da mãe, triste a cantar. Dos braços dessa mulher escorriam “frutos
maduros de outono” e “águas mortas de abandono”: “Era o tempo das gaivotas /
mas o mar tinha secado”, e depois: “Gaivotas não as havia / e o mar tinha
secado.” (1966, p. 67).130
O
ambiente de esterilidade e ceticismo também está presente em “Apenas um rumor”,
poema 20, em que a “palavra” é equiparada ao “rumor” de um bando de “gaivotas”:
Apenas um rumor
... E no teu
rosto aberto sobre o mar
cada palavra era
apenas o rumor
de um bando de
gaivotas a passar.
(ANDRADE,
1966, p. 88)
A
expressão adverbial “apenas” denota a fragilidade e talvez a impermanência do
canto e do instante pleno. Esse poemeto assemelha-se aos versos do poema 19, intitulado
“Outro poema para o meu amor doente”: “Outono − pássaro de melancolia/ num céu
sem cor que não promete nada” (1966, p. 87), em que o “céu”, como o “mar” do
poema acima, afigura-se como espaço de abertura, mas que, desta vez, não
encontra o fluir expansivo da “ave”.
Em
“Canção breve”, encontramos uma referência indireta aos “gestos” do poema “Os
amantes sem dinheiro”, agora inseridos no contexto de um amor triste e antigo,
que poderia muito bem incluir a relação materna:
Tudo me prende à
terra onde me dei
[...]
Tudo me prende
do mesmo triste amor
que há em saber
que a vida pouco dura,
e nela ponho a
esperança ou o calor
de uns dedos com
restos de ternura.
Dizem que há
outros céus e outras luas
e outros olhos
densos de alegria,
mas eu sou
destas casas, destas ruas,
deste amor a
escorrer melancolia.
(ANDRADE,
1966, p. 71)
“Amor a
escorrer melancolia” lembra a imagem da mulher triste de “Canção para minha
mãe”, de cujos cabelos, braços e pernas também escorriam, como vimos, elementos
melancólicos, como “frutos de outono” e “águas mortas de abandono”. Os “dedos
com restos de ternura” e o “triste amor que há em saber que a vida pouco dura”
trazem à cena a imagem do pássaro a nascer dos dedos dos amantes e a sensação
de passagem e transformação que o poema “Os amantes sem dinheiro” suscita, de
modo que, tanto naquele quanto neste poema, a figura materna permanece como
elemento fulcral, mesmo quando não nomeada.
Do mesmo
modo, “Elegia”, poema 13, parece se dirigir à mãe e às lembranças desse amor
doído, já que estabelece diálogo direto com “Poema à mãe”, 15 do livro:
[...]
Ainda sabemos
cantar.
Só a nossa voz é
que mudou:
somos agora mais
lentos,
mais amargos,
e um novo gesto
é igual ao que passou.
Um verso já não
é a maravilha
de um corpo a
latejar de plenitude.
Tu quebraste-lhe
o ritmo
ao partires um a
um
os ramos todos
da tua juventude.
Não estamos sós:
setembro traz
ainda
um fruto em cada
mão.
Mas os homens,
as aves e os ventos
já não bebem em
ti a direção.
(ANDRADE,
1966, p. 77)
Novamente
há alusões aos “gestos”, porém aqui acompanhados de ceticismo e melancolia. As
“aves” reaparecem, assim como os “ventos” e os “frutos” do poema de abertura do
livro (“Conselho”), entretanto, já deslocados do antigo e prometido furor poético,
apontando agora para os desgastes dos mecanismos outrora associados à plenitude
na infância e à relação materna: “Os homens, as aves e os ventos/ já não bebem
em ti a direção”.
O
primeiro verso do trecho selecionado acima também poderia sugerir relações com
a mãe do poema, frequentemente associada à “primeira música” que tanto motiva a
gênese de sua poesia. Contudo, as condições favoráveis à poesia agora são
descritas em termos de cansaço e esgotamento. Há uma mudança de direção dos
mecanismos de inspiração. A “mãe” não provê mais o “fruto”, embora ele ainda
esteja presente em “cada mão”. Há uma certa “quebra de ritmo” e quebra dos
“ramos da juventude” que oferecem agora ao eu lírico uma reflexão dolorida
sobre os efeitos da velhice, do esquecimento, da distância natural entre mãe e
filho.
Em “Poema
à mãe”, 15 do livro, as queixas sobre a relação viciada entre mãe e filho
são explícitas: o sujeito lamenta o esquecimento por parte de ambos, em que
talvez haja se perdido o conhecimento do “verdadeiro ser” que os dois
experimentaram intensamente durante o período pleno de descobertas e encantos.
Esse conhecimento profundo e rico já não cabe mais na imagem rígida e intacta
de um “retrato”.
menino
que “ama as rosas brancas”, signo de pureza que remete à inocência da
infância131. Ele ainda ouve a “voz”, o cantar da mãe, mas o presente é distinto
e requer novos gestos. O sujeito então se despede e, em um ato de
transfiguração de signos do passado, ou de rasura do “retrato”, permuta “as
rosas brancas” por “aves”. Eis dois signos que se associam tanto à relação
materna, como vimos, quanto ao cantar poético132, sempre vinculado à questão da
memória neste livro.133
A
memória é referida por meio de um paradoxo: de um lado é representada por
retratos, recordações rígidas e imóveis que mal interferem no presente; e de
outro por certas imagens “móveis” do passado, como as “aves” a se desprenderem
dos gestos, capazes de evocar certa lembrança do poético, da vivência da
totalidade dos elementos, da movimentação da palavra, cuja natureza metamórfica
atualiza a experiência e supera a corrosão do tempo, apreendendo a
multiplicidade da vida. Assim, por meio de um signo concreto como “aves”, a
poesia eugeniana sugere o abstrato material da memória em suspensão, capaz de
ser mobilizado pelo fazer poético. Nesse espaço silencioso e confuso “voam”
imagens e sons primitivos que segredam os primeiros milagres. No impreciso
ponto de encontro entre o presente e o passado acham-se as aves suspensas de
outrora, vigiando a promessa de um dia se realizarem.
Ao
despedir-se da mãe e dizer que segue “com as aves”, o eu lírico toma a
determinação de sair da “moldura” do retrato para transfigurar-se em canto.
Afirma a sua vocação de poeta e opta pelo caminho incerto e instável das
“aves”, porém de imensurável libertação.
Por
conseguinte, na imagem que a mãe tem do filho já não cabe o erotismo de “leitos
onde o frio não se demora”, tanto quanto a perda da juventude da mãe se tornou
insuportável ao filho (como o verso “tu quebraste [...] os ramos todos da tua
juventude” do poema anterior também sugere). Contudo, tal esquecimento (tanto
da mãe que esquece que o filho cresceu quanto do filho que também esquece que
ela envelheceu) é superado pelo canto: “Queres ouvir-me? / Às vezes ainda sou o
retrato [...] / ainda aperto contra o coração rosas tão brancas [...] / ainda
oiço a tua voz. / Não me esqueci de nada mãe”.
O eu
lírico simbolicamente mata a mãe, deixando-lhe as “rosas brancas”, como em um
ritual fúnebre, mas somente para poder rememorar e recriar tudo de novo no
espaço do poema. Na permuta das “rosas brancas” por “aves”, o canto atualiza a
rica experiência do passado, mobilizando a memória, que oferece resistência à
implacabilidade do tempo quando vivida de maneira a atuar sobre o presente.
Assim, o canto pretende reconfigurar o passado e atribuir-lhe novos sentidos
pertencentes à vida adulta, de modo a manter-lhe a potência criadora.
Em
Eugénio de Andrade, as representações da memória confundem-se com as representações
da palavra poética, o que evidencia a conexão profunda entre o processo de
rememoração e o fazer poético. A palavra depende da plenitude vivida pelo
sujeito, que, motivado pelo amor e pela entrega, colhe os registros de um
presente absoluto. A memória preserva os instantes ontológicos − pois é a
memória que constitui o ser − , e o germe da palavra nasce para o poeta:
levanta voo como aves, penetra os espaços, assim como a “luz”, “o rumor”, “o
canto dos ciganos” sumindo ao longe. Das imagens revisitadas pelo sujeito
poético depreendem-se elementos fugazes, que partem do momento registrado para
penetrar em uma espécie de hiato que a memória produz na relação entre o
passado e o presente.
É a
consciência do próprio ato poético que estabelece a união ontológica entre os
tempos de outrora e os tempos recentes, para que o sujeito instaure o sentido
de sua própria existência. A confeção da poesia é feita a partir dessas
correspondências estabelecidas pelo sujeito poético, que, ao atuar sobre as
memórias, resgata esses elementos transitórios como elos entre o passado e o
presente, e reconstitui, em seu cantar, a unidade perdida, experimentada na
infância.
Desse
modo, a palavra poética marca essa ausência, ao mesmo tempo que refaz o passado
paradisíaco: preenche e produz ausência, sempre. Eugénio de Andrade firma a sua
vocação de poeta ao reconstituir-se como sujeito liberto da mãe e ao tomar consciência
do próprio ato do fazer poético, o qual demanda mobilização da memória e atuação
sobre ela. É para esse novo espaço de consciência que segue o poeta em perpétua
busca de sua própria sentença: “Boa noite. Eu vou com as aves!”.
“Poema à mãe, Eugénio de
Andrade”, José Carreiro. Folha
de Poesia, 2022-11-16. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/poema-mae-eugenio-de-andrade.html