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quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Cegarrega para crianças, Mário-Henrique Leiria


 

CEGARREGA PARA CRIANÇAS

 

A Velha dormindo

o rato roendo

a Velha zumbindo

o rato correndo

a Velha rosnando

o rato rapando

a Velha acordando

o rato calando

a Velha em sentido

o rato escondido

a Velha marchando

o rato mirando

a Velha dizendo

o rato escutando

a Velha ordenando

o rato fazendo

a Velha correndo

o rato fugindo

a Velha caindo

o rato parando

a Velha olhando

o rato esperando

a Velha tremendo

o rato avançando

a Velha gritando

o rato comendo

 

Mário Henrique Leiria, Contos do Gin Tonic,

Lisboa, Edições Estampa, 6.ª ed., 2007, p. 129.

 


 

Considere-se preambularmente o jogo de linguagem que se estabelece entre o termo cegarrega, que remete para uma «melodia […] aborrecida por ser repetida muitas vezes no mesmo tom»24 e a presença efetiva de um texto caracterizado pela repetição e alternância dos sons [ando] e [endo], que pode exprimir um quotidiano marcado por uma continuidade monótona de ações. A predominância dos sons [v] e [r] conduz a sucessivas aliterações e a incidência neste tipo de consoantes evoca a onomatopeia correspondente ao som das cigarras, estando de acordo com outro dos significados de cegarrega que pode ser o «instrumento que faz um ruído parecido ao fretenir da cigarra».25 As cegarregas, tal como as lengalengas e as canções de infância constituem meios de aquisição de conhecimentos da linguagem essenciais para as crianças que, desta forma, vão aprendendo os sons, associando-os às imagens, facilitando assim a compreensão do conteúdo e o uso de cada palavra.

No presente texto, assiste-se a uma recriação do jogo infantil do Gato e do Rato, em que a Velha assume a função de Gato, perpetuando o movimento de perseguição do elemento mais fraco, representando-se, em jeito de fábula, um exemplo de um jogo de forças existente em determinada sociedade. A Velha afigura-se enquanto personagem dominadora, quer pelo uso de expressões verbais que evocam uma certa condição autoritária associada, neste contexto, a um ambiente militar, nomeadamente «em sentido / marchando / dizendo / ordenando», quer pelo uso de maiúscula no seu nome, conferindo-se-lhe, por este facto, uma identidade social, pois usamos as maiúsculas para designar nomes próprios; contrariamente à designação do rato que, por se encontrar grafada em minúsculas, associa-se a uma condição de anonimato. A subalternidade do rato exprime-se ainda pelo uso de expressões verbais que se opõem às da Velha, e que correspondem aos actos de obediência e de submissão: «calando / escondido / mirando / escutando / fazendo / fugindo». Atente-se na disposição sintática e à forma como a aposição verbal entre a Velha e o rato expressam dois movimentos distintos: a que ordena e o que obedece, a que fala e o que cala, a que persegue e o que foge, representando um contínuo jogo de poder.

No entanto, é o ato da fuga do rato o que desencadeia a peripécia, refletindo uma postura não conformista perante o poder dominante e impulsionando a criação de uma nova realidade, ato que Gilles Deleuze designa como «penetrar numa outra vida».26 Embora o jogo do gato e do rato se caracterize pelo constante movimento de fuga, transmite-se a ideia de que não se pode deixar de fugir, sob pena de se perder o jogo, existindo sempre uma possibilidade de inverter a situação ou de encontrar uma «nova linha de fuga».27 Deste modo, a circularidade permanente entre opressor e oprimido é interrompida, daí que este ato de evadir-se, que não consiste num ato de cobardia, mas antes num traçar de uma linha de fuga e o encontrar de uma saída alternativa, seja uma característica constante ao longo dos contos de Mário-Henrique.

Assiste-se, assim, a uma focalização de extravasação que consiste no ato de fuga e de superação da realidade através da literatura.

O prazer de poder ser um outro ou de se fazer passar por outro, a que Roger Caillois, tal como anteriormente referido, designou como Mimicry,28 concorre para esse extravasamento, provocando o êxtase e o gozo de liberdade que resultam, no campo da imaginação, da passagem para o exterior do real. A diferença relativamente ao jogo original assenta na criatividade com que nos é apresentada uma nova realidade, uma vez que as relações de força presentes no jogo alteram-se e são «inventados» novos sentidos e novas formas de uso para o mesmo jogo. Quer isto dizer que todos os encontros – neste caso entre a Velha e o rato ou entre palavras e atos – são possíveis no espaço da escrita e todo o possível se torna real, permitindo, consequentemente, alterar a «forma de vida».29 […]

Considere-se, em virtude das semelhanças textuais com a cegarrega em análise, nomeadamente a manutenção da estrutura de poder dominante sob a designação de Velha, um dos curtos poemas incluídos nos Contos, intitulado Rifão quotidiano,30 onde é ilustrado o destino de todos os que se deixam, de modo passivo, conduzir por desígnios superiores. […]



Retome-se a cegarrega para compreender que é a ação que conduz à alteração de comportamentos. Assim, a queda do elemento inicialmente em vantagem, a Velha, tem como consequência a inversão das relações de poder, constituindo o clímax deste texto o momento da confrontação entre as duas fações que se observam, que medem forças antes de agir, como se pode verificar nos verbos utilizados: «a Velha caindo / o rato parando / a Velha olhando / o rato esperando». O dinamismo verbal com que se sucedem as imagens da Velha e do rato assemelha-se a uma partida de damas, onde, em cada jogada, cada jogador avança alternadamente, tendo como objetivo final comer todas as peças do tabuleiro e conseguir assim ser o vencedor da partida.

Recorde-se que, no jogo de damas, quando uma peça atinge a oitava linha do tabuleiro, ou seja, o limite do reduto adversário, e passa a ser dama, adquire, a partir desse instante, a capacidade de se deslocar em todas as direções. É possível estabelecer uma analogia entre este processo de «promoção» existente no jogo de damas e esta cegarrega: uma distração ou mesmo uma falta de destreza, que podem ser responsáveis pela queda da Velha, permitem que ocorra uma reviravolta na situação. Deste modo, em vantagem em relação ao seu adversário e encontrando-se a Velha no seu campo de ação, o rato, de acordo com as regras do jogo de damas, é «obrigado» a comê-la (nas damas a obrigação é efetiva; neste caso, a obrigação é uma questão de sobrevivência, pois se não o fizer, corre o risco da relação de forças se alterar de novo e de vir a ser ele o comido).

A focalização de confrontação do escritor com a autoridade vigente é efetuada pelas analogias que se podem estabelecer entre as figuras do poema e as personagens da vida real. A Velha e o rato podem ser identificados, respetivamente, com o Chefe de Estado vigente, António de Oliveira Salazar, sendo este epíteto frequente em vários textos leirianos – além de surgir nos poemas já citados, aparece ainda em Caso Zoológico31, A Banana32 e A Velha e as coisas33 –, e com o cidadão anónimo, que não possui atrás de si uma máquina institucional de poder. A recriação paródica constrói-se a partir da queda da Velha, acto que ridiculariza a «queda da cadeira» de António de Oliveira Salazar, em 1968, e que, segundo consta, ocorreu por desequilíbrio, tendo-o impossibilitado de permanecer no poder. O cómico, no texto, surge por semelhança, como postula Henri Bergson:

 

[…] para além da coisa que é risível na sua essência e nela mesma, risível em virtude da sua estrutura interna, existe uma multitude de coisas que provocam o riso, sugerindo qualquer vaga semelhança com aquela outra, ou qualquer associação acidental de uma com outra que se assemelhe a essa, e assim de seguida; a evidência do cómico não tem fim, porque gostamos do riso e todos os pretextos servem;34

 

A decifração deste jogo-poema passa ainda pelo seu «aparente» destinatário: as crianças. O facto de esta cegarrega lhes ser dirigida pode indiciar a intencionalidade de recriação, porque o jogo, ao imitar a vida, constitui uma representação cénica da sociedade (a uma escala mais pequena), dando, desse modo, às crianças, a oportunidade de, no ato lúdico, na recreação, libertarem a sua capacidade de criar e de reinventar o mundo, não ficando condicionadas por regras instituídas por determinada tradição.

No entanto, em virtude do carácter político deste texto, as crianças a quem o mesmo se dirige são metaforicamente representativas de todos os adultos que conservam impulsos vitais fortes, necessários para a prossecução de mudanças.

A exaltação dos valores da infância na idade adulta está também presente no 1º manifesto surrealista de André Breton, onde, logo no primeiro parágrafo, surge uma crítica tecida à sociedade materialista que incita o homem a estar dependente de objetos, o que resulta numa existência vazia porque desprovida da capacidade de sonhar e de imaginar. Sustenta Breton que a única forma de reaver uma existência plena é através da experiência surrealista, pois «L’esprit qui plonge dans le surréalisme revit avec exaltation la meilleure part de son enfance».35 Por esta razão, pode entender-se que a imaginação criativa vai progressivamente abandonando o homem a partir do momento em que este abandona a condição de criança e se deixa absorver pelos princípios miméticos da vida adulta, inerentes à sociedade capitalista. Estes princípios, em consonância com o acima exposto, são instilados nas crianças pela educação de Estado, assentando na repetição do mesmo enquanto forma de veiculação do conhecimento, para que este seja continuamente reproduzido sem ser questionado. Uma cegarrega, uma fábula, uma história, um mito, são ininterruptamente contados da mesma forma, de geração em geração, constituindo essas narrativas a estrutura basilar para a formação da consciência e da individualidade humanas. Observe-se que o provérbio surrealista, recriado a partir de máximas e rifões populares, passou a ser uma eficaz «palavra de (des)ordem»,36 tendo como intenção primordial a desconstrução de sentidos gnómicos e o questionamento de «verdades» universais instituídas.

Seguindo a tradição surrealista, Mário-Henrique retoma, enquanto meio de subversão deste tipo de conhecimento repetitivo, a recriação de adágios populares. Apresenta-nos, por exemplo, dois textos que parodiam o provérbio «Cada terra com seu uso, cada roca com o seu fuso», transformando-o em «[…] Cada guerra com seu uso»37 seguido de «[…] Cada broca com seu fuso»,38 assim como se apropria da máxima O silêncio é d’ouro,39 intitulando ironicamente um conto onde é descrito um interrogatório policial que conduziu ao silenciamento – eufemismo para a morte – do interrogado, por este se ter recusado a falar.

Num dos seus textos teóricos inéditos intitulado O mito da família,40 Leiria considera que a família é a principal instituição limitadora de liberdade do indivíduo, logo desde a infância:

 

[…] essa organização, que podemos classificar de tenebrosa, a família, base da supressão do desejo e destruição – verdadeiramente secreta – como se o homem, de facto não existisse.

Da remota organização tribal e totémica, ainda hoje se mantêm os aspetos mais convenientes à sustentação duma organização que tem por fim único e exclusivo limitar o indivíduo a simples objeto coletivo sem vontade própria, que tem como objetivo o controle rigoroso do desejo e cuja finalidade é sempre o domínio e a tirania sobre os que dela direta ou indiretamente dependem.

 

De acordo com a nossa leitura desta perspetiva leiriana, há uma intencionalidade política por detrás da educação da criança, que se inicia logo no seio familiar, pretendendo direcionar-se a criança – indivíduo em processo de formação de valores dos quais dependerá na sua vida adulta – para a obediência cega. A criança passa assim a ser um simples corpo sem desejos próprios, um autómato, que não questiona e que se limita a executar ordens e a repetir funções. Isto é conseguido através do medo que é instigado à criança pela família por via da moralidade, tornando-a permissiva e cooperante com todo o tipo de atos de tirania dos seus superiores, sob pena de ser castigada e culpabilizada. É esta a denúncia do autor no excerto seguinte do mesmo ensaio:

 

Nessa organização tudo se passa num ritmo já previamente estabelecido, formado por séculos e séculos de experiência na prática do medo. Para o controle dos que dela dependem, é-lhe posta a serviço uma legislação de respeito obrigatório inexplicável, criando-se na criança, logo que ela começa a ter possibilidades de raciocínio, um receio constante de transgredir aquilo que lhe afirmam – com que bases? – ser o «bom» e de nunca praticar o que lhe dizem ser o «mau». No próprio conceito familiar de «bom-mau» existe uma eficiente e perfeita manobra de assegurar a detenção do indivíduo dentro dum campo de inofensividade; é evidente que uma forte personalidade não era conveniente e há portanto que aboli-la cercando-a de tabus de várias ordens, intransponíveis para a maioria: respeito pelos pais, amor pelos filhos e irmãos, etc, conceitos estes com milénios de obrigatoriedade de aceitação sem discussão. A noção de responsabilidade é abolida e substituída por uma noção de submissão.41


 


Voltando ao texto em análise, o ato de transgressão ao recriar, sem repetição, o jogo do Gato e do Rato, constitui o gesto de insubordinação tão característico da infância, parodiando uma história popular e canónica. Subvertem-se assim as normas que regem a língua e que servem também para conservar o Estado, uma vez que este impõe o que se deve dizer às instituições familiares e escolares, que por sua vez fazem o mesmo com as crianças, veiculando uma forma de educação maquínica que se efetua primordialmente através da linguagem: o que não se pode dizer, também não se pode fazer, constituindo a transgressão da linguagem um ato de mau comportamento.

A rebelião infantil revela-se, de forma geral e instintiva, de numerosas maneiras, constituindo um livre exercício de imaginação e de liberdade a renomeação de referentes da realidade. Observe-se, durante instantes, um simples jogo entre crianças, e facilmente detectamos a alteração de regras, de nomes de personagens e de brinquedos. É inerente à criança a capacidade imaginativa, livre de constrangimentos sociais, o que lhe permite construir a realidade de acordo com os seus sonhos e intentos, e é essa capacidade que se torna perigosa perante o poder autoritário.

Tome-se como exemplo de exequibilidade desta capacidade criadora o conto O menino e o caixote,42 cuja imaginação infantil permite o devir de um simples objeto inanimado, um caixote de cartão, num ser vivo, neste caso específico, num leão. O devir animal corresponde ao desejo infantil de assassinar o adulto que censura o seu ato imaginativo. Este é manifestamente um conto com conotações políticas, cuja repressão, nomeadamente sobre a ação dos intelectuais e artistas, é veiculada através do pai, figura de autoridade da sociedade. A imaginação e liberdade criativas são representadas pela criança, na sua inocência percetiva do Mundo, na sua capacidade de recriar novos mundos e novas possibilidades de realidade. Perante a impossibilidade de lhe ser concedido o desejo de ter um leão no tempo presente, a criança converte essa impossibilidade em possibilidade através da imaginação, pois, a partir do momento em que cria a imagem na sua mente, miscigenando-a com a realidade, está a validá-la enquanto referente real, presentificando-a. Recordem-se, a este propósito, as palavras de Georges Bataille, quando, em A Literatura e o Mal, refere que:

 

Na educação das crianças, a preferência pelo instante presente é a comum definição do Mal. Os adultos proíbem aos que vão chegar à «maturidade» o reino divino da infância. Mas a condenação do instante presente em proveito do futuro, se inevitável, é uma aberração quando extrema. Não menos que proibir o seu acesso fácil, e perigoso, é necessário encontrar o domínio do instante (o reino da infância), e isso exige a transgressão temporária do proibido.43

 

A presença da criança na obra leiriana não opera enquanto tentativa de retrocesso a nenhum passado concreto, nem pretende tão-pouco apelar a uma nostalgia pura do vivido, servindo essencialmente de trampolim para uma fuga abstrata do presente concreto da humanidade estritamente adulta em direção a um tempo presente na criatividade infantil.

Com efeito, algumas das observações de Giorgio Agamben, constantes em Infância e Memória, corroboram igualmente a ideia da presentificação e abrem novas linhas de leitura para o conceito de brinquedo, contribuindo para uma melhor explicitação da nossa interpretação. Observe-se que Agamben considera que os brinquedos, enquanto miniaturas de referentes da realidade adulta, são «[…] como aquilo que permite colher e gozar a pura temporalidade contida no objeto»:

 

O brinquedo é uma materialização da historicidade contida nos objetos, que ele consegue extrair por meio de uma manipulação particular. Enquanto, na verdade, o valor e o significado do objeto antigo ou do documento é função da sua antiguidade, ou seja, do seu presentificar e tornar tangível um passado mais ou menos remoto, o brinquedo, desmembrando e distorcendo o passado ou miniaturizando o presente – jogando, pois, tanto com a diacronia quanto com a sincronia – presentifica e torna tangível a temporalidade humana em si, o puro resíduo diferencial entre o «uma vez» e o «agora não mais».44

 

Neste caso, poder-se-á compreender que os jogos das crianças permitem, através da criatividade, ultrapassar os diferentes tempos enunciados, inaugurando um outro tempo que visa contextualizar novas relações histórico-temporais entre os homens e o mundo. Assim libertadas dos padrões espácio-temporais estritamente lógicos da humanidade adulta, os homens-crianças jogam com o improvável e o inverosímil como forma de reelaborar o seu mundo e reinventar a sua liberdade.

 

O jogo na literatura de Mário-Henrique Leiria”, Marta Braga. In: O Jogo do Mundo, coord. Margarida Alpalhão, Carlos Carreto e Isabel Dias. Lisboa, IELT - NOVA FCSH, 2017, pp. 145-168.





CARREIRO, José. “Cegarrega para crianças, Mário-Henrique Leiria”. Portugal, Folha de Poesia, 08-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/cegarrega-para-criancas-mario-henrique.html



terça-feira, 19 de outubro de 2021

LIBERDADE, Sérgio Godinho

 



LIBERDADE

 

Viemos com o peso do passado e da semente

Esperar tantos anos torna tudo mais urgente

e a sede de uma espera só se estanca na torrente

e a sede de uma espera só se estanca na torrente

 

Vivemos tantos anos a falar pela calada

Só se pode querer tudo quando não se teve nada

Só quer a vida cheia quem teve a vida parada

Só quer a vida cheia quem teve a vida parada

 

Só há liberdade a sério quando houver

A paz, o pão

habitação

saúde, educação

 

Só há liberdade a sério quando houver

Liberdade de mudar e decidir

quando pertencer ao povo o que o povo produzir

quando pertencer ao povo o que o povo produzir

 

Sérgio Godinho, 1974

 

 

A canção Liberdade [...] foi composta logo após a Revolução dos Cravos e traz uma temática relevante em relação ao período português que sucedeu o regime ditatorial. Composta e lançada por Sérgio Godinho (um dos entrevistados) no seu disco Á Queima-Roupa, ainda em 1974, logo após o seu retomo a Portugal, foi um enorme sucesso por realçar os problemas que Portugal estaria enfrentando e por ser um dos primeiros discos da fase do PREC, o teor das composições reforça a preocupação com a política e com o país naquele período significativo que deveria ser de mudanças. Esta canção é ainda muito lembrada atualmente, por discorrer sobre desigualdade social, tema que continua recorrente em esfera global.

 

A canção contém quatro estrofes, sendo as duas últimas apresentadas como 'refrão'. Contém quatro versos em cada, podendo ser regulares e/ou livres, devido à mudança da contagem da sílaba métrica nas duas últimas estrofes. Nas duas primeiras quadras, todos os versos contêm quatorze sílabas métricas, e no refrão, podem variar entre quatro e quatorze. As rimas são emparelhadas, sendo a primeira estrofe: AAAA, a segunda BBBB, e, no refrão, segue a ordem: CDDD CEEE. As rimas das duas primeiras quadras são graves, formadas apenas por paroxítonas, enquanto as rimas do refrão são todas agudas, por serem oxítonas. Todas as rimas são externas, por aparecerem ao fim de cada verso e perfeitas ou consoantes, por apresentarem correspondência total de sons.

 

A canção segue um estilo bem diferente dos estilos vistos em Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira, sendo esta com um ritmo mais acentuado para o rock e folk, com o acompanhamento de viola, baixo, guitarra elétrica, bateria, além de outras duas vozes. A letra serve como aviso tanto à população quanto aos "militares' que tomaram o poder em abril de 1974, pois mostra um conjunto de aspirações do povo que vivenciou uma repressão por mais de quarenta anos e agora, diante da perspetiva da mudança, precisa rapidamente 'resolver' as pendências acumuladas. Com a presença de antíteses, o cantautor mostra situações vividas no país naquele período, como veremos estrofe por estrofe:

 

Viemos com o peso do passado e da semente

Esperar tantos anos torna tudo mais urgente

e a sede de uma espera só se estanca na torrente

e a sede de uma espera só se estanca na torrente

 

Já no primeiro verso, ocorre uma antítese e um tipo de metáfora (catacrese) ao revelar "o peso do passado e da semente". A antítese é descrita pelo tempo "passado" e o substantivo "semente", que nesse caso, pode fazer alusão a algo que ocorrerá no futuro. E o "peso'', nesse caso, não se refere a um peso comum, volume, mas de uma "força", "gravidade", provocando uma catacrese ao utilizar uma palavra no lugar de outra mais adequada: o "peso'', nesse caso, pode trazer dois sentidos: 1. o "peso" do país, que o próprio Salazar deu à História portuguesa, com toda a contribuição de Portugal em relação às grandes navegações e conquistas do passado, e 2. faz alusão ao "fardo" que Portugal carregou nos últimos quarenta anos de opressão. Assim, tanto em um sentido como em outro, esse peso "aumenta" em relação ao futuro, pois há a expectativa das pessoas de voltarem à época dos grandes avanços, em que a nação se mostrava próspera; ou ainda, quanto a sentir uma necessidade de haver (finalmente) um presente ou futuro favorável às pessoas, após mais de quarenta anos na opressão.

 

No decorrer da canção, percebe-se que a leitura mais apropriada é em relação à segunda hipótese, especialmente com o segundo e terceiro versos. O segundo verso também apresenta uma antítese com a "espera de tantos anos" e "urgente'', referindo ao tempo da ditadura salazarista. Pela história portuguesa, desde a queda da monarquia, em 1910, pode-se dizer que Portugal esteve sempre à espera dessa mudança que parecia vir e não somente em relação ao período em que Salazar esteve no poder. No terceiro e quarto versos (repetição) vemos outra figura metonímica utilizada por Sérgio Godinho, ao afirmar que a "sede de uma espera só se estanca na torrente".

 

Nesse caso, a sede pode se referir a um anseio de um povo, a uma série de expectativas que as pessoas têm em relação a Portugal, que só será boa caso seja concretizada; e ao mesmo tempo, essa "sede" também faz parte da necessidade de sobrevivência, pois, sem "água" uma pessoa não sobrevive, e no caso da canção, sem as necessidades básicas, também não. Muitos que emigraram foram a procura de trabalho, liberdade e vida melhor para a família, caso contrário, não viveriam. Essa sede, essa necessidade de sobrevivência só seria saciada com a melhoria em todas as áreas, e na canção, a palavra "torrente", vem confirmar essa ideia, pois, como uma "enxurrada de água", mostra que a melhoria não seria suficiente em apenas um ou outro setor, e sim, em muitos setores, de tão atrasado que o país se encontrava.

 

Vivemos tantos anos a falar pela calada

Só se pode querer tudo quando não se teve nada

Só quer a vida cheia quem teve a vida parada

Só quer a vida cheia quem teve a vida parada

 

Mais algumas figuras de oposição são exploradas nessa estrofe, começando pelo paradoxo logo no primeiro verso, ao "falar pela calada". O silêncio do povo reflete a censura, já que, na verdade o povo não esteve em silêncio, mas sim, foi silenciado. Por meio da censura e do silêncio forçado, as pessoas exprimiam o que de fato estava ocorrendo, e esse ato, por si só, já era uma forma de "denúncia" ao mundo. O segundo verso mostra novamente a ansiedade das pessoas de desejarem tantas coisas (tudo), porque nada tiveram, mostrando outra antítese. Assim, a vida cheia - que antes não era, por falta de emprego, de voz, de saúde - hoje é uma vida que se deseja plena, com trabalho, saúde, disposição e uma participação mais efetiva na luta. A repetição dos dois últimos versos reforça a necessidade de uma mudança, além da anáfora, que ocorre com a repetição das iniciais "só", em três dos quatro versos.

 

Só há liberdade a sério quando houver

A paz, o pão

habitação

saúde, educação

 

A anáfora continua no refrão iniciado com a partícula adverbial "Só". Nele, o poema traz o que mais se exigia pelos portugueses quando do fim da ditadura: a "Liberdade". A canção reforça que a liberdade real só existe mediante a existência de todos os aspetos que não eram possíveis de se ter com o regime salazarista. Como exemplifica a canção: a paz (alusão à guerra que ainda ocorria), o pão (metonímia para alimentação, que ainda não era adequada para todos), a habitação (a moradia, que também não era uma realidade para todas as pessoas); a saúde (melhoria no sistema de saúde, melhores hospitais) e a educação (melhoria e reforma no sistema de ensino)

 

Só há liberdade a sério quando houver

Liberdade de mudar e decidir

quando pertencer ao povo o que o povo produzir

quando pertencer ao povo o que o povo produzir

 

Com a imposição da censura durante o regime as pessoas não tinham o direito de intervir e nem de reivindicar mudanças, após o Golpe Militar, as pessoas esperavam que, com a instauração da democracia, passassem a ter o direito de participar ativamente das mudanças. O último verso encerra o poema referindo-se à injustiça da má distribuição de renda.

 

O antagonismo presente na canção refere-se a uma gama de expectativas que não foram concretizadas durante o salazarismo, e pareciam não se concretizar após a queda do regime. Se a liberdade é tão desejada pelo povo, significa que durante todo o regime salazarista as pessoas não se sentiam livres: se o regime acabou, a ideia, ou a expectativa, era de que a liberdade fosse, enfim, conquistada também. Mas a canção adverte que essa autonomia só seria conquistada de verdade, uma vez que todos os percalços e problemas advindos com o salazarismo fossem igualmente extintos. Além disso, a liberdade não seria de verdade: de que valeria uma liberdade com as expectativas frustradas? O que seria a liberdade, se, no fim, as pessoas teriam de permanecer caladas e sem o poder de decisão? Ou, ainda, se não houvesse investimentos nas áreas prioritárias, que realmente seria a solução para as melhores condições de vida? Esse livramento causaria a verdadeira rutura entre o passado e o presente, mas essa rutura só seria quebrada quando todos os outros problemas citados na canção fossem vencidos também.

 

Essa canção foi uma forma de as pessoas perceberem que uma mudança não acontece rapidamente, como todos esperam. Antes, é preciso que se lute para que ocorram de maneira eficiente e gradativa, especialmente com ação do povo. A letra dessa canção é ainda hoje recorrente em Portugal, não somente como uma forma de protesto contra a desigualdade social, mas também em ocasiões em que se exaltam a conquista da liberdade - ainda que parcial. A seguir, uma imagem retirada de um muro comemorativo de Abril, que estampa as letras mais conhecidas da canção de Sérgio Godinho:

 

Muro Liberdade. Coletivo PCP da Figueira da Foz. "Paz, pão, habitação, saúde, educação".
Disponível em: http://pallasathena-pt.blogspot.com.br/2014_ 08 _O l _ archive.html


 

Canto de intervenção em Portugal: "O povo é quem mais ordena", Ludmila Arruda.

São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016




CARREIRO, José. “Liberdade, Sérgio Godinho”. Portugal, Folha de Poesia, 19-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/liberdade-sergio-godinho.html