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quinta-feira, 11 de julho de 2013

RENUNTIATIO AMORIS


José Carreiro, 2005.
         
                      
ADEUS

O mover dos lábios
a boca que se desenvolveu
os olhos líquidos
eu inflamava amava
as minhas mãos as nossas corriam em viva expansão
e com elas volvia
enchia a boca que agora ressinto pronunciada
a língua enlouquecia a pele

adiante apreçaste
           hoje estás pouco falador
como precisasses
           fala a dor

encontraste outro amante
na mesma compreensão que eu

mas nunca dissemos adeus.
                 
José Maria de Aguiar Carreiro
Chuva de ÉpocaPonta Delgada, 2005.
                 
                 
A epígrafe que abre o livro, um verso de Jorge Luis Borges – “Somos a água, e não o diamante duro, / a que se perde, não a que repousa” –, coloca-nos de imediato perante um horizonte de leitura que o que se segue há-de confirmar. Constituído de duas partes, “Nada Nunca de Ninguém” e “O Riso dos Poetas”, o presente poemário faz da(s) continuidade(s), melhor, da consciência dela(s), o chão do seu dizer ou, como se pode ler no poema “Estes dias que nos Separam”: "farei do gesto uma cópia / infinita dos gestos dos gestos".
Da negatividade ontológica à negatividade temporal e psicológicaJosé Maria de Aguiar Carreiro procura, nos poemas que estão dentro, a completude impossível para uma palavra poética a que os advérbios (“Nada Nunca...”), que estão acima, nos sobreavisam para a ausência dela. A epígrafe reconfirma-se: não há presenças a que o dizer poético se possa juntar, nem continuidades de que a poesia seja o seu assomo de felicidade. Face à ausência – de si, dos outros e de um presente que nunca é –, que resta ao poeta senão a reafirmação dos advérbios? Chuva de Época instala-se no interior dessas ausências, para daí dizer o que dizer não se pode. O riso é o sinal desse impoder, e disso o poeta nos faz seus cúmplices. (Fernando Martinho Guimarães, nota da contracapa de Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005.)
            
            
                                           

                 
                 
ADEUS

Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos,
ou se preferes, a minha boca nos teus olhos,
carregada de flor e dos teus dedos; 

como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve, e tu calavas
a voz onde contigo me perdi. 

Como se a noite viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde o teu corpo principia. 

Como se houvesse nuvens sobre nuvens,
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.
          
Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas, 1951
          
             
O «Adeus» de As Palavras Interditas relaciona-se com o tema da partida, da distância e da separação. Na poesia de Eugénio de Andrade há recorrentemente o drama entre um eu e um tu. Enquanto o primeiro quase se apaga, o segundo define-se por aquele que passa. Como diz Eduardo Prado Coelho: «O encontro é breve – soberano.» (in Ensaios sobre Eugénio de Andrade, 2003)
«Temos aqui um eco da entre-procura e entre-cedência de dois desejos em diálogo (ou se preferes). É também o eco do entre-ceder do desejo e do real (como se… digo-te adeus).
Estes dois diálogos entre mundos (no sentido lógico-modal de mundos possíveis), que resumirei em eu-tu, desejo-realidade, vêm também cruzar-se no clímax final: o real dramático, de nuvens sobre nuvens (aliás homólogo a uma tempestade, que pode ser a do crescendo erótico) abre, ao cimo, em mar perfeito, e este mar perfeito cede ao singrar de um desejo a que o loquente expõe o seu peito como objeto.
[…] estou a referir-me ao constante movimento da metáfora, que, por exemplo, faz de um corpo uma província de um país virtual, transfigura os cabelos em vagas de tempestade, abre em flor os dedos do desejo e alarga um peito em superfície marinha. Mas no domínio da sintaxe da ordem frásica, não posso deixar passar despercebido o efeito extraordinário do verso eu era só fome o que sentia.
Tal como sinto esse verso no contexto do poema e da obra de Eugénio de Andrade, a simples forma sujeito da 1ª pessoa do singular tem muito de uma interjeição (digamos que de dor, ou de súbita privação essencial).
[…] Repare-se só nisto: neste Adeus há 12 marcas da 2ª pessoa do singular. O tu é o seu centro de gravidade.» (Óscar Lopes, Uma Espécie de Música, 1981)
             
             
                      EUGÉNIO DE ANDRADE
             
             
ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.
               
Eugénio de Andrade, Os Amantes sem Dinheiro, 1950
               
               
Analise o poema «Adeus» de Eugénio de Andrade, tendo em conta:
• a oposição passado/presente (o pretérito imperfeito - tempo do amor; o pretérito perfeito – tempo  da destruição; o presente - tempo da constatação do vazio, do «adeus»):
• o amor e a palavra (o passado-tempo das metáforas; o presente - tempo das «palavras gastas», do silêncio);
• o amor e o milagre da dádiva;
• o amor e o milagre da transfiguração;
• os recursos estilísticos: as anáforas; as metáforas (o campo semântico de água);
• a estrutura formal: liberdade do verso e da organização estrófica, ausência de rima.
http://www.prof2000.pt/users/leiria/unidade4.htm
               
               
                                          
               
               
DESPEDIDA

Tudo entre nós foi dito.
Estamos cansados e tristes
neste outono de folhas pairando
e caindo.
Entre nós as palavras colocam um mundo de
silêncio e vazio estéril.
Os próprios sonhos se encheram de neblinas
e o tempo os amarelece.
Outono decisivo de folhas secas
e bancos abandonados de cimento frio
onde não cantam aves
e o vento desce em brandos rodopios.
Apenas uma vaga angústia presente,
uma saudade sem recomeços,
a lembrança tépida a gelar como
veios de mármore.
Tudo entre nós foi dito,
olhamos o apodrecer do parque,
o vento, o crepitar leve das folhas
e, sem ressentimentos, dizemos adeus.
              
Rui Knopfli, O País dos Outros, 1959
              
              
RENUNTIATIO AMORIS
I
[…] Há aqui um subtil entrosamento de registos poéticos e de polarização metafórica, que condensa a irremediável melancolia de um adeus inútil no tépido apodrecer do tempo. O género, antiquíssimo, é o da Renuntiatio Amoris, e vem de Ovídio a Petrarca e Camões, que o nobilitam na idade moderna. A abertura do poema, na estrita e resignada simplicidade da rotura amorosa, traça um quadro de desolação, que lembra o cenário daqueles amantes de uma conhecida ode de Ricardo Reis: «Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio». Diz Knopfli:
Tudo entre nós foi dito.
Estamos cansados e tristes
neste outono de folhas pairando
e caindo.
Entre nós as palavras colocam um mundo
de silêncio e vazio estéril.
Não se encontra aqui o fluir lento das águas do rio, gulosas da margem ida, como em Ricardo Reis. Mas o silêncio que as palavras levantam entre os dois amantes, esse muro de cacos, são o silêncio concreto que na ode se preenche com o gesto das mãos enlaçadas e a contemplação de tudo quanto passa. No cenário de Knopfli não se insinua a inocência da ataraxia pagã, nem o alento moral de um estoicismo que prefigura o gesto de um estado de alma vazio. Há na sua despedida algo de muito diferente. O vulgar banco de cimento contrasta ostensivamente com os adereços das albas cancioneiris, onde cantam as aves, e compõe a quadra da separação sob a luz dúbia do
Outono decisivo de folhas secas.
A imagem atmosférica apela para um certo Camilo Pessanha, de tristezas dilaceradas na inelutável sucessão dos ciclos estacionais:
Outono de seu riso magoado,
verso que o poema de Knopfli recolhe e transmuta no processo da sua própria elaboração poética. O efeito estético logrado ganha ainda uma forte carga expressiva, graças a um processo de alusão metafórica, que apreende, na designação concreta, a tonalidade subjetiva do momento vivido. Deste modo, nos últimos quatro versos, que constituem o fecho do poema, e são a modalização anafórica da sua abertura:
Tudo entre nós foi dito
olhamos o apodrecer do parque,
o vento, o crepitar leve das folhas
e, sem ressentimentos, dizemos adeus
o «apodrecer do parque», fenómeno natural, deve entender-se como sendo o do próprio tempo desvivido, assim como o «crepitar leve das folhas» corresponde ao fogo da paixão que se extinguiu. Luís de Sousa Rebelo, Prefácio a Memória Consentida. 20 anos de poesia 1959/1979, Rui Knopfli. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982.
              
II
              
[…] Knopfli constrói em «Despedida», como em «Ilha dourada», um sujeito poético em confronto com uma realidade de perda – presente ou antecipada - dum objeto amoroso. Não sendo esse objeto nomeado ou definido nos seus contornos, mantém-se em aberto como possibilidade de leitura no poema, um interlúdio entre o sujeito poético e um objeto amoroso alegórico ou arquetípico, em representação de nacionalidade, naturalidade, ou pátria.
[…] Embora sejam mantidas no poema as referências temporais que permitem identificar o espaço nele invocado com um espaço geográfico real (eventualmente não africano, sendo a estação do ano que o caracteriza um «outono decisivo de folhas secas»), esse espaço só poderá ser entendido como um espaço arquetípico ou alegoria do estado de alma do sujeito poético. | Fátima Monteiro, O país dos outros. A poesia de Rui Knopfli. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. Coleção: “Escritores dos países de língua portuguesa”, nº 32, p. 69.
               
               
Elabore um comentário do poema «Despedida» de Rui Knopfli que integre os seguintes tópicos:
  • a oposição passado/presente;
  • o amor e a palavra;
  • a intertextualidade literária com o poema «Adeus», do livro Os Amantes sem Dinheiro, de Eugénio de Andrade;
               
             

   

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/11/adeus.aspx]

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A MATÉRIA DO POEMA

René Magritte (1898-1967) “Call of the peaks"
Magritte, Call of peaks (1943)
                        
    
         
    
      
CARREGO O QUADRO
       
Carrego o quadro, o trabalho no mar
respirado
a casa que deixei logo que o dia clareou
ou mesmo o regresso à paixão do verbo.
Sigo o voo do milhafre.
   
Para lá do vão indisponível da porta
apenas raízes ou teias a expressar o tempo
inquietas máscaras perfazendo o espaço apertado
onde ainda volteias.
   
     
       


        
NESU GLEZNU
    
Nesu gleznu, uzgleznotu jūrā,
kas izelpo
māju, ko atstāju pēc tam, kad diena noskaidrojās,
vai visdrīzāk paša vārda kaislības atgriešanos.
Sekoju klijas lidojumam.
    
Viņpus ostas bezjēdzīgā tukšuma
tik tikko samanāmas saknes vai laika izpausmes gaismekļi;
satrauktas maskas, kas piepilda šauro telpu,
kurp tu vēl joprojām atgriezies.
      
“Carrego o quadro”, José Maria de Aguiar Carreiro
tradução: Leons Briedis (Letónia)
Azoru Salu. Dzejas antoloģija. Rīga, Minerva, 2009
         
     
    
        
     
       
                     
Magritte, “The Difficult Crossing”, 1926,
Oil on canvas, Jean Krebs Collection, Brussels
 
   
  
NO POEMA
   
Transferir o quadro    o muro       a brisa
A flor      o copo     o brilho da madeira
E a fria e virgem limpidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso;
   
Preservar de decadência  morte e ruína
O instante real de aparição e da surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa.
    
Sophia de Mello Breyner Andresen
Livro Sexto 1962
   
    
    

Não está em causa «descrever» um mundo que há-de ser o mundo do «poema limpo e rigoroso», mas o acto de o nomear.
    
É a sobrecarga de nomes concretos (ligados à ideia de visualidade e de clareza – quadromuro, brisa, flor, copo...) que, sobretudo, se associa ao acto de nomear. Este aproxima e implica o Eu no mundo nomeado (= criado), aspecto que o emprego do artigo definido reforça.
    
(Note que nomes abstractos como «limpidez», «instante» «gesto», o não são assim tanto, porque pertencem ao mesmo mundo concreto dos nomes presentes nos dois primeiros versos e são precedidos de artigos definidos que os tornam mais palpáveis.)
   
O poema fixa o mundo nomeado num tempo fora do tempo, isto é, não sujeito à sua acção corrosiva, como se explicita no verso “Preservar de decadência  morte e ruína”
    
Veríssimo, 2003: 309
    
   



René Magritte (1898-1967) “Auto-retrato”
René Magritte (1898-1967) "A Vitória"
  
    
   


PARA ESCREVER O POEMA
   
O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.
   
O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.
   
O poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.
   
Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.
   
Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.
   
Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.
   
Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.
   
A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.
   
E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.
   
E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.
   
O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.
   
Nuno Júdice, A Matéria do Poema
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2008
   
   
Três elementos que o poeta pretende utilizar como matéria do seu poema: pássaro, maçã e flor.
    
   
   
   
   
   
   
   
   
«uma gaiola de palavras» pode ser identificada com um «texto», porque, tal como uma gaiola pode servir para prender um pássaro, um texto, através das suas palavras, permite fixar uma ideia ou conter uma representação de algo (um pássaro, por exemplo).
   
   
   
   
Há uma oposição entre as decisões tomadas pelo poeta e o que destas resultou, ou seja, entre fazer uma gaiola, chamar pela serpente e pôr água na estrofe e, respectivamente, o facto de um pássaro não cantar quando está preso, o facto de Eva temer serpentes e o facto de os versos não reterem a água.
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   


   
A complexidade da escrita.
   
No poema de Nuno Júdice, descreve-se o processo de escrita e se enunciam as dificuldades por que passa o poeta para escrever o poema, simbolizadas em versos como «e o pássaro foge-lhe do verso» (verso 2), «e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou» (verso 4), «e a flor murcha no jarro da estrofe» (verso 6).
   
   
O percurso de um poema.
   
No poema, representam-se fases do processo de criação poética, uma vez que se enunciam decisões tomadas pelo poeta, o que delas resulta, a interrupção do acto de escrita, o regresso à escrita e o momento em que se dá o poema por terminado.
   
(adaptado de: Exame Nacional do Ensino Básico. Prova 22/1ª chamada, GAVE, 2010)
      
   
   
  
   
     
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/08/13/poema.aspx}