AUTOR FRAGMENTO
Da metáfora e veracidade do chão recolho a poesia toda; herberto ou autor, no túnel
do universo pensa no exemplar bilingue
de celan ou na vontade
de morrer sensivelmente sem a escrita,
no esmalte. Este é a figura
de estilística da mesa ou do ciclo, de
lamentos, na corola negra.
Esta é o símbolo da tempestade ou a
realidade traduzida
do diálogo sobre a estrela entre os
tópicos.
Livros lívidos! Palavra suicídio entre números dígitos de anos, autor! ignorando
como recomeçar o uniforme, o verso e o
reverso. Dedica o livro,
levanta-se sobre o verídico1 e desaparece nos precipícios que são os textos,
as estrelas negras na
descrição de Autor.
1 O chão.
Fiama Hasse Pais Brandão in O Texto de João [sic] Zorro, 1974.
Apud Herberto Helder, Poesia Toda. Lisboa, Assírio & Alvim, 19812
O retrato
do autor quando
leitor da nova
poesia portuguesa pode ser lido na epígrafe
à primeira edição de Poesia toda para a Assírio
& Alvim, a de 1981.
Trata-se de «Autor
fragmento», de Fiama
Hasse Pais Brandão, publicado em O texto de Joao Zorro, de 1974. Em nenhuma das contínuas e mudadas reedições da poesia reunida
se encontra de novo o poema.
À maneira
de pórtico no livro de cordel de quatro nós ou do embrulho cor-de-rosa-velho de Manuel Rosa
(design contemporâneo ao Cartucho Joaquim Manuel
Magalhães & Cia 76), os dez versos
do poema de Fiama, se divididos em duas metades
imperfeitas, podem dar matéria à hipótese de que nos seis primeiros
há a proposição de uma verdadeira teoria
da leitura e escrita fundada
na correspondência entre o acidental e o conceptual.
Insistindo nas palavras de Eduardo Prado
Coelho, «trata-se de formular uma conceção topológica do
texto como lugar onde o sentido se produz». Em termos objetivos, estão dispostos de maneira contígua,
mas não necessariamente complementar, os conjuntos binários que movem o discurso:
«Autor fragmento» e «poesia toda»,
«metáfora e veracidade». No primeiro, como em conhecida versão camoniana das
teorias aristotélica e platónica do Amor, «Transforma-se o amador na cousa amada», há o registro do acidente que atira literalmente no chão, despencando-o ou desfolhando-o, um volume, a «poesia toda», que remete ao título do poema, o qual regista,
contudo, não o todo fragmentado, mas sim o «Autor fragmento», sintagma que surpreende
pela unidade não dividida dos dois termos
lado a lado
em equilíbrio tão estável
quanto instável, haja vista que a ausência
de pontuação entre eles impõe-lhes a um só tempo a circunstância de serem sujeitos
de e/ou de estarem sujeitos
a inumeráveis transformações. Parodiando Luiza Neto Jorge,
o poema ensina
o sentido da queda3. O segundo conjunto
binário, «metáfora e veracidade», dá forma de conceito à força acidental
que levou «herberto ou autor» ao chão. está
rigorosamente na passagem
do movimento contínuo
para o alternativo a ideia
de que a identidade pública
conhecida pelo nome Autor é uma categoria
em estado permanente de alternância entre o seu nome civil e o trabalho de autoria de um objeto
que o distingue. É, pois, na passagem, interativa e/ou alternativa, entre a metáfora
e a veracidade – é interessante notar a ordem em que Fiama coloca as palavras,
indo da representação à natureza do acontecimento – que emerge a criação
da imagem como um efeito
de verosimilhança. Na topologia do texto, o verosímil é o acidente
imagético a ser buscado, já que entre
significações «pensa sensivelmente» o lugar «onde
o sen- tido se produz».
Ler é isto: colher (por vontade) ou recolher (por obra do acaso) um «exemplar bilingue
de celan» ou outro autor de dupla identidade, não obrigatoriamente por escrever numa língua outra à sua nacional, mas sim por absoluta compreensão de que do concetual ao metafórico há o transporte da palavra
de um lugar social e culturalmente instável para outro igualmente em mudança na linguagem
poética (Celan)4. Este deslocamento, ou «realidade traduzida», em primeiro lugar, conduz
ao conceito de «figura» 5, que, segundo
a definição no poema, se inscreve num repertório pertinente ao campo «de estilística» das metáforas de Herberto Helder: «da mesa ou do ciclo, de lamentos na corola negra»;
em segundo lugar, é nesse centro de floração absoluta, «uniforme», porque negra (com donaire à Baudelaire), como
em poço profundo ou caverna escura
(«no túnel do universo»), que
se misturam as forças que dão forma
às metáforas, às figuras, numa
palavra, ao «símbolo», ou seja, aquilo
que estruturado por um regime de leituras
já se reconhece como próprio
do universo simbólico
do poeta, por exemplo, de Herberto
Helder, poeta obscuro 6. Sabe-o bem Fiama Hasse
Pais Brandão, como prova a sua configuração de versos no limite da transferência especular entre o claro e o escuro, o obscuro, portanto, o «símbolo da tempestade ou a realidade traduzida», ou mudada,
ou sublimada, o entrelugar (in)tenso porque vacilante, alternativo, à beira de ato falho,
caso não pareça
demasiadamente absurda
a ideia de que «do diálogo sobre
as estrelas entre
os tópicos», de linguagem, pois,
pode-se chegar à experiência dos trópicos (nada mais que um tropo afinal),
no que neles há de luminosa sabedoria
inerente à natureza do simbólico em poesia, que por meio de formas no nível
do significante alcança
inúmeras representações da realidade: a sua força 7.
Neste ponto da leitura, Eduardo Prado Coelho, num ensaio de A noite do mundo, de 1988, tem importante notícia
do dia em que Herberto Helder de uma queda foi ao chão da mão de Fiama Hasse Pais Brandão. A história do acidente que motivou a escrita de «Autor fragmento»
está no primeiro parágrafo de «Fiama: o poema como abreviatura total»:
Fiama gosta de contar uma história: foi quando passava
no Saldanha e levava consigo aquele grande volume de poemas de Herberto Helder que (mentirosamente) se chama Poesia Toda, e, de repente,
o deixou cair no chão. Desse acontecimento ficou um verso
num livro de Fiama: «Da metáfora e veracidade do chão recolho
a poesia toda [sic].» O leitor colocado
diante do poema
tenderá a interpretá-lo como a dicção
de um sentido múltiplo que está para
além do que as palavras
dizem. A história
de Fiama contém
uma lição onde se condensa
uma pedagogia da leitura
dos seus textos:
aquelas palavras apenas dizem
o que dizem, são para ser recolhidas ao rés-do-chão, literalmente e de uma só maneira. Por isso, no que poderíamos obliquamente designar como «o
campo da teoria», Fiama combate incessantemente o pendor plural da leitura moderna. (Eduardo Prado
Coelho, A noite do mundo. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988:
144).
Assim sendo,
com mais uma
razão do crítico
a favor da sua paradigmática noção topológica do texto para a leitura
dos Poetas 61, a segunda metade imperfeita de «Autor fragmento», os quatro últimos versos, é uma apurada invocação, um fino grito que com exclamados is chama
de volta à vida o «autor» 8, levantando-o do chão, num gesto tão largo de escrita sobre
folhas dispersas e números de páginas e datas de livros e de poemas
ao direito e ao avesso,
que lidos em voz
alta 9 reescrevem ao final o A de Autor em maiúscula, posto
em sossego desde o título:
«(...) ignorando/ como
recomeçar o uniforme, o verso e o reverso», como se à maneira de Camões entre
a (sen)tença de Amor ditada por Platão
e Aristóteles 10. Recolhido, porém,
de novo sobre a mesa de onde caíra ou se suicidara, o autor,
ou o livro, dá no mesmo, é uma coisa sabidamente ignorante, delicada, repete
a dedicatória e silencia e diz adeus e vai-se
embora até que a mão desconcertada o chame outra
vez às falas 11.
Desconcertada mão,
como a dessa criança tão brusca, que de tão brusca destrói
e aumenta o coração do Poeta.
Criança aqui
antecipada, e dolorosa
e necessariamente fragmen-
tada, de outro
ciclo, «O poema
V» do mesmo A colher na boca
(...)
Ah, não se deve dizer que um rosto
perde
as suas brasas,
só porque se inclina sobre a penumbra
de uma fonte ou um instrumento rápido.
Porque o rumor ressalta
na noite parada,
e pode-se
enlouquecer eternamente. Ou porque a colher
pode ligar
a terra à violência do espírito.
(...)
eu abaixava-me e tomava como
nos braços
essa criança ignota.
(...)
Herberto Helder, Poesia
Toda. Lisboa, Assírio & Alvim, 1981, p. 52
No fundo,
«Autor fragmento» é uma homenagem de Fiama Hasse Pais Brandão
a Herberto Helder, ou melhor,
é uma leitura comovida da autora
de Homenagem à literatura ao autor
de A colher na boca. E ele o sabe, como
prova a solitária e única epígrafe
à Poesia toda de
1981, a primeira una, dando-lhe os ares de pássaro prefaciador 12.
Em literatura nada se prova,
mas dá um sabor especial ao verbo usá-lo em título
tão apurado como
esta Colher, de ouro
já, experimentando as suas muitas
e variadas ementas.
Como, e é Fiama mais uma vez, em «A minha vida, a mais hermética», de Novas visões do passado, 1975,
na sua iluminada interpretação de verso justamente celebrado de «As musas cegas»,
o VII poema, mais precisamente.
Vale a
pena reler os dois poemas,
que não serão,
entretanto, detidamente interpretados. Postos lado a lado (força de expressão, na verdade, um após o outro), Herberto Helder e Fiama
Hasse Pais Brandão
reiteram a metodologia aplicada em sala de aula no ensino da leitura
de poesia e neste ensaio,
em que a relação dual se quer compreendida no espaço vivo da interlocução prazerosa entre textos
de literatura 13. Cabe ao leitor
considerar se é justa a hipótese de que afirmações, como as de Fiama a seguir («Nada
se opõe, tudo difere, este sistema simbólico/ inclui os gritos,
com mais numerosas referências.»), são uma maneira legítima
de explicar o que ela dissera ao escrever em versos os seus conceitos de figura e de símbolo
sobre o «Autor
fragmento», decadente, quer dizer, em modo verídico e metafórico de uma queda ao chão, suspenso entre o literal
e o hermético («o símbolo
da tempestade ou a realidade traduzida»). Ou se os versos
de Herberto («essa
criança tem os pés na minha boca
/ dolorosa») dão
mais clareza ao sentido de «Livros lívidos! Palavra suicídio entre números dígitos de anos, autor! ignorando / como recomeçar o uniforme, o verso e o reverso.», lidos há pouco, diz-se agora,
como uma maneira
de meter os pés pelas
mãos, quer dizer, de pôr os pés ao invés de a colher
na boca. O que, mais objetivamente,
quer dizer: a cada pé (de verso),
a cada novo passo em volta de uma obra continuada e obsessivamente dobrada
e desdobrada sobre si mesmo,
Herberto Helder dá mais clareza
e sentido à sua vida dita cada
vez mais hermética 14.
AS MUSAS CEGAS VII (fragmento)
(...)
Essa criança é uma coisa que
está nos meus dedos;
às vezes debruço-me sobre as
cisternas, e as vertigens,
e as virilhas em chama.
É a minha vida. Mas essa
criança
é tão brusca, tão brusca, ela
destrói e aumenta
o meu coração.
No outono eu olhava as águas
lentas,
ou as pistas deixadas na neve
de fevereiro, ou a cor feroz,
ou a arcada do céu com um
silêncio completo.
Misturava-se o vinho dentro
de mim, misturava-se
a ciência da minha carne
atónita. escuta: cada vez a
minha vida
é mais hermética.
essa criança tem os pés na
minha boca
dolorosa.
(...)
(Herberto Helder, Poesia
Toda. Lisboa, Assírio & Alvim, 1981, pp. 112-113)
A MINHA VIDA, A MAIS HERMÉTICA
Este amor literal, o pormenor
dos lábios, a aproximação
da consciência é a situação
mais nítida sobre a profundidade dos gritos.
Sobre a colina tradicional,
sendo a tradição um único
momento, estou na mesma
situação de blake e na situação
de mim mesma quando ouvia o
infinito no grito das crianças
e quando era evidente. Porém
não terminava o crepúsculo, nem os jogos
se estavam a tornar obscuros,
nem junto à casa aparecera a fisionomia da imagem
de mãe. Nada se opõe, tudo
difere, este sistema simbólico
inclui os gritos, com mais
numerosas referências.
Tudo o que disse com
literalidade deverá parecer,
agora, o aviso de que a minha
vida é a mais hermética.
(Fiama
Hasse Pais Brandão, Novas visões do passado. Lisboa: Assírio & Alvim,
1975, p. 65)
Notas:
2 «ignorando», verso 7, com i minúsculo, que Herberto Helder copia corretamente da primeira edição da poesia reunida em 1974. A partir de Obra breve (Teorema, 1991), «Ignorando».
3 «O poema ensina
a cair» (Jorge,
2008: 64)
4 Michael Hamburger: «Celan
começou por expressar a experiência extrema
– a de um poeta
nascido numa comunidade judaica de língua
alemã na Romênia, alimentado com o «leite negro»
do terror sob as ocupações alemã e russa,
e sobrevivendo a esse terror para passar
a viver em França. Apesar
de escrever em alemão, seu purismo artístico tem paralelos mais próximos na poesia francesa
contemporânea do que na poesia da Alemanha
Ocidental ou Oriental.
esse purismo artístico não se contenta
com nada menos que ‘ataques
de surpresa ao inarticulado’. Seria impertinente especular
sobre quanto da prática final
de Celan se deve à experiência extrema,
quanto se deve ao rigor artístico de um modernista impertinente. O que é certo
sobre os últimos
poemas de Celan é que exploram os limites da linguagem e os da consciência, tenteando o caminho rumo a uma
comunhão que possa
ser religiosa ou mística, de vez que
seu ponto de par- tida é a solidão total
e seu destino está ‘no outro lado
da humanidade.’» (2007:
410-411).
5 Maria Gabriela Llansol:
«(...) identifiquei progressivamente ‘nós construtivos’ do texto a que chamo figuras e que, na realidade, não são necessariamente pessoas mas módulos,
contornos, delineamentos. Uma pessoa que historicamente existiu
pode ser uma figura ao mesmo título
que uma frase
(‘este é o jardim que o pensamento permite’), um animal,
ou uma quimera. O que mais tarde
chamei cenas fulgor.» (2004: 139-140).
6 Título de livro pioneiro
de Maria Estela
Guedes sobre Herberto
Helder.
7 eduardo Prado Coelho: «eis a palavra: força. Não estado, mas processo. Não imitação, mas devir. Não ergon, mas energeia. Não representação, mas força. Ao situar-se num espaço comunicacional, Mukarovsky vai desenvolver as categorias necessárias para incentivar o que, alguns
anos depois, Barthes
havia de considerar a tarefa mais
urgente da semiótica: pensar as intensidades. Podemos dizer que, em Portugal, esse trabalho tem sido feito nos textos «teóricos» de Herberto Helder: em especial,
Photomaton & Vox.» (1982: 387).
8
Maria Gabriela Llansol:
«– Um homem a morrer chama-se
moribundo, e a um livro?» (2004: 138).
9 Herberto Helder:
«(...) e eu adormecia e sonhava um homem
em voz alta (...)» (1981: 95).
10
Maria de Lurdes Saraiva sobre o «Transforma-se o amador na cousa amada» de Camões, que atravessa toda esta leitura de «Autor fragmento»: «este soneto tem sido investigado por todos os estudiosos das conceções filosóficas de Camões, e é em geral considerado como uma confissão de platonismo. A densidade ideológica desafia a condensação
de qualquer perífrase. O que Camões
nos diz é que, à força de pensar na amada, acaba
por fazer parte
dela mesma. Não pode, portanto, querê-la, pois ela já está dentro de si. As duas almas
são uma. que
pode, pois, o corpo desejar?
Mas, desta identidade, passa
imediatamente à teoria
aristotélica de essência e
acidente. A essência
de Aristóteles é a matéria; mas a matéria
é categoria anterior
à realidade que,
só pela inteligência ou pela passagem
do virtual ao real (o acidente), se concretiza e realiza. Assim
é a situação do Poeta:
ideia pura, tão pura com a matéria
simples, que busca
o acidente que a realize, acidente que é, obviamente, a posse da amada.» (1980:
265). A frase
que leva à nota foi escrita sobre
dois poemas de Sophia: «Soneto
à maneira de Camões» e «Camões e a tença».
Sem falar, é claro,
nos dois versos iniciais do primeiro poema de «Tríptico», que na edição de 1981 de Poesia toda é um único
poema sem título:
«‘Transforma-se o amador na coisa amada’
com seu/ feroz
sorriso, os dentes,
(...)» (1981, 17)
11 Sobre a já pertinente
polêmica questão da «morte do Autor» (Barthes)
Fiama tem um notável poema-manifesto, hoje expurgado da sua obra poética. Trata-se
de «Prefácio» (mais uma «prova» do seu gosto por A colher na boca),
texto em 49 versículos, publicado em Homenagem à literatura, 1976. Por exemplo,
p. 9: «Reconsiderar: (...) 4. o aprofundamento da personagem literária ou simbólica,/ 5. a absoluta unicidade do Autor,/ 6. a absoluta necessidade do Autor, (...)»
12 Fiama
Hasse Pais Brandão, «A Hugo»: «Ardente, uma palavra itinerante devorada pela
Colher / na boca, as elegias, as Folhas de outono. Cantores / oiço, com a
plumagem mirífica de parecerem pássaros prefaciadores. (...)» (1974: 257).
13
Luis Maffei:
«Se poetas podem-se
irmanar, Fiama
escreve: ‘(...) sendo
a tradição um único
/ momento,
estou na mesma situação de blake’: ‘na mesma situação’ de Herberto
Helder que, na parte ‘VII’ de ‘As musas cegas’,
cronologicamente, portanto, antes do poema de Fiama,
escreveu, sem deixar
de ter em conta a inocência blakeana: ‘(...) cada vez a minha vida / é
mais hermética’. Nesta formidável conversa,
o poema de Fiama estanca a progressão do poema herbertiano, pois, no caso de ‘As musas cegas’,
há um processo, a ‘vida»
sendo ‘cada vez’
‘mais hermética’; isto
aponta para um burilamento do próprio fazer
poético rumo a um rigor ‘cada vez’ maior, e não perco de vista que, sendo ‘As musas
cegas’, originalmente, dos anos 60,
havia muita poesia
ainda a se escrever no poema contínuo. Por outro lado,
‘o aviso’ de Fiama diz de um hermetismo já construído, pronto e posto
em perspectiva: ‘a minha vida é a mais hermética’, se não entre
todas, pelo menos
‘a mais hermética’ possível. (...)» (2007:
435)
14 Izabela Leal: «Muito se tem falado, por exemplo, a respeito do exercício de reescrita ao qual Herberto Helder submete seus poemas. Tal prática poderia dar a impressão,
à primeira vista,
de estar atrelada a uma busca
de perfeição poética, de refi- namento e depuração do texto em direção a um material irredutível. Mas se lembrarmos das alterações às quais o autor submeteu
os poemas de Cobra,
que eram modificados de exemplar para exemplar sobre o próprio
texto impresso, veremos
que não se trata de uma simples
«correção» dos poemas,
mas que tal ato é quase uma performance que visa a mostrar que o poema
não é nunca uma realidade em repouso, mas algo que está permanentemente em construção, em movimento. O ato transgressor do poeta sobre o livro impresso aponta,
em última instância, para uma dessacralização do poema, ao mostrar que este não é algo definitivo e insubstituível, que não tem uma aura, no sentido benjaminiano. Tudo nele pode ser alterado,
remanejado, montado e desmontado. (...)» (2008: 120).
Fonte: “Acolher na boca, depois no chão dos olhos: o poema. Ou o dia em que
Herberto Helder de uma queda foi ao chão da mão de Fiama Hasse Pais Brandão”, Jorge
Fernandes da Silveira. In: Diacrítica. Série
Ciências da Literatura. [23:3, 2009], Universidade do Minho.
Centro de Estudos Humanísticos, pp. 87-93
CARREIRO, José. “quando
Fiama deixou cair no chão a «Poesia Toda» de Herberto Helder”. Portugal,
Folha de Poesia, 25-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/quando-fiama-deixou-cair-no-chao-poesia.html