Sai o
menino pelos fundos do quintal, e, de árvore em árvore, como um pintassilgo,
desce ao rio e depois por ele abaixo, naquela vagarosa brincadeira que o tempo
alto, largo e profundo da infância a todos nós permitiu...
Em certa
altura, chegou ao limite das terras até onde se aventurara sozinho. [...] Dali
para diante, para o nosso menino, será só uma pergunta [...]: «Vou ou não vou?»
E foi.
O rio
fazia um desvio grande, afastava-se, e de rio ele estava já um pouco farto,
tanto que o via desde que nascera. Resolveu cortar a direito pelos campos,
entre extensos olivais, [...] e outras vezes metendo por bosques de altos
freixos onde havia clareiras macias sem rasto de gente ou bicho, e ao redor um
silêncio que zumbia, e também um calor vegetal, um cheiro de caule sangrado de
fresco como uma veia branca e verde.
Oh que
feliz ia o menino! Andou, andou, foram rareando as árvores, e agora havia uma
charneca rasa, de mato ralo e seco, e no meio dela uma inóspita colina redonda
como uma tigela voltada.
Deu-se o
menino ao trabalho de subir a encosta, e quando chegou lá acima, que viu ele?
[...] Era só uma flor. Mas tão caída, tão murcha, que o menino se achegou, de cansado.
E como este menino era especial de história, achou que tinha de salvar a flor. Mas
que é da água? Ali, no alto, nem pinga. Cá por baixo, só no rio, e esse que
longe estava!...
Não
importa.
Desce o
menino a montanha,
Atravessa
o mundo todo,
Chega ao
grande rio Nilo,
No
côncavo das mãos recolhe
Quanto de
água lá cabia,
Volta o
mundo a atravessar,
Pela
vertente se arrasta,
Três
gotas que lá chegaram,
Bebeu-as
a flor sedenta.
Vinte
vezes cá e lá,
Cem mil
viagens à Lua,
O sangue
nos pés descalços,
Mas a
flor aprumada
Já dava
cheiro no ar,
E como se
fosse um carvalho
Deitava
sombra no chão.
O menino
adormeceu debaixo da flor. Passaram as horas, e os pais, como é costume nestes
casos, começaram a afligir-se muito. Saiu toda a família e mais vizinhos à
busca do menino perdido. E não o acharam.
Correram
tudo, já em lágrimas tantas, e era quase sol-pôr quando levantaram os olhos e
viram ao longe uma flor enorme que ninguém se lembrava que estivesse ali.
Foram
todos de carreira, subiram a colina e deram com o menino adormecido. Sobre ele,
resguardando-o do fresco da tarde, estava uma grande pétala perfumada, com
todas as cores do arco-íris.
Este
menino foi levado para casa, rodeado de todo o respeito, como obra de milagre.
Quando depois passava pelas ruas, as pessoas diziam que ele saíra da aldeia
para ir fazer uma coisa que era muito maior do que o seu tamanho e do que todos
os tamanhos.
José Saramago, A Maior
Flor do Mundo, 2001.
VOCABULÁRIO:
freixos
– árvores frequentes nas margens dos rios.
charneca
– terreno plano onde apenas cresce vegetação rasteira.
ralo – pouco
denso.
inóspita
– agreste, inabitável.
se
achegou – se aproximou.
côncavo
– cova ou cavidade.
aprumada
– bem direita.
de
carreira – atrás uns dos outros; depressa.
QUESTIONÁRIO:
Responde aos itens
que se seguem, de acordo com as orientações que te são dadas.
1. Assinala,
de 1.1. a
1.3.,
a única opção que completa cada frase de acordo com o sentido do texto.
1.1. Nos dois primeiros
parágrafos, o menino é apresentado como uma personagem que
A.caminha com passos vagarosos.
B.brinca com um pintassilgo.
C.saltita com a leveza de uma ave.
D.avança com passadas largas.
1.2. O menino aventurou-se
por caminhos desconhecidos e
A.encontrou, ao pé do rio, uma flor murcha.
B.colheu, no cimo da encosta, uma flor perfumada.
C.plantou, ao pé do rio, uma flor especial.
D.descobriu, no cimo da encosta, uma flor
ressequida.
1.3. A ideia contida nas
linhas 32 a 35 mostra que a flor
A.abrira as grandes pétalas perfumadas.
B.se encontrava à sombra de um carvalho.
C.se cobrira de pétalas pequenas e coloridas.
D.crescera à sombra de uma árvore de copa larga.
2. Relê o segundo
parágrafo.
Indica o motivo da
indecisão do menino.
3. O percurso do menino
levou-o a descobrir lugares novos.
Relê o quarto
parágrafo.
Transcreve a frase
que mostra o sentimento que essa descoberta despertou no menino.
4. Relê a expressão
seguinte: «Andou, andou».
Que ideia transmite a
repetição da palavra?
5. Depois de encontrar a
flor, o menino sentiu que tinha uma tarefa para cumprir.
Refere três dos
obstáculos que o menino teve de vencer para cumprir essa tarefa.
6. Relê o último
parágrafo.
Concordas com o modo
como as pessoas da aldeia reagiram ao que o menino fez?
Justifica a tua
opinião.
CHAVE DE
RESPOSTAS:
1.1. C
1.2. D
1.3. A
2. O menino
ficou indeciso porque tinha chegado ao limite das terras em que se tinha
aventurado sozinho.
3. Transcreve,
com total fidelidade e respeitando as normas de transcrição, a frase: «Oh que
feliz ia o menino!».
4. A repetição
da palavra «andou» transmite a ideia de que o menino andou durante muito tempo
/ fez um longo percurso.
5. Refere três
dos obstáculos que o menino teve de vencer. Por exemplo:
– a distância
a que a água se encontra da flor;
– a falta de
um recipiente para transportar a água;
– a
necessidade de fazer inúmeras viagens;
– as mãos
pequeninas do menino;
– a falta de
sapatos;
– os pés a
sangrar;
– o cansaço.
6. Cenários de
resposta:
Concorda com o
modo como as pessoas da aldeia reagiram e apresenta uma justificação plausível,
explicitando, a partir da informação contida no texto, a razão em que baseia a
sua posição.
OU
Discorda do
modo como as pessoas da aldeia reagiram e apresenta uma justificação plausível,
explicitando, a partir da informação contida no texto, a razão em que baseia a
sua posição.
OU
Aponta aspetos
favoráveis e desfavoráveis relativamente ao modo como as pessoas da aldeia reagiram
e apresenta uma justificação plausível, explicitando, a partir da informação
contida no texto, a razão em que baseia a sua posição.
Consultar outros níveis de desempenho na fonte: Prova
Final de Língua Portuguesa 2.º Ciclo do Ensino Básico (Decreto-Lei n.º 6/2001,
de 18 de janeiro) - Prova 61/1.ª Chamada, IAVE, 2012
Uma análise
da obra A Maior Flor Do Mundo, de José Saramago
A obra A Maior Flor do
Mundo, cuja 1.ª edição foi publicada em 2001, foi escrita para crianças por José
Saramago.
Esta obra apresenta
características específicas da literatura infantil: trata-se de uma história
muito curta, escrita “com palavras muito simples” (MFM); a personagem principal
é uma criança (um menino), facto que a aproxima dos seus leitores; a história
tem um final feliz, ou seja, o herói é recompensado pela sua atitude solidária,
corajosa e heroica, obtendo o respeito de todos. Outra característica
específica da literatura infantil é a ilustração realizada por João Caetano,
que nesta obra tem um enorme destaque pois ocupa o fundo de todas as páginas. É
uma ilustração que enriquece o texto acrescentando-lhe pormenores (envolvidos
de subjetividade) que estimulam a imaginação do leitor ao cruzar elementos e
informações diversas: a pintura, que parece feita em tela, é entrecortada por colagens
e pequenas informações e detalhes que exigem algum cuidado interpretativo. Como
exemplo, destacamos a ilustração em que o menino é encontrado adormecido debaixo
da pétala da grande flor: as pétalas são recortes do mapa-mundo e a altura do
seu caule é destacada com uma fita métrica.
Outro aspeto interessante
da ilustração é o facto de o escritor se assemelhar a José Saramago, o que
reforça a ideia de que o narrador é simultaneamente o autor do texto. Em síntese,
parece-nos que neste caso não é a ilustração que se articula harmoniosamente
com o texto, mas o contrário: o texto articula-se harmoniosamente com a
ilustração, tal é a importância e a riqueza de pormenores que esta acrescenta à
história.
CARREIRO, José. “A
Maior Flor do Mundo, José Saramago”. Portugal, Folha de Poesia, 13-04-2022.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/04/a-maior-flor-do-mundo-jose-saramago.html
1.
Caracterize as relações entre
Camões e o Paço referidas no poema (vv. 1-3 e 14-16).
2.
Apresente uma leitura possível
para a expressão «ousou seu ser inteiramente» (v. 9).
3.
Explicite o sentido das metáforas
presentes nos versos 12 e 13.
4.
Comente, na sua dimensão
simbólica, este retrato de Camões.
Cenários de respostas
1. A característica principal dessas
relações é a dependência, pois Camões precisa da tença que lhe é paga pelo Paço
para sobreviver, embora ela seja escassa e paga com dificuldade. Associados a
essa dependência estão a humilhação e o desconforto, dado que a tença não é um
reconhecimento do seu talento de poeta, mas uma esmola pela qual o fazem
esperar.
2. A expressão «ousou seu ser
inteiramente» (v. 9) pode, por exemplo, remeter para uma das seguintes
leituras:
– a figura do poeta que cantou a pátria
nos feitos gloriosos das suas viagens marítimas, mas também arriscou viajar
pelo mesmo mundo que essas viagens descobriram;
– a corajosa aventura que constituiu a
vida do poeta, por oposição aos que ficaram «curvados e dobrados» (v. 11),
alimentando «Calúnias desamor inveja ardente» (v. 7);
– a independência total com que o poeta
escreveu, sem patronos nem protetores que lhe assegurassem a subsistência e lhe
condicionassem o discurso.
3. Os versos «Pela paciência cuja mão de
cinza / Tinha apagado os olhos no seu rosto» (vv. 12-13) contêm uma sequência
de duas metáforas: a primeira é «mão de cinza», significando a indiferença ou o
entristecimento a que essa paciência acaba por conduzir, e a segunda é «Tinha
apagado os olhos no seu rosto», significando, nomeadamente, a perda da lucidez
e da consciência crítica.
4. Este poema oferece um retrato dos
últimos anos de vida de Camões. Um elemento especialmente importante da sua
dimensão simbólica é formulado por um verso que não só se encontra repetido
como é aquele que termina o poema: «Este país te mata lentamente» (vv. 3 e 16).
Por ele se exprime a ideia de que a devoção, o empenho e o génio do poeta foram
sistematicamente incompreendidos e desprezados por «Calúnias desamor inveja»
(v. 7) dos seus contemporâneos. A condição do homem que é capaz do «canto» (v.
15) mais elevado – mas a quem só pedem «paciência» (v. 15) – é, então, marcada
pela impotência e pela desilusão.
Prova Escrita de Literatura
Portuguesa - 10.º e 11.º Anos de Escolaridade. Prova 734/2.ª Fase (Exame Nacional do Ensino Secundário, Decreto-Lei
n.º 74/2004, de 26 de março).
GAVE, 2011
POEMA PARA LUÍS DE
CAMÕES
A terra basta onde o caminho pára,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
Meu amigo, meu espanto, meu
convívio,
Quem pudera dizer-te estas
grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é
nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho pára,
Na figura do corpo está a escala do
mundo.
Olho cansado as mãos, o meu
trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás
dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da
diferença.
E a ardência das pedras, a dura
combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as
sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta.
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas frontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos
presas,
E o instante dos olhos que se
fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as
estrelas.
Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.
José Saramago, Poemas Possíveis, 1966 e Provavelmente Alegria, 1970
QUE FAREI COM ESTE LIVRO?
Palácio do conde de Vidigueira. D.
Vasco da Gama1, a condessa D. Maria de Ataíde, Luís de Camões,
frei Manuel da Encarnação, aias, moços de câmara.
CONDE DE VIDIGUEIRA
(A quem um criado veio dar um recado em voz baixa)
Trá-lo cá. (Para a condessa.) Vem aí Luís Vaz de Camões saber a resposta à sua carta. (Para os outros.) Não vos retireis, que o negócio é de pouca monta2 e nenhum
segredo...
LUÍS DE CAMÕES
(À entrada)
Senhor conde... (Faz vénia,
depois repete-a na direção da condessa.) Senhora condessa...
CONDE DE VIDIGUEIRA
Entrai, senhor Luís Vaz.
LUÍS DE CAMÕES
Recebi o vosso recado, senhor conde. Vossa Mercê
mandou-me chamar, aqui estou... Posso esperar que tenhais lido a minha carta e
as oitavas que juntei?
CONDE DE VIDIGUEIRA
Li a carta e os mais papéis que vieram com ela.
Dizei por claro o que pretendeis.
LUÍS DE CAMÕES
Senhor conde, a carta pedia a vossa proteção para
as oitavas que por cópia estão em vossas mãos e para as irmãs delas que em
minha casa ficaram. Disse-vos que é uma obra composta sobre os feitos dos
portugueses e a navegação para a Índia, em que esteve vosso avô como
capitão-mor.
CONDE DE VIDIGUEIRA
Decerto não quereis contar-me a história da minha
família. (Risos das aias.)
LUÍS DE CAMÕES
Não poderia ser essa a minha intenção. Vossa Mercê
mandou que por claro me explicasse.
CONDE DE VIDIGUEIRA
Mas não para vos ouvir repetir a carta nem os
versos. Abreviemos.
LUÍS DE CAMÕES
Espero a resposta de Vossa Mercê.
CONDE DE VIDIGUEIRA
Por escrito a receberíeis, mas em atenção à memória
de meu avô e de meu pai, a quem sucedi nesta casa da Vidigueira, mandei-vos
chamar. Pedis proteção na vossa carta. Que proteção é a que esperais?
LUÍS DE CAMÕES
A que for justa para a minha obra e digna da
memória do vosso antepassado.
1 D. Vasco da Gama – terceiro conde de Vidigueira, neto do navegador Vasco da Gama.
2 monta – importância.
Questionário
1. Identifica as personagens referidas na indicação cénica «(Para os outros.)» (linhas 5 e 6).
2. Indica a que se refere Luís de Camões com as expressões «oitavas» (linha
18) e «obra composta sobre os feitos dos portugueses e a navegação para a
Índia» (linhas 19 e 20).
Justifica a tua resposta.
3. Relê as linhas 17 a 20.
Indica a razão pela qual Luís de Camões
dirige ao conde de Vidigueira o pedido de proteção.
4. Na sua quarta fala, o conde de Vidigueira afirma: «Decerto não quereis
contar-me a história da minha família.» (linha 22).
Explica estas palavras do conde,
evidenciando a sua intenção ao proferi-las.
5. Lê o comentário seguinte.
Pela leitura
das falas do conde de Vidigueira, percebe-se que ele não vai conceder a
proteção pedida por Luís de Camões.
Apresenta dois argumentos a favor deste
comentário, considerando as falas do conde ao longo do texto.
Cenários
de respostas
1. Identifica frei Manuel da Encarnação,
aias e moços de câmara.
2. Indica que Luís de Camões se refere a Os
Lusíadas e justifica, afirmando que é uma obra escrita em estrofes de oito
versos, que tem como matéria os feitos dos portugueses e a viagem para a Índia.
3.Indica que
Luís de Camões dirige ao conde de Vidigueira o seu pedido, uma vez que há uma
relação de parentesco entre o conde e Vasco da Gama, personagem da obra para a
qual Camões pede proteção.
4.Explica que o conde quer
mostrar a Luís de Camões que este não pode ter a pretensão de lhe contar a
história da sua própria família e refere que a intenção do conde é menosprezar
Luís de Camões.
5.Argumenta
que as falas do conde de Vidigueira indiciam que ele não vai conceder a
proteção pedida, por um lado, por não considerar o assunto importante – «o
negócio é de pouca monta» (linha 6) – e, por outro, por manifestar impaciência
em falas como «Decerto não quereis contar-me a história da minha família.»
(linha 22) ou «Abreviemos.» (linha 26).
Prova Escrita de Língua
Portuguesa - 3.º Ciclo do Ensino Básico. Prova 22/1.ª Chamada (Exame
Nacional do Ensino Secundário, Decreto-Lei
n.º 6/2001, de 18 de janeiro). GAVE, 2011
Lisboa, Mouraria, casa de Luís de Camões, princípio
de maio de 1570.
Diogo do Couto (Falando de fora) – Luís Vaz mora nesta
casa?
Ana de Sá (Abrindo a porta) – Nesta
mesma. Vós, quem sois?
Diogo do Couto – Diogo do
Couto, amigo e companheiro de vosso filho, para vos servir.
Ana de Sá – Vós sois
Diogo do Couto? Entrai. E não repareis na pobreza da casa, que é de mulher
velha e viúva. E, se não fica mal dizer, só desde há duas semanas mãe outra vez.
Diogo do Couto – Senhora,
de casas pobres falais com homem de muita experiência que não viveu em palácios, ou quando
neles habitou não foi em salas e aposentos principais. Tal como
vosso filho.
Ana de Sá –
Sentai-vos, sentai-vos. Deixai que olhe bem o rosto do amigo do meu Luís.
Diogo do Couto – Outros tem.
Ana de Sá – Mas
nenhum melhor do que vós. (Outro tom) Porém não devo ser injusta para quantos,
com tão grande generosidade, restituíram o filho aos braços de sua mãe ao cabo de dezassete anos. Dezassete
anos que esperei aqui por ele, sem notícias, ou tão poucas, pensando
se estaria morto, se por lá me teria ficado, nessas terras estranhas donde nenhum bem nos veio nunca, e já
não virá.
Diogo do Couto – Não
gostais da Índia?
Ana de Sá – Que é a
Índia?
Diogo do Couto – Senhora,
que pergunta a vossa. Não cuidava eu, quando desembarquei, que alguém me
pusesse em Lisboa questão de tanta dificuldade. Que resposta vos hei de dar?
Ana de Sá – Vós o sabereis.
Diogo do Couto – Sei o
que é a Índia agora. Vem de lá a especiaria, a seda, todas essas riquezas que
chegam ao reino.
Ana de Sá – Da Índia
sabeis certamente muito mais do que isso.
Diogo do Couto – Tendes
razão. A Índia será, ou cuido que já o é, uma doença de Portugal. Queira Deus
que não mortal doença.
Ana de Sá – Senhor
Diogo do Couto, eu não sei ler. Luís Vaz trouxe aí muitos papéis...
Diogo do Couto – Papéis ilustres, que os
conheço.
Ana de Sá – Aí se
senta os dias a corrigir, a ler em voz alta. Muito do que diz não sei entender, é tudo um falar de deuses e
deusas, nomes de terras e mares desconhecidos, prodígios, coisas
nunca vistas, quem, neste bairro da Mouraria, seria capaz de imaginar o mundo assim?
Diogo do Couto – O mundo tem ainda muito mais que ver
e admirar.
Ana de Sá – Há dias
pedi-lhe que me lesse uma passagem mais clara, que pudesse chegar melhor ao meu
entendimento, e ele pôs-se a olhar para mim com um ar muito grave1, e depois de procurar leu-me a fala do velho2
que esteve na partida das naus para a Índia. Estais lembrado?
Diogo do Couto – Como do
meu próprio nome. Ó glória de mandar, ó vã cobiça dessa vaidade a que chamamos fama...3
Ana de Sá – Esses
versos escreveu-os Luís Vaz na Índia, não foi?
Diogo do Couto – Decerto.
Ana de Sá – Então,
quando vós dizeis que a Índia será uma doença de Portugal, estais declarando
doutro modo aquilo que meu filho disse nas oitavas que me leu. É assim que eu entendo.
Diogo do couto – Discreta sois.
Ana de Sá – Zombais
de uma pobre velha ignorante. Tive tempo para pensar no meu filho, nessas
terras e nessas viagens. Dezassete anos a pensar são muitos pensamentos. Outra
vez vos digo obrigada, senhor Diogo do Couto, por mo terdes trazido.
José
Saramago, Que
Farei com Este Livro?, Lisboa, Caminho, 1999, pp. 47-51. (Texto
com supressões)
NOTAS
1 grave – sério. 2 velho – referência ao Velho do Restelo, figura que, em Os Lusíadas, se
dirige aos navegadores no momento da partida da armada de Vasco da Gama para a
Índia. 3 Ó glória de mandar, ó vã cobiça dessa
vaidade a que chamamos fama... –
referência ao início da fala do Velho do Restelo em Os Lusíadas.
QUESTIONÁRIO:
1. Assinala todas
as alíneas que, de acordo com o texto, correspondem
a informações sobre a personagem Luís de Camões.
A – Vivia com a mãe no início de maio de 1570.
B – Fez segredo da sua amizade com Diogo do
Couto.
C – Viveu em espaços humildes durante a sua vida.
D – Regressou à pátria graças às diligências da
mãe.
E – Partilhou
os seus escritos com Diogo do Couto.
2. «só desde
há duas semanas mãe outra vez»
Explicita
o sentido destas palavras de Ana de Sá, tendo em conta as suas afirmações ao
longo da conversa com Diogo do Couto.
3. Diogo do
Couto e Ana de Sá usam diferentes expressões para se referirem à epopeia Os Lusíadas, nomeadamente:
«Papéis ilustres» e «oitavas».
Completa
os espaços em branco para explicitares duas informações sobre Os Lusíadas a partir destas
expressões.
A referência às «oitavas» permite-nos saber que as estrofes
de Os Lusíadas têm (A) ……………………….
Já na expressão «Papéis ilustres», o adjetivo
destaca (B) ………………………. da obra.
4. Ao longo
do texto, surgem ideias contrastantes sobre a Índia.
Explica em que consiste esse contraste.
5. Relê as
linhas desde “Ana de Sá – Então, quando vós dizeis (…) até “Diogo do couto – Discreta sois.”
Assinala a opção que,
de acordo com o texto, completa a frase seguinte.
O comentário
que Ana de Sá faz aos versos de Os Lusíadas permite a
Diogo do Couto concluir que ela é
A – reservada.
B – cautelosa.
C – ingénua.
D – perspicaz.
6. Imagina
que eras o encenador desta peça e que estavas com os atores a ensaiar esta
cena.
Que
conselho darias à atriz que iria desempenhar o papel de Ana de Sá para a
auxiliar a representar a mudança de tom prevista na indicação cénica «Outro tom»?
Justifica a tua opção, tendo em conta o
contexto em que surge a indicação cénica.
CENÁRIO DE RESPOSTAS:
1.A; C; E.
2.Explicita, de forma completa, o sentido das
palavras de Ana de Sá, referindo os três elementos previstos:
– o facto de o filho de Ana
de Sá ter regressado (para junto de si, o que a leva a sentir-se mãe de novo);
– o facto de esta ter tido
poucas ou nenhumas notícias do filho / não saber se o filho estava vivo ou
morto; / o facto de o filho ter estado muito longe;
– o longo período de ausência
do filho.
(Exemplo de resposta completa: Ana
de Sá sente-se mãe outra vez, porque esteve muitos anos sem ter notícias do
filho e agora ele voltou para junto de si.)
3.
(A) oito versos; (B) o valor / a
excecionalidade.
4.Explica, de forma completa, em que consiste o
contraste na caracterização da Índia, explicitando as duas perceções:
– uma perceção positiva da
Índia, enquanto fonte de riquezas;
– uma perceção negativa da
Índia, enquanto local de onde não vem nenhum bem / enquanto símbolo de vaidade
e de cobiça.
(Dois
exemplos de respostas completas:
a No texto, a Índia é fonte de riquezas
que chegam ao reino; no entanto, é também referida como um local de onde não
vem nenhum bem.
a Diogo do Couto refere a Índia como um
local de onde vêm muitas riquezas. No entanto, também refere que esta é uma
doença de Portugal, que poderá até ser mortal.)
5.D
6. Explicita o
conselho a dar à atriz e justifica-o, de forma completa, tendo em conta o
contexto em que surge a indicação cénica. Na resposta, deve referir-se:
– em que
consiste a alteração de tom prevista na indicação cénica;
– uma justificação coerente
com a alteração proposta, que tenha em conta o contexto em que surge a
indicação cénica.
(Dois
exemplos de respostas completas:
a Se estivesse a encenar esta peça, diria
à atriz para usar um tom mais humilde, uma vez que a personagem estava
envergonhada por não valorizar o esforço dos outros amigos de Camões, que
também o ajudaram a regressar.
a Terás de usar um tom forte, pois a personagem
está a reconhecer que seria injusta ao não ter em conta que os outros amigos do
filho foram determinantes para o seu regresso.)
Fonte: Prova Final de Português
- 3.º Ciclo do Ensino Básico. Prova 91 (9.º Ano
de Escolaridade. Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de
julho). IAVE – Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2011
Tipografia de António Gonçalves, outubro de 1571. Luís de
Camões, António Gonçalves, Servente.
LUÍS DE CAMÕES: (Entrando.) Guarde-vos Deus, mestre
António Gonçalves.
ANTÓNIO GONÇALVES: Boa seja a vinda de Vossa Mercê.
LUÍS DE CAMÕES: Já saberei se foi a vinda boa ou má, consoante
as notícias que aí tiverdes para me dar. Tirastes as contas do meu livro?
Podeis-me dizer agora quanto custará a imprimissão1, e as mais
despesas?
ANTÓNIO GONÇALVES: Nenhum outro livreiro de Lisboa vos faria
melhor preço, senhor Luís de Camões.
LUÍS DE CAMÕES: Estais-vos louvando antes do tempo, mestre
Gonçalves. Mau é já isso.
ANTÓNIO GONÇALVES: Tranquilizai-vos. Tenho aqui apontadas
todas as verbas, o papel, a tinta, o meu ganho e de quem me ajuda, enfim,
compor, imprimir, dobrar e coser trezentos volumes, Vossa mercê haverá de pagar
quarenta mil réis.
LUÍS DE CAMÕES: Quarenta mil réis?
ANTÓNIO GONÇALVES: E creia Vossa Mercê que não é exagerado.
LUÍS DE CAMÕES: E vós sabeis se tenho quarenta mil réis?
ANTÓNIO GONÇALVES: Vossa Mercê perdoará. Nem Vossa Mercê mo
disse quando veio aqui perguntar quanto lhe custaria o livro, nem eu fui tão
atrevido que o quisesse averiguar de vós ou de outrem.
LUÍS DE CAMÕES: Perdoai-me antes vós, mestre António
Gonçalves. Todas as coisas neste mundo têm o seu preço. Fico sabendo quanto
vale o vosso trabalho, porém assim não chegarei a saber quanto vale o meu.
ANTÓNIO GONÇALVES: Sabereis, quando tiverdes vendido os
livros. De mais, tendes o privilégio de venda por dez anos, é o que está
escrito no alvará2 de el-rei.
LUÍS DE CAMÕES: Para vender, é preciso ter o quê. E eu, por
enquanto, o que tenho é saber que haverei de pagar quarenta mil réis, se quiser
que tantos anos gastos a compor o meu livro deem seus frutos em obra impressa.
ANTÓNIO GONÇALVES: É este o costume. Não podemos mudar o
mundo. Eu não posso. Vossa Mercê traz-me o livro para imprimir, paga-me a minha
despesa e o meu ganho, e eu imprimo. É como ir comprar sardinhas à Ribeira.
Dinheiro nesta mão, pescado na outra. Figure-se Vossa Mercê que isto não é
negócio de livros, mas que eu sou pescador, fui ao mar e trouxe peixe.
LUÍS DE CAMÕES: Gentil é a comparação. Dizei-me, mestre:
quando fostes ao mar, não vistes por lá um náufrago? Esse era eu.
[…]
LUÍS DE CAMÕES: Dai-me cá esses desgraçados papéis, que a
vontade me está vindo de os lançar ao mar, por onde já andaram. Melhor seria se
lá tivessem ficado, mais quem os escreveu.
ANTÓNIO GONÇALVES: Pecado seria.
LUÍS DE CAMÕES: Descansai. Mais fácil seria lançar-me eu às
águas. Se tal vos vierem dizer que aconteceu, ide ao lugar e encontrareis o meu
livro na praia, debaixo duma pedra, à vossa espera. Quero crer que então vos
não recusaríeis a imprimi-lo.
ANTÓNIO GONÇALVES: Bom desenfado3 é o vosso.
LUÍS DE CAMÕES: Será. Mestre António Gonçalves, cá vos deixo.
Quem sabe se nos voltaremos a ver?
ANTÓNIO GONÇALVES: Quem sabe? (Sai Luís de Camões.)
SERVENTE: Mestre, que queria o senhor Luís de Camões dizer com
aquelas palavras tão graves?
ANTÓNIO GONÇALVES: Talvez nem ele o saiba. Está calado, e trabalha.
José Saramago, Que Farei com Este
Livro?, Lisboa, Caminho,1980 (texto com supressões)
__________
1 imprimissão – ato ou efeito de imprimir.
2 alvará – antigo documento assinado pelo rei sobre
negócios de interesse público ou particular.
3 Desenfado – 1. alívio do enfado; distração; divertimento.
2. serenidade do espírito.
Para responderes a cada item, seleciona a
opção mais adequada ao conteúdo do texto.
1. A segunda intervenção do mestre António Gonçalves revela um
sentimento de
a)
altruísmo.
b)
presunção.
c)
apatia.
d) condescendência.
2. Luís de Camões, na sua intervenção entre as linhas 19 e 21,
pretende introduzir a ideia de que o valor do seu trabalho, quando comparado
com o do mestre António Gonçalves, está numa situação de
a)
igualdade.
b)
superioridade.
c)
indefinição.
d) inferioridade.
3. A palavra «náufrago» (linha 34), no contexto em que
ocorre, é uma
a)
metáfora.
b)
hipérbole.
c)
ironia.
d) comparação.
4. Luís de Camões, na sua penúltima intervenção textual, em
situação de hipotético suicídio, lançando-se às águas,
a)
insinua que jamais deixaria o seu livro ao mestre António Gonçalves, para que
este o imprimisse.
b)
sugere que a sua vida é menos importante do que a sua obra.
c)
explica que a obra e o seu autor são um todo indissociável.
d) faz uma crítica ao país, que, no seu
entender, nunca o reconheceria em vida.
A teatralização de personalidades
exemplares da história literária (...) oscila entre a narrativa biográfica,
mais ou menos fiel, mais ou menos fantasiada, e uma finalidade didáctica que
extrai da luta do artista com o meio social que foi o seu, a matéria-prima para
o ensinamento que se propõe. Na intersecção destas duas linhas se situa,
precisamente, a peça de Saramago, que no entanto evita com superior
inteligência os escolhos inerentes a uma e outra: nem o rigor histórico se
dilui numa ilusória fidelidade arqueológica ou no recurso fácil de
anacronismos, nem a invenção poética abdica dos seus direitos sem deles todavia
nunca abusar, nem a lição que a obra se desprende («a moral da fábula»,
diríamos antes) é posta em regras que, à maneira dum catecismo, o aluno/espectador
deverá decorar...
Luiz Francisco Rebello
Que Farei
com Este Livro?, publicado em 1980, poderá consistir numa homenagem a Camões, já
que é toda a problemática da publicação de Os Lusíadas que
aqui se dramatiza: o desinteresse do rei e da corte, a miserável situação
material do poeta e da sua mãe, as relações com a Inquisição, o negócio do
impressor. No entanto, a força extraordinária que esta peça adquire, no seu
respeito pela situação histórica (política, social e linguística), é a de
justamente pode ultrapassá-la para constituir um libelo contra a situação
desprotegida do escritor, que é de todos os tempos mas porventura mais nossa,
mais atentos que deveríamos ter-nos tronado às relações de produção no meio
cultural, nomeadamente no literário - e essa intenção torna-se mais sensível
através da proeminência que na acção se dá a personagens como as de Diogo Couto
e Damião de Góis, que alargam a simbologia do escritor-poeta à liberdade de pensamento
e de contestação. No entanto, não se pode já falar aqui de corpos colectivos,
como na peça anterior, embora o meio intelectual e o cortesão estejam bem
marcados; trata-se, de preferência, de uma relação entre o indivíduo e o tempo
em que vive, inóspito, opressor, indigno - e da relação deceptiva daqui
decorrente. Aliás, a peste e o nevoeiro (figurando, respectivamente, a
ambiência criada pela Inquisição e a mentalidade confusa do jovem rei D.
Sebastião) são motivos alusivos recorrentes deste argumento negativo, onde só
as ideias dos intelectuais podem ganhar raiz, amparadas pelo amor, por laivos
de espírito de tolerância e pelo sacrifício maior da fidelidade à criação
mediante a perda de tudo o mais. A visão que se dá do poeta sustenta-se em toda
a força evocativa do seu tempo mas não é uma visão histórica, antes uma visão
fabular, porque o destino de Camões inspira ao leitor pena, o de Damião de Góis
admiração - e talvez que só a presença marginal, mas insistente, de Diogo do
Couto reconduza o tempo aos seus próprios limites, porque decide abandonar a
pátria regressando à Índia («Na Índia, não somos mais alegres, é verdade, mas a
terra é outra, não terei mais obrigações para com ela, apenas viver», 122) e
porque enuncia o programa trans-histórico verdadeiramente construtivo («Os
melhores sonhos são os que se fazem com os olhos abertos, não os da cegueira»,
52)."
Maria Alzira Seixo, O Essencial
sobre José Saramago, Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1987, págs.
34-35.
LIGAÇÕES EXTERNAS
Sobre o poema "Camões e a Tença", de Sophia Andresen:
“Camões e a Tença
ou Que farei(s) com este livro?” in Folha
de Poesia, José Carreiro. Portugal, 10-06-2018 (última atualização: 22-09-2022). Disponível em:https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/06/camoes-e-tenca-ou-que-fareis-com-este.html