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terça-feira, 2 de julho de 2013

O CAMPO (Rui Knopfli)


micaia e capim em Moçambique
             

O CAMPO

Saio para o campo. O campo
aqui não é o campo, mas a savana
eriçada de micaias e capim
feio e desigual. Habitantes
do seu mundo, os negros ignoram-me,
empenhados em suas tarefas quotidianas.
Olho para as coisas abandonadas,
latas escuras de ferrugem, lonas
pardas de pneus, ferros
retorcidos sem jeito. Entre isso
o capim espreita, descolorido, espigado
e hirsuto. Nada me sugere a face
aveludada de uma paisagem pastoril,
rosto tranquilo de criança sonhando.
Mas eles estão no seu mundo,
e eu passeio no campo.
           
Rui Knopfli, Reino Submarino, 1962
             
                  
TEXTOS DE APOIO | LEITURA ORIENTADA
                   
I
«Habitantes / do seu mundo, os negros ignoram-me» no «capim / feio e desigual.» «Mas eles estão no seu mundo, /e eu passeio no campo.»
Implicitamente há a oposição entre eles negros vs eu branco e, consequentemente, entre estratos sociais moçambicanos. Este sujeito poético é o branco que se passeia no ambiente dos negros, cujas «tarefas quotidianas» e mesmo «coisas abandonadas, / latas escuras de ferrugem, lonas /pardas de pneus, ferros / retorcidos sem jeito» parecem não fazer parte do seu modus vivendi.
Esta dicotomia carateriza o estado de coisas binário que se vivia na África colonial. Ademais, a corrente que ganhava força na inteligentsia da época era a negretudinista e Knopfli, por força das circunstâncias, por mais que esteja solidário com os injustiçados, só entende falar com substância o seu próprio eu: «Eu não posso assumir dores que não sinto. Eu posso reconhecer uma injustiça social larguíssima ou uma injustiça mais que social, que é a injustiça da situação colonial, que não direi que era criminosa, mas que era anómala ‑ que é uma coisa de que eu me apercebi muito cedo, na adolescência, como é que é possível a existência das colónias, como é que há povos que têm dependências e que governam outros povos ‑ mas eu não posso vir falar do ponto de vista dos injustiçados. Só do meu ponto de vista.» Rui Knopfli. Longe, em sítio nenhum», entrevista e fotografias de Francisco José Viegas para a revista LER. Livros & Leitores nº 34. Primavera 1996, p. 55.)
Rui Knopfli, ao longo da sua obra,  afirma-se enquanto indivíduo culturalmente miscigenado. O seu ajuste identitário faz lembrar o depoimento de uma personagem deMayombe, obra em que se nota a dificuldade que há na construção de uma identidade nacional num país de grande pluralidade étnica, sociopolítica e cultural:
«Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura do café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num Universo de sim e não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta.» (Pepetela,Mayombe, 1971.)
              
Dizia Rui Knopfli em 1972 (entrevista à revista Tempo, aquando da reedição deMangas Verdes com Sal):
«Nós vivemos aqui (em Moçambique) uma realidade extremada entre dois pólos e, no espaço compreendido entre eles cabe um sem número de gradações. Aí, algures em silêncio, habita uma voz que é a da tolerância e do bom senso, que procura olhar em redor sem preconceitos e despida de juízos apriorísticos, que quer reclamar-se da inocência e da objetividade. É a ela que me tenho esforçado por dar corpo, mesmo que o preço e o risco valham; a solidão e o isolamento em que incorre quem se descompromete da coesão das diversas seitas.»
       
José Carreiro, “O CAMPO (Rui Knopfli)” in Folha de Poesia, 2013-07-02, <https://folhadepoesia.blogspot.com/2013/07/o-campo-rui-knopfli.html> 
TEXTOS DE APOIO
II

A distinção entre os dois espaços, uma distinção que começa ao nível da sua nomeação ‑ logo ao nível da concetualização semântico-linguística ‑ «O campo/aqui não é o campo, mas a savana» ­, revela uma diferença porventura irreconciliável entre dois mundos ao nível sociológico e cultural, se não ontológico: «Habitantes/do seu mundo, os negros ignoram-me».
[…] Aqui, especificamente, a relação entre um colonizado que sintomaticamente «ignora» a presença do colonizador, e o «colonizador ‑ ou assim percebido pelo «negro/outro» no poema ‑ que «passeia» intrusivamente no espaço do colonizado. Osdiferentes significantes «campo» e «savana», correspondem a nomeações conflituantes, e descobrem a disputa pela ocupação do «mundo dos negros» por dois agentes culturais e históricos cujos percursos são opostos e não comunicantes entre si.
A ausência de comunicação entre o sujeito poético e o «negro habitante do seu mundo» sugere neste poema, além do mais, estarmos em presença não só duma oposição linguística e sociológica, mas sugere ainda estarmos em presença duma relação de subalternidade e dominação ‑ a dominação pelo mundo com o qual o sujeito poético é identificado no poema, o do colonizador, e subalternidade do mundo daquele que o «ignora», o do colonizado. Sendo o negro «aqui» «habitante do seu mundo», deverá entender-se o ato de «ignorar» pelo negro de quem «passeia» no seu mundo, como o propósito de ser criada uma identificação do sujeito poético ao «intruso» nesse espaço. Implícito é ainda que a identidade racial não negra do sujeito poético é o signo que a priori lhe desmascara o caráter invasor.
[…] No entanto, ao contrastar duas tradições culturais e linguísticas distintas, bem como as distintas formas de as mesmas fazerem entrar uma mesma realidade no seu diverso universo linguístico e cultural, Knopfli resgata a diferença e o direito a ela do sujeito colonial. (in O país dos outros. A poesia de Rui Knopfli, Fátima Monteiro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. Coleção: “Escritores dos países de língua portuguesa”, nº 32, pp. 60-61)
            
III
Knopfli marca ainda uma diferença de mundos, o dos negros que o ignoram e o seu. O mundo do poeta é intermediário. Não pode ser europeu pois toda a sua vivênciase deu em meio àquela terra. Portanto, o campo não pode jamais ser o campo europeu. Porém, ele também não pode aspirar a savana dos negros que o ignoram, pois não saberia como dizê-la. Fazendo isso, o poeta nos diz que a savana está para ele como o campo está para os poetas europeus.
Com tudo isso o poeta corrobora quando diz:
Pessoalmente devo confessar que nunca terei escrito um verso, ainda quando roubo a Camões, ou colho em Shakespeare, em que Moçambique não esteja presente. Se digo Tamisa, ou escrevo Aron, penso Incomati ou Limpopo, rios que emolduram e glorificam a minha infância, a minha formação, inicial e definitiva, desde uma Moamba longínqua onde meu pai sedimentaria uma amizade, sempre reafirmada e nunca traída, com o excepcional patriarca Raul Honwana, ambos, a seu diferente ou oposto modo, funcionários da administração colonial. A partir de qualquer fonte determinante e original, da Moamba, por exemplo – e porque não? –, o criador é sempre o resultado da sua inteligência, sensibilidade e cultura, irremediavelmente agravadas pelo seu circunstancialismo, e tanto pode produzir um Luís Bernardo como... um Rui Knopfli, até porque nem no lugar e na época os circunstancialismos coincidiam. Por mim não pude escapar ao meu, como se verifica pelo juízo da crítica portuguesa que, mesmo quando me estima e acarinha, não sabe onde inserir-me ou arquivar, e a moçambicana, hesitando perplexa entre a pura rejeição e a parcial, quase envergonhada ou marginal aceitação.
Por tal motivo me espanta que se ressuscite, ainda hoje, a querela gratuita da nacionalidade literária que, de facto, não existe. Na verdade aquela é uma evidência e não um decreto, não surge de imposições externas, mas das coordenadas especiais que nos conjuraram ao discurso criador no espaço que nos foi consignado. ("Carta para Moçambique / O denominador comum", Rui Knopfli. In: Revista Colóquio/Letras. Cartas, n.º 110/111, Jul. 1989, p. 20)
                  
Neste trecho de sua comunicação, Knopfli busca outra comparação. Agora, isso se dá com o escritor Luis Bernardo Honwana. O contexto no qual estava o poeta inserido não o impedia de viver as coisas de África. Assim como não impediam Luis Bernardo. A diferença está nos aspetos que levaram Knopfli a levar mais em conta sua subjetividade, isto é, seu contato com as culturas e literaturas que tinham como centro o sujeito mais que a comunidade, como é de praxe nas culturas ocidentais. Assim, o circunstancialismo ao qual Knopfli se refere é justamente esse contato com culturas diferentes durante a sua formação que o levaram para caminhos diferentes, e fica ainda a dúvida do próprio poeta se seriam “opostos”, ainda que partilhassem um território e uma época. No mesmo período de tempo e compartilhando o mesmo espaço geográfico, Knopfli e Honwana vivenciaram experiências diferentes, sejam elas culturais ou não, que deixaram “cicatrizes” que os fizeram imprimir “tripas” aos seus escritos. Passadas, por tanto, pelo filtro da experiência, suas obras não poderiam ser senão diferentes.
Mesmo em um contexto em que a subjetividade toma conta desses espaços de enunciação em poesia, Knopfli também tem dificuldade para se enquadrar. Parar provar esse argumento, o poeta utiliza a crítica literária portuguesa, que também não encontra, senão às margens, um local onde inserir a literatura produzida por ele. Nos espaços de onde julgava-se vir o discurso de Knopfli, ele também não poderia ser completamente aceite. Esses problemas eram tanto de ordem nacionalista, isto é, Knopfli é moçambicano, portanto não podia ser aceito totalmente por Portugal, como orbitavam o aspeto ideológico, sabendo que Knopfli desde seu primeiro livro afirmava-se africano. A solução encontrada pelo poeta para resolver esse sobre nacionalismo foi o de assumir como facto de que nasceu em Moçambique e sua literatura não poderia, portanto, pertencer a outro lugar, a despeito de sua qualidade ou conteúdo. Assim também o faz quando cita a literatura de colonos produzida em território moçambicano. Cita exemplos de colonos que denunciavam os abusos de colonizadores e também de colonos que escreviam buscando animalizar os “nativos”. A ambos ele confere o mesmo estatuto. Ambos pertencem à História de Moçambique e é preciso lê-los para saber de onde vêm os moçambicanos e, conhecendo o seu passado, decidir para onde vão. Criando portanto uma tradição com a produção literária e histórica que se deu ali.
Diante dessas afirmações de Knopfli, subjaz um sentimento de pertença àquele país. Mas um sentimento que se despe de correntes ideológicas, como desvelou a rosa durante a sua obra. Assim, aquele espaço toma conta de seus versos não como pátria, não como nação, mas como espaço. Ainda, ao falar em “denominador comum”, Knopfli reafirma a sua pertença a uma tradição maior que a moçambicana, mas também não isento dela. Defendendo a língua como Pátria, ele escapa às querelas que só o conduziriam a um discurso que lhe seria externo, tendo sido o poeta também forjado pelos elementos que já citamos.
Tendo em vista estes aspetos, podemos entender melhor a visão do próprio poeta quanto ao seu espaço, quanto a sua “classificação”. É possível vislumbrar a ideia que Knopfli fazia de seu lugar de enunciação. Assim, negando em seus versos o nacionalismo, ele não nega sua nacionalidade. Entrega-se a algo que, em sua visão, excede, extrapola esse conceito. Dizer-se africano é uma forma de resistir a essa ideologia que tomava conta de Moçambique, mas, ao mesmo tempo, mostrar a sua ligação com aquela terra. (A poética da sinceridade de Rui Knopflitese de mestrado de Gabriel Madeira Fernandes, São Paulo, USP - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2012, pp. 45-48)
                   

PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:

  Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Rui Knopfli, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Lit-Afric-de-Ling-Port/Lit-Mocambicana/Knopfli, 2020 (3.ª edição).

           

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/02/o.campo.knopfli.aspx]

segunda-feira, 1 de julho de 2013

HIDROGRAFIA (Rui Knopfli)


Rio Zambeze

                
HIDROGRAFIA

São belos os nomes dos riosna velha Europa.
Sena, Danúbio, Reno são
palavras cheias de suaves inflexões,
lembrando em tardes de oiro fino,
frutos e folhas caindo, a tristeza
outoniça dos chorões.
O Guadalquivir carrega em si espadas
de rendilhada prata,
como o Genil ao sol-poente,
o sangue de Frederico.
E quantas histórias de terror
contam as escuras águas do Reno?
Quantas sagas de epopeia
não arrasta consigo a corrente
do Dniepre.
Quantos sonhos destroçados
navegam em detritos
à superfície do Sena?
Belos como os rios são
os nomes dos rios na velha Europa.
Desvendada, sua beleza flui
sem mistérios.
Todo o mistério reside nos rios
da minha terra.
Toda a beleza secreta e virgem que resta
está nos rios da minha terra.
Toda a poesia oculta é a dos rios
da minha terra.
Os que, cansados, sabem todas
as histórias do Sena
e do Guadalquivir, do Reno
e do Volga
ignoram a poesia corográfica
dos rios da minha terra.
Vinde acordar
as grossas veias da água grande!
Vinde aprender
os nomes de Uanéteze, Mazimechopes,
Massintonto e Sábiè.
Vinde escutar a música latejante
das ignoradas veias que mergulham
no vasto, coleante corpo do Incomáti,
o nome melodioso dos rios
da minha terra,
a estranha beleza das suas histórias
e da suas gentes altivas sofrendo
e lutando nas margens do pão e da fome.
Vinde ouvir,
entender o ritmo gigante do Zambeze,
colosso sonolento da planura,
traiçoeiro no bote como o jacaré,
acordando da profundeza epidérmica do sono
para galgar os matos
como cem mil búfalos estrondeantes
de verde espuma demoníaca
espalhando o imenso rosto líquido da morte.
Vede as margens barrentas, carnudas
do Púngoè, a tristeza doce do Umbelúzi,
à hora de anoitecer. Ouvi então o Lúrio,
cujo nome evoca o lírio europeu,
e que é lírico em seu manso murmúrio.
Ou o Rovuma acordando exóticas
lembranças de velhos, coloniais
navios de roda revolvendo águas pardacentas,
rolando memórias islâmicas de tráfico e escravatura.
Ah, ouvidos e olhos cansados de desolação
e de europas sem mistério,
provai a incógnita saborosa
deste fruto verde,
destes espaços frondosos ou abertos,
destes rios diferentes de nomes diferentes,
rios antigos de África nova,
correndo em seu ventre ubérrimo
e luxuriante.
Rios, seiva, sangue ebuliente,
veias, artérias vivificadas
dessa virgem morena e impaciente,
minha terra, nossa Mãe!
            
Rui Knopfli, Reino Submarino, 1962
             

TEXTOS DE APOIO
I
Em «Hidrografia»Knopfli, lá do fundo da cidadezinha africana, aonde lhe chegam as glórias culturais dos Senas e dos Danúbios da velha Europa, descobre Moçambiquena sonorosa majestade dos seus rios, cujos nomes magnificentes têm a força de um génesis e a sensualidade do canto das origens. Para o poeta, que visita Joanesburgo como o seu Paris de ao pé da porta, esta súbita consciência do vínculo do homem ao solo, a serena aceitação da africanidade, constitui também um repúdio consciente de todo e qualquer provincianismo cultural. «Hidrografia» e outros poemas, onde se eleva uma nota idêntica, qual é aquele em que Knopfli diz preferir as micaias às rosas, merece-lhe sem dúvida o título de poeta moçambicano. (Luís de Sousa Rebelo, Prefácio aMemória Consentida. 20 anos de poesia 1959/1979, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982, Coleção "Biblioteca de autores portugueses".)
                
II
Com esse poema, Knopfli revela todo um espaço ainda por descobrir em solo africano. Mostra conhecimento sobre os espaços metropolitanos europeus e convida a (re)descobrir ou a (re)escrever as estórias desses rios, que podemos tomar metonimicamente como todo o continente africano.
O outro fator extremamente importante é o interlocutor deste poema. Afinal, a quem ele se dirige? Quem o poeta convida para conhecer os rios de sua terra? Ora, quem poderia ser senão aqueles que só conhecem os rios da Europa? Isso inclui tanto europeus quanto qualquer ocidental que tenha estudado a História da Europa. Esse dado é muito importante, pois vincula duas tradições, duas culturas em um mesmo poema, e é essa justamente a sua posição. O seu local de enunciação é quase sempre levado por essa perspetiva. Digo quase sempre pois nem sempre seus poemas conseguem sintetizar dessa forma essa aparente contradição, mas que na verdade não passa de uma tentativa de juntar essas tradições em versos.
Sobre esses aspetos Francisco Noa (1997), enquadrando Knopfli na modernidade da literatura moçambicana, diz:
A poesia de Knopfli, no que ela apresenta de conflitual, ambíguo, inovador, contraditório, aglutinador, sedicioso, autocrítico e antecipatório, assume-se inequivocamente como metáfora da modernidade literária em Moçambique. [...] Nas suas múltiplas e diversificadas vertentes, Knopfli terá africanizado essa modernidade [europeia], subvertendo-a, dilatando-a, reequacionando-a em função de especificidades temáticas e estruturais da sua escrita. O alargamento conceptual e espacial da modernidade revela que, no fundo, é ela própria uma busca de sentido. (Francisco Noa, Literatura moçambicana: memória e conflito, Maputo, Universidade Eduardo Mondlane, 1997, p. 118)
Não contente com isso, ao final, o poeta elucida um sujeito singular (“minha terra”) e um coletivo (“nossa mãe”), o que pode inseri-lo tanto como fruto de uma mãe africana, um filho de África, como também permite uma leitura mais abrangente. Levando em conta a quem se dirige o poema (aos metropolitanos europeus), busca uma identificação de pertença comum, ou seja, a África como mãe também desses sujeitos do espaço colonizador, promovendo mais ainda a união das culturas, sugerindo a mesma origem.
A identificação com o continente africano vem estampada nas referências a “batalhas”, “morte”, “detritos”, “terror”, “sonhos destroçados” associados aos rios europeus em oposição à “beleza secreta e virgem”, ao “fruto verde”, ao “ventre”, à “seiva”, ao “sangue ebuliente”, às “artérias vivificadas”, que seriam características dos rios africanos, repletos, portanto, de vida. Nos momentos em que imagens de teor negativo aparecem associadas aos rios africanos, elas apenas salientam, por oposição, a resistência e a vida ali presente, como o rio gigante que acorda para “galgar os matos/ como cem mil búfalos estrondeantes/ de verde espuma demoníaca/ espalhando o imenso rosto líquido da morte”. (A poética da sinceridade de Rui Knopfli, tese de mestrado de Gabriel Madeira Fernandes, São Paulo, USP - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2012, pp. 35-36)
              
                
LINHAS DE LEITURA
José Carreiro
            
·         Note-se a metáfora do declínio europeu presente nas imagens “frutos e folhas caindo” e “tristeza outoniça dos chorões”.
·         O sujeito da escrita demarca-se do empreendimento colonial ao desconstruir o discurso europeu de (auto)glorificação épica, como está implícito no uso do campo lexical da violência (cf. vv. 8 a 19 – espadas, o sangue de Frederico, terror, escuras águas, sagas de epopeia, sonhos destroçados).
·         O poema, publicado antes da independência de Moçambique, insere-se na linha de escrita ufanista e de intenção nacionalista herdada de Gonçalves Dias ao exaltar a natureza de sua terra (um espaço ainda em estado de latência, uma natureza intocada, representada no poema por substantivos como mistério ebeleza e pelos adjetivos secretovirgem e exóticos, e cuja única contaminação é a fome e a lembrança deixada pelos navios coloniais).
·         A divisão do poema em duas partes é resultante do paralelismo antitético entre os ícones hidrográficos europeus e os africanos – enquanto na épica europeia o heroísmo está nos feitos humanos, na épica africana o mesmo é atribuído ao animismo da natureza hidrográfica.
·         O poeta convida o interlocutor (que supomos europeu e ocidental) a conhecer e sentir os rios africanos (Vinde, Vede, Ouvi, provai).
·         No último verso o poeta transita de um sujeito singular (minha terra) para um sujeito coletivo (nossa Mãe), abrangente ao próprio interlocutor.
·         Ao mesmo tempo em que o poeta reconstrói uma imagem do mundo, constrói uma imagem do próprio eu, evidenciando o seu ponto de vista particular (Fátima Monteiro sugere, por isso, que, «reconhecendo a sua condição de sujeito histórico delicada*, Knopfli procura enunciar a sua identidade e reclamação do direito de representação espacial duma forma cultural e, em especial, racialmente dissociada do sujeito colonial negro-africano.»)
______________
* «Um sujeito que, sendo anticolonial solidário a Caliban, e pós-colonial naautorrepresentação de si, se sabe no entanto racial e culturalmente descendente de Próspero.» (in O país dos outros. A poesia de Rui Knopfli, Fátima Monteiro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. Coleção: “Escritores dos países de língua portuguesa”, nº 32, p. 58.)
               

PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:

Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Rui Knopfli, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Lit-Afric-de-Ling-Port/Lit-Mocambicana/Knopfli, 2020 (3.ª edição).

   
 
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/01/hidrografia.aspx]

quinta-feira, 27 de junho de 2013

TUDO EM MIM É PRESENÇA TUA (Rui Knopfli)


  
Ilha de Moçambique


               
ENCONTRO

Visito esse lugar.
Procuro-te nesse recanto habitual.
Sei que não estarás lá,
mas finjo ignorá-lo,
procuro pensar que saíste,
que saíste há pouco,
numa ausência breve,
como se tivesses saído
para logo regressares.
Quando chegasses, se tu chegasses,
dir-te-ia: Tu lembras-te?
E o verbo acordaria ecos,
nostalgias distantes,
velhos mitos privados.
Sei que não virás,
conjecturo até, por vezes,
teus distantes, inúteis
diálogos numa praça gris
que imagino em tarde de invernia.
Então disfarço, ponho-me
a inventar, por exemplo,
uma longilínea praia deserta,
uma fina, fria, nebulosa
praia
muito silenciosa e deserta.
Pensando nela fito de novo
este lugar e digo para mim
que apenas partiste
por um breve instante.
E sigo. E de novo protelo
este encontro impossível.
Rui Knopfli, Reino Submarino, 1962

            
"Encontro" ‑ O sujeito poético procura o ente amado num lugar que lhe traz memórias antigas e onde sabe que o não encontrará. Apesar disso, procura paradoxalmente iludir-se conscientemente.
           





             
MONÓLOGO

Adivinho teu corpo dentro
da noite. Soltos os cabelos
cor de areia fina, delidos
os contornos no linho do lençol.
Dormes tranquilamente. Tudo em
mim é presença tua. E, enquanto
dormes, algo de mim habita
e persiste em ti. Tu dormes
e eu espreito teu sono. Algo
de fluido nos liga e envolve.
Vejo-te lucilar na noite,
teus longos inteiriçados membros
fremindo. Momento breve que perdura.
Depois acordas cinzenta,
banhada em pranto,
oferecendo o perfil suave
ao beijo morno de um céu
onde a aurora se demora.
Rui Knopfli, Reino Submarino, 1962

            
"Monólogo” ‑ O eu poético observa o sono da amada e o seu acordar, descrevendo-a e apresentando a sua íntima ligação.
            

QUESTIONÁRIO SOBRE OS POEMAS
1. Estes poemas de Rui Knopfli apresentam sentimentos muito diversos.
1.1. Identifica-os e justifica as tuas opções.
2. Atenta no poema "Encontro".
2.1. Procura estabelecer uma divisão na sua estrutura interna, tendo em conta a evolução interior do sujeito poético [presente/passado/futuro].
2.2. Pode observar-se no texto uma dicotomia de pensamento. Identifica-a e transcreve expressões que a comprovem.
2.3. Atenta nos versos seguintes:
Quando chegasses, se tu chegasses,
dir-te-ia: Tu lembras-te?
E o verbo acordaria ecos,
nostalgias distantes,
velhos mitos privados.
2.3.1. Classifica as formas verbais sublinhadas e identifica o valor dos modos utilizados.
3. Centra-te, agora, no poema "Monólogo".
3.1. Faz o levantamento de palavras ou expressões que transmitam sensações.
3.2. Identifica o recurso estilístico presente na expressão "cor de areia fina" (v. 3) e refere o seu valor expressivo.
3.3. Explica os últimos cinco versos do texto.
(in Expressões. Português 10º ano, Pedro Silva et alii, Porto Editora, 2010)
             
           
           
TEXTO DE APOIO
análise literária do poema «Encontro»
            
O poema [«Encontro»] retorna ao tema de «Despedida», embora Knopfli o intitule «Encontro», lidando, como «Despedida», com um encontro imaginado e prospetivo, que serve de pretexto ao sujeito para efetuar uma viagem de retorno aos meandros da memória em busca dum objeto familiar de cuja companhia se deseja de novo desfrutar. É um poema onde o sujeito efetua consigo próprio um jogo de faz-de-conta semelhante ao que encontramos em «Baldio», jogo que aqui tem por propósito, como por seu turno em «Despedida» e depois em «Baldio», adiar a perda através do «fingimento poético». Confrontado com aquela, a reconstituição do passado pelo «fingimento» torna-se com frequência para o sujeito poético knopfliano único paliativo: «Visito esse lugar./Procuro-te nesse recanto habitual./Sei que não estarás lá,/mas finjo ignorá-lo.» Como acontece ainda em «Despedida», Knopfli recorre aqui igualmente a imagens associáveis ao espaço geográfico-climático europeu («conjeturo até, por vezes,/ teus distantes, inúteis/ diálogos numa praça gris/ que imagino em tarde de invernia») para denotar o sentimento de nostalgia, perda, morte, desenlace e tristeza, e situa nele um sujeito que se envolve, por meio da memória prospetiva, com um sujeito interlocutor não nomeado.
A ausência de nomeação não é um acaso. Lidando ambos os poemas com o toposda separação e perda, há por um lado o «pudor» da parte do sujeito em se descobrir por completo, através da nomeação, na sua nudez emotiva, e há por outro o carácter prospetivo, logo incógnito dessa separação imaginada que se propõe manter no poema. Considerando que o sujeito se dirige neste diálogo invernil imaginado a um ente personificado, não necessariamente humano, constatamos que Knopfli escreve mais uma vez uma elegia à morte antecipada duma relação. Nesse sentido o poema não é um encontro, mas sim uma outra fuga para o reino do antes, conhecido e ideal. Mais do que um encontro, é um reencontro imaginado, que corresponde a um retorno: «Então disfarço, ponho-me / a inventar, por exemplo,/ uma longilínea praia deserta,/ uma fina, fria nebulosa/ praia/ muito silenciosa e deserta./ Pensando nela fito de novo/ este lugar e digo para mim/ que apenas partiste/por um breve instante.»
Embora se situe na mesma linha lírica-elegíaca de «Despedida», «Encontro» é porventura revelador dum sentimento de perda ainda mais profundo do que o sentido naquele, ao constituir-se num exercício prospetivo lucidamente assumido como tal. Aqui temos um sujeito poético que resiste contra a irreversibilidade cronológica através da criação d um cenário futuro de separação em relação ao qual, apesar de se reconhecer ilusório, se permanece ligado como modo de obviar ou protelar a «intolerável separação». Há neste poema, assim, como que um adiamento levado ao ponto extremo do inadiável, como o reconhece o próprio sujeito: «[...] fito de novo/ este lugar e digo para mim/ que partiste/ por um instante./ E sigo. E de novo protelo/ este encontro impossível.»
Formalmente o poema é construído na base da repetição de certos pensamentos-chave aos quais o sujeito retorna ciclicamente no seu processo introspetivo de «evocação da ilusão», como se o mesmo sujeito necessitasse, apesar dum «self-serving suspension of disbelief, de se lembrar a si mesmo, masoquista mente, dessa suspensão. A repetição dos pensamentos-chave surge na forma de versos colocados de modo a demarcar no poema as suas diferentes partes: «Sei que não estarás lá,/ mas finjo ignorá-lo» e «Sei que não virás.» Ainda, para reforçar lucidamente a condição inverosímil da fantasia, o poeta introduz, prosodicamente, o uso do conjuntivo: «Quando chegasses, se tu chegasses,/ dir-te-ia: Tu lembras-te?» Dum presente inicialmente inscrito no poema como se de realidade se tratasse, revela-se na segunda parte o carácter imaginário do referente da evocação poética. O poema consiste em mais um dos malabarismos verbais e de manipulação temporal de Knopfli, onde com destreza são revelados os estados mentais alternativos dum sujeito poético. Apesar da lucidez e contenção emotiva, descobre-se nele mais uma vez o mundo doloroso e trágico da perda e separação irremediáveis. | Fátima Monteiro, O país dos outros. A poesia de Rui Knopfli. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. Coleção: “Escritores dos países de língua portuguesa”, nº 32, pp. 71-73.
              

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Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Rui Knopfli, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Lit-Afric-de-Ling-Port/Lit-Mocambicana/Knopfli, 2020 (3.ª edição).

 


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/06/27/ruiknopfli.aspx]