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quarta-feira, 17 de agosto de 2022

François Villon, criminoso e poeta

     François Villon (1431?-1463), poeta francês do final da Idade Média, também boémio e ladrão, é precursor dos “poetas malditos” do Romantismo.



 

BALLADE

DES MENUS PROPOS.

 

Je congnois bien mouches en laict ;

Je congnois à la robe l’homme ;

Je congnois le beau temps du laid ;

Je congnois au pommier la pomme ;

Je congnois l’arbre à veoir la gomme ;

 

Je congnois quand tout est de mesme ;

Je congnois qui besongne ou chomme ;

Je congnois tout, fors que moy-mesme.

 

Je congnois pourpoinct au collet ;

Je congnois le moyne à la gonne ;

Je congnois le maistre au valet ;

Je congnois au voyle la nonne ;

Je congnois quand piqueur jargonne ;

Je congnois folz nourriz de cresme ;

Je congnois le vin à la tonne ;

Je congnois tout, fors que moy-mesme.

 

Je congnois cheval du mulet ;

Je congnois leur charge et leur somme ;

Je congnois Bietrix et Bellet ;

Je congnois gect qui nombre et somme ;

Je congnois vision en somme ;

Je congnois la faulte des Boesmes ;

Je congnois filz, varlet et homme ;

Je congnois tout, fors que moy-mesme.

 

ENVOI.

 

Prince, je congnois tout en somme ;

Je congnois coulorez et blesmes ;

Je congnois mort qui nous consomme ;

Je congnois tout, fors que moy-mesme.

 

Œuvres complètes de François Villon, Texte établi par éd. préparée par La Monnoye, mise à jour, avec notes et glossaire par M. Pierre Jannet, A. Lemerre éd., 1876 (p. 117-118) <https://fr.wikisource.org/wiki/Ballade_des_Menus_Propos>




[traduções]


 

BALADA DAS COISAS SEM IMPORTÂNCIA

 

Conheço a mosca em leite branco,

Conheço o homem pela veste,

Conheço o tempo mau e o brando,

Conheço o ramo e o cipreste,

Conheço a fruta onde se colga,

Conheço quando tudo é o mesmo,

Conheço quem trabalha ou folga,

Conheço bem, fora a mim mesmo.

 

Conheço o gibão no colete,

Conheço no hábito o monge,

Conheço o patrão no valete,

Conheço pelos véus a monja,

Conheço o engano e a lisonja,

Conheço o louco solto a esmo,

Conheço o vinho bom de longe,

Conheço bem, fora a mim mesmo.

 

Conheço o jegue e o ginete,

Conheço a carga que os assoma,

Conheço Bia e Elizabete,

Conheço a ficha que faz soma,

Conheço a visão e o sonho,

Conheço os hereges Boêmios,

Conheço os poderes de Roma,

Conheço bem, fora a mim mesmo.

 

Príncipe, bem conheço, em suma:

Conheço os bons e os enfermos,

Conheço a morte e o que se esfuma,

Conheço bem, fora a mim mesmo.

 

Villon, François. Poesia, trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: EdUSP, 2000, p. 316-9

 

 

 

BALADA DAS COISAS SEM IMPORTÂNCIA

 

Conheço se há moscas no leite,

Conheço pela roupa o homem,

Conheço o tédio e o deleite,

Conheço a fartura e a fome,

Conheço a mulher pelo enfeite,

Conheço o princípio e o fim,

Conheço pela chama o azeite,

Conheço tudo, menos a mim.

 

Conheço o gibão pela gola,

Conheço o rico pelo anel,

Conheço o fiel pela sacola,

Conheço a monja pelo véu,

Conheço o porco pela tripa,

Conheço o irmão pelo latim,

Conheço o vinho pela pipa,

Conheço tudo, menos a mim.

 

Conheço a mula e o cavalo,

Conheço o carro e a carreta,

Conheço a galinha e o galo,

Conheço o sino e a sineta,

Conheço a flor pelo talo

Conheço Abel e Caim,

Conheço o pote e o gargalo,

Conheço tudo, menos a mim.

 

Ofertório

 

Príncipe, conheço tudo em suma,

Conheço o branco e o carmim,

E a morte que o fim consuma.

Conheço tudo, menos a mim.

 

Tradução de Reynaldo Ferreira, http://www.arteculturanews.com/poesia51.htm, 20/6/2005

 

 

BALADA DAS COISAS DESIMPORTANTES

 

Conheço bem moscas no leite;

Conheço o homem pela roupa;

Conheço o bom tempo e o mau;

Conheço a maçã pela macieira;

Conheço a árvore ao ver a goma;

Conheço quando tudo é assim mesmo;

Conheço quem trabalha ou folga;

Conheço tudo, menos a mim mesmo.

 

Conheço o gibão pelo colarinho;

Conheço o monge pelo hábito;

Conheço o mestre pelo criado;

Conheço pelo véu a freira;

Conheço quando trapaceiro deita fala;

Conheço loucos nutridos de cremes;

Conheço o vinho pelo tonel;

Conheço tudo, menos a mim mesmo.

 

Conheço cavalo e mulo,

Conheço seu encargo e sua carga;

Conheço Beatriz e Belinha;

Conheço ficha que conta e soma;

Conheço a vigília e o sono;

Conheço a falta dos Boêmios;

Conheço o poder de Roma.

Conheço tudo, menos a mim mesmo.

 

Príncipe, eu conheço tudo, em suma.

Conheço corados e pálidos;

Conheço a morte, que nos consome;

Conheço tudo, menos a mim mesmo.

 

wilson a. ribeiro jr., https://warj.med.br/memo/villon.asp, 30.09.2021

 

François Villon (Grand Testament de Maistre François Villon, 1489)


 

FRANÇOIS VILLON, CRIMINOSO E POETA

Falámos na semana passada, de um príncipe francês e de um nobre de Espanha: Charles d'Orléans e o Marquês de Santillana. Hoje iremos falar de um pobre plebeu de Paris, de quem os azares da existência e as vicissitudes de um temperamento irrequieto fizeram um vagabundo e até um criminoso de direito comum. Mas na balança dos valores poéticos este plebeu pesa sem dúvida muito mais que esses dois nobres, ainda seus contemporâneos; e no tribunal da crítica de poesia este criminoso ver-se-á inteiramente ilibado de culpas. Com efeito, a sua obra (e apenas a sua obra é que temos ele julgar) não apresenta nenhum daqueles pequenos delitos - ele maneirismo, de preciosismo, de artificialidade - que mancham um pouco, aqui e ali, as obras ele Charles d'Orléans e do Marquês ele Santillana. Por outro lado, há em toda essa obra um tal vigor e um tal sabor de genuína raiz popular que a sentimos incomparavelmente mais perto de nós. Enfim, por outras palavras (e isto não tem absolutamente nada a ver com a condição social destes três poetas do século xv), tanto Charles d'Orléans como o Marquês de Santillana, ambos poetas ele primeira categoria, tinham, indubitavelmente, muitíssimo talento; mas François Villon, além do talento - também tinha génio. E não falta mesmo quem o considere o vulto mais genial de toda a poesia francesa.

Essa genialidade manifesta-se logo no domínio da expressão: François Villon possuía, por instinto, o dom da palavra exata, da construção certeira, da imagem que acerta no alvo - e logo nos faz estremecer da cabeça aos pés, porque o alvo é afinal o nosso próprio coração. Um poeta alemão do século xx - Gottfried Benn - escreveu um dia o seguinte a este respeito: "A relação que se tem com a palavra é primária, não pode aprender-se. Pode-se aprender o equilibrismo, a corda bamba, os jogos do trapézio, a marcha em cima dos pregos, mas colocar a palavra para que ela exerça a sua fascinação, isso, ou se sabe fazer ou não se sabe." Ora isto mesmo sabia-o François Villon, e no mais alto grau. Mas saber isto mesmo no mais alto grau também apresenta os seus inconvenientes: os poetas que assim o sabem são praticamente intraduzíveis. E devo confessar, desde já, que, sob este aspeto, poucos poetas até agora me deram tantas dores de cabeça como François Villon. Deixaremos, contudo, este ponto para mais tarde.

De momento, ou eu me engano muito ou há por aí algumas pessoas que estarão interessadas em saber como é que François Villon se tornou um vagabundo e quais os crimes de que veio a ser acusado. A curiosidade acerca deste género de coisas continua ainda a ser muito forte em muita gente. Pois bem: vamos lá a um sucinto relato biográfico.

François Villon - cujo verdadeiro nome era François de Montcorbier (e também conhecido por François des Loges) - nasceu em Paris, provavelmente em 19 de abril de 1432. Paris teria então o aspeto que se vislumbra na zona de fundo deste quadro, com as duas torres da abadia de Saint-Germain-des-Prés ali à esquerda, o vulto do Louvre (do Louvre de então) mesmo no meio e, lá para cima, a Butte Montmartre, o outeiro de Montmartre ... Aqui temos agora, vista também da Rive Gauche, outra perspectiva do Louvre; tratemos de não prestar atenção à figura da direita, em grande plano, e atentemos, sobretudo, naqueles três figurantes, do lado direito, indolentemente encostados ao parapeito sobre o Sena... Serão porventura contemporâneos de François Villon e algum deles, porventura, também estudante como ele foi; e quem sabe também se mais assíduo frequentador, como o próprio Villon, de lugares como estes - a que se chamavam “casas de banhos”, mas eram antes “tabernas” de características muito especiais - do que propriamente das aulas da Universidade... Seja como for, e não obstante os atrativos ele outra ordem que a vida estudantil apresentaria, Villon acaba por licenciar-se pela Faculdade das Artes. Mas, poucos anos depois, as más companhias - tanto masculinas como femininas - arrastam-no para situações altamente comprometedoras. Apesar de tudo, as companhias femininas ainda serão as menos graves - e Villon, mais tarde, certamente se recordará de todas elas, numa saborosa “Balada das Damas de Paris”, em que celebra (já no século xv!), sobre todas as demais mulheres, a tagarelice, o poder de argumentação, a lábia, em suma, elas parisienses:

 

Se bem que sejam bem-falantes

venezianas, florentinas;

se bem que a nós digam bastante

ainda outras mais antigas;

e que as de Roma ou Lombardia

falem que nem um chafariz

(mais as de Génova ou de Pisa)

- finas de boca, só em Paris!

 

Falam de papo geralmente

- ao que se diz - napolitanas;

e são também eloquentes

as alemãs e as prussianas.

Mas sejam gregas ou troianas

ou de qualquer outro país,

húngaras mesmo ou castelhanas

- finas de boca, só em Paris!

 

Sejam bretãs, sejam suíças,

ou de Tolosa, ou da Gasconha,

ao pé de duas parisinas

perdem o pio mais a ronha.

De inglesas digo a mesma cousa.

(Faltou citar algum país?)

Em parte alguma isto se encontra:

- finas de boca, só em Paris!

 

Príncipe, dá a estas damas

justo valor, como um juiz.

Por mais que as outras tenham fama

- finas de boca, só em Paris!

 

Desde já previno os interessados que aquilo que acabaram de ouvir foi mais uma “adaptação” que propriamente uma "tradução": por maior cuidado que se ponha nesta tarefa, o tal poder de François Villon para colocar a palavra no lugar exacto “para que ela exerça a sua fascinação” torna praticamente intraduzíveis quase todas as suas poesias. A esta dificuldade acrescente-se ainda o emprego constante do "calão" - reflexo dos “meios” boémios frequentados por Villon - e ter-se-á uma ideia de quanto são espinhosas ele obter as necessárias correspondências. Darei só um exemplo: no refrão, quando Villon diz “Il n 'est bon bec que de Paris" - o que daria, quase à letra, "Não há línguas afiadas como as de Paris" - , vi-me obrigado a traduzir, até por exigências ele ritmo, "Lábia a valer, só em Paris!". E fui forçado também a omitir referências a outras não-parisienses, tais como: piemontesas, egípcias, lorenas, picardas... Mas creio que se conservou o sentido geral da poesia.

Posto isto, voltemos ao "romance" da vida de Villon. Com efeito, é de um autêntico "romance" que se trata. Envolvido no assassínio de um padre e no assalto ao cofre do Colégio de Navarra, Villon vê-se compelido por mais de uma vez a ausentar-se de Paris e acaba por ser preso, em 1461, em Meung-sur-Loire, nas prisões do bispo de Orléans. Nessa altura o que o salva é a passagem do rei Luís XI por esta cidade e a amnistia de que, por esse motivo, ele se vê beneficiado. É, no entanto, sol de pouca dura: dois anos depois, implicado em nova rixa, ei-lo condenado à forca. Escreve então um dos seus melhores poemas: um epitáfio em forma de balada, em que pede clemência para si e para os companheiros igualmente condenados. Esse é o texto que vamos agora apresentar numa versão de Herculano de Carvalho, incluída no livro Musa de Quatro Idiomas, aonde já temos ido buscar outros empréstimos; e creio poder assegurar que seria impossível traduzir melhor uma poesia como esta:

 

Homens irmãos que mais que nós viveis,

Não deixeis vosso peito empedernido,

Pois que, se compaixão de nós haveis,

Bem será Deus de vós compadecido.

Aqui somos atados cinco, seis.

Quanto à carne, demais por nós nutrida,

É gasta, devorada, corrompida

E nós, ossos, cinza e pó vamos ser.

Que ninguém de nós ria nesta vida;

Rogai a Deus que nos queira absolver!

 

Se clamamos, irmãos, vós não deveis

Ter desdém, por termos sido feridos

Pela justiça. Pois vós sabereis

Que nem todos têm certos os sentidos;

Intercedei por nós assim transidos

junto do Filho da Virgem Maria,

Que não seja, da graça, a alma vazia,

Pra do fogo infernal nos proteger.

Somos mortos, nada nos arrelia;

Rogai a Deus que nos queira absolver!

 

Pela chuva lavados e polidos,

Pelo sol ressequidos e tostados,

Os olhos pelos corvos engolidos,

A barba e os cabelos arrancados.

Nunca jamais estamos assentados;

Pra cá, pra lá, como o vento varia;

Para onde quer, sem parar, nos envia.

Bicadas: mil, até dedais parecer.

Não sejais, pois, da nossa confraria;

Rogai a Deus que nos queira absolver!

 

Senhor Jesus, de todos senhoria,

Poupai-nos do Inferno a tirania:

Nada temos com ele a resolver.

Homens, aqui não cabe a zombaria;

Rogai a Deus que nos queira absolver!

 

A perspetiva da morte iminente, a perspetiva do próprio Inferno, são bem patentes nestes versos, sem dúvida elos mais impressionantes e patéticos de toda a poesia europeia, já pela consciência do mal e pelo sentimento de arrependimento que exprimem, já pela situação extrema em que de facto se inscrevem. E a situação é tão desesperada que só na clemência divina é que François Villon coloca as suas últimas esperanças; só para ela recorre, só dela espera uma derradeira absolvição. Mas a justiça dos homens, por esta vez, intervém a tempo: um decreto do Parlamento vem anular a sentença; e Villon, em lugar da pena ele morte, vê-se tão-só banido de Paris pelo espaço de dez anos. Depois disto, perde-se inteiramente o rasto de François Villon; mas o rasto ela sua poesia, esse, nunca mais se perdeu: e em 1489, menos de trinta anos depois destes acontecimentos, menos ele quarenta anos depois ela invenção da imprensa, um dos primeiros livros de versos que sai dos prelos franceses é justamente o que reúne as obras ele François Villon.

 

David Mourão-Ferreira, "O 'Outono da Idade Média' V - François Villon, criminoso e poeta", Colóquio/Letras, n.º 166/167, Jan. 2004, p. 441-445.

 



 

Poderá também gostar de ler:


DA COSTA, D. Testamento do Vilão – Invenção e recepção da poesia de François Villon. 2013. f. 304. Tese – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Letras Modernas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

 

DA COSTA, Daniel. “Autor e personagem - François Villon e a nova crítica na França”, in Revista Criação & Crítica n.º 12, 2014. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v0i12p76-87

 

DA COSTA, Daniel. “Clément Marot: o principal editor antigo do corpus atribuído a François Villon”, in Revista Criação & Crítica, dezembro 2015. DOI:10.11606/issn.1984-1124.v0i15p41-54. Project: Invenção e recepção das obras atribuídas a François Villon

 

BASTOS, Gustavo. “François Villon, o primeiro dos poetas malditos” - parte I (16/07/2016 | Atualizado 08/03/2020) e parte II (23/07/2016 | Atualizado 

 



CARREIRO, José. “François Villon, criminoso e poeta”. Portugal, Folha de Poesia, 17-08-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/08/francois-villon-criminoso-e-poeta.html



quarta-feira, 27 de julho de 2022

Sem meu amigo manh'eu senlheira, Juião Bolseiro

Nesta cantiga, o tema da insónia, provocada pela ausência do amado, atinge um ponto de extrema tensão emocional e a nostalgia da intimidade perdida - que ela também evoca - reveste-se de uma perturbante flagrância sensorial.

David Mourão-Ferreira, "Mais alguns trovadores do período afonsino", Colóquio/Letras, n.º 166/167, Jan. 2004, p. 277-282.


“XI- Sen meu amigo manh’ eu senlheira - Juião Bolseiro”, Ilustração de Antonio García Patiño
http://images.moleiro.com/noback/big-590-900CA_006.1_XI.jpg

         

 

Sem meu amigo manh'eu1 senlheira,2

e sol nom3 dormem estes olhos meus,

e, quant'eu posso, peç'a luz a Deus

e nom mi a dá, per nulha4 maneira,

mais, se masesse com meu amigo,

a luz agora seria migo.5

 

Quand'eu com meu amigo dormia,

a noite nom durava nulha rem,6

e ora dur'a noit'e vai e vem,

nom vem [a] luz nem parec'o7 dia,

mais, se masesse com meu amigo,

a luz agora seria migo.

 

E segundo com'a mi parece,

u8 migo9 mam10 meu lum'e meu senhor,

vem log'a luz, de que nom hei sabor11,

e ora vai noit'e vem e crece;

mais, se masesse com meu amigo,

a luz agora seria migo.

 

Pater Nostrus rez'eu mais de cento

por Aquel que morreu na vera cruz,

que el mi mostre mui ced[o]12 a luz,

mais mostra-mi as noites d'Avento;13

mais, se masesse com meu amigo,

a luz agora seria migo.

 

Cantiga de Amigo de Juião Bolseiro

 

MANUSCRITOS: B 1165, V 771

(C 1165)

 

 

NOTAS:

1. maer - ficar durante a noite, pernoitar.

2. senlheiro – sozinho.

3. sol nom - nem mesmo.

4. nulho – nenhum.

5. migo – comigo.

6. nulha rem - nada, coisa nenhuma.

7. parecer – aparecer.

8. u – quando.

9. Em B e V, comigo.

10. maer - ficar durante a noite, pernoitar.

11. haver sabor – gostar.

12. cedo - em breve, rapidamente.

13. Avento - Advento. No calendário religioso, as quatro semanas que antecedem o Natal (note-se que são as noites mais longas do ano).

 

 

PARÁFRASE:

 

Sem o meu amigo sinto-me sozinha

e não adormecem estes olhos meus.

Tanto quanto posso peço a luz de Deus

e Deus não permite que a luz seja minha.

Mas se eu ficasse com o meu amigo

a luz agora estaria comigo.

 

Quando eu a seu lado folgava e dormia

depressa passavam as noites; agora

vai e vem a noite, a manhã demora;

demora-se a luz e não nasce o dia.

Mas se eu ficasse com o meu amigo

a luz agora estaria comigo.

 

Diferente é a noite quando ele aparece

meu lume e senhor e o dia me traz;

pois apenas chega logo a luz se faz.

Vai-se agora a noite, vem de novo e cresce.

Mas se eu ficasse com o meu amigo

a luz agora estaria comigo.

 

Padres-nossos já rezei mais de um cento

implorando Àquele que morreu na cruz

que cedo me mostre novamente a luz

em vez destas longas noites de Advento.

Mas se eu ficasse com o meu amigo

a luz agora estaria comigo.

 

Cantares dos trovadores galego-portugueses, seleção, introdução, notas e adaptação de Natália Correia, Lisboa, Editorial Estampa, 1978


NOTA GERAL:

Sem o seu amigo, sozinha, a donzela não consegue dormir, e, por mais que reze para que chegue a manhã, a noite parece não ter fim; quando dorme com o seu amigo, no entanto, acontece exatamente o contrário: as noites passam num instante e é logo dia (infelizmente). Assim, tentando ocupar o tempo (e chamar o sono), como adianta na última estrofe, ela reza mais de cem Pai Nossos, sem resultado: sozinha, sem o seu amigo, todas as noites são noites de Inverno, longas e intermináveis.

A descrição de uma insónia de amor ou o modo como sentimos o tempo passar em diferentes circunstâncias estão no centro desta bela cantiga de Juião Bolseiro (que retoma o tema em duas outras cantigas, que formam, com esta, um pequeno ciclo). Note-se, de resto, que o último verso do refrão acrescenta uma força poética suplementar à cantiga, uma vez que, para além da leitura literal, ele permite uma outra leitura: o amigo ausente é a luz que ilumina a sua vida.

É de salientar ainda que, se a ausência do amigo é um dos motivos mais habituais nas cantigas de amigo, é muito rara a indicação explícita da consumação do amor, como acontece aqui (na referência às noites que ambos passaram juntos).

 

Fonte: Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 2022-07-22] Disponível em: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=1195>.

 

 

PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:

 

 

 


 


CARREIRO, José. “Sem meu amigo manh'eu senlheira, Juião Bolseiro”. Portugal, Folha de Poesia, 27-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/sem-meu-amigo-manheu-senlheira-juiao.html


domingo, 24 de julho de 2022

pratica-te como contínua abertura, Herberto Helder


pratica-te como contínua abertura,

o mais atento que custe,

com uma volta sobre ti mesma até eu aparecer no outro lado do rosto,

quando te olhas,

espera que desapareça o ruído em cada palavra,

e agora só a ela se ouça,

e então aumenta tanto quanto possas se escutas

que me aproximo,

a género de abrasadura mulheril,

a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo,

edoi lelia doura,

que o mênstruo coza e a seda escume,

à luz que nasce da roupa,

e os substantivos perfeitos respirem uns dos outros na têmpera

e frescor da língua indestrutível,

e então estendo por ti acima o melhor do meu braço,

se é que posso fulgurar,

e enquanto crio, cria-me, e cria-te como começo de mim mesmo,

isto: que unas o avulso,

se te puderes mover como o ar que respiro, ó

irrepetível, inenarrável, inerente

 

HELDER, Herberto. “A faca não corta o fogo”.

In: Ofício Cantante – poesia completa.

Lisboa: Assírio & Alvim, 2009. p. 537.

 

 

 

TEXTOS DE APOIO

TEXTO 1

 

O verso “edoi lelia doura” serve de título à Antologia das Vozes Comunicantes da Moderna Poesia Portuguesa organizada por Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim,1985).



Edoi lelia doura” é um conhecido refrão da cantiga trovadoresca galego-portuguesa “Eu velida nom dormia”, de Pedro Anes Solaz/Pedr'Eanes Solaz, que teve diferentes interpretações ao longo do tempo:

«Por exemplo, Braga (1878: CII) afirmaba con certa contundencia que se trataba dunha onomatopea galega, mais desde a década de 60 do século XX concluíuse que estaba en árabe, embora as traducións sobre o que o texto árabe (se callar, cun fragmento en romandalusí?) diría foron mudando co tempo. Para Brian Dutton (1964: 1-9) e Olga Novo (2013: 82 e 86) sería sobre a noite que dura e se fai longa, unha idea que ten ligazóns directas con outras composicións dos nosos códices, como as lindísimas «Sen meu amigo manh’eu senlheira» (B 1165 / V 771) e «Aquestas noitas tan longas, que Deus fez en grave dia» (B 1176, V 782), ambas de Juião Bolseiro.

Por outra banda, para Rip Cohen e Federico Corriente o refrán significiaría «it’s my turn» (Cohen & Corriente, 2002: 27), ‘é a miña vez’.»

 

Carlos Callón. SCRIPTA, Revista internacional de literatura i cultura medieval i moderna, núm. 15 / juny 2020 / pp. 1 – 15 ISSN: 2340-4841· doi:10.7203/SCRIPTA.15.17551

 

 



TEXTO 2

 

O verso “edoi lelia doura” aparece no meio do poema, cortando a sequência de imagens sobre o ato de criação. Inscreve, no meio de um diálogo entre um "eu", poeta e criatura textual, e um "tu", musa e texto, uma dupla referência: por um lado, evoca Pedro Eanes Solaz que abre a antologia de "vozes comunicantes". Por outro lado, evocando esta antologia, dialoga não só com o trovador, como também com toda a história da poesia lírica portuguesa, “cálculo lírico”; e claro, H. Helder alude ao seu próprio trabalho de poeta, à sua própria antologia de poesia portuguesa. A citação permite imaginar que o interlocutor do poeta seria uma espécie de arqui-antologia, a própria obra sobre a qual o poeta concentra sua atenção, "o melhor do [seu] braço". A obra é praticada como uma “abertura contínua”, um corpo que “cresce” até um certo tamanho que é medido pelo “desaparecimento” do ruído das palavras, deixando apenas o som da própria palavra.

O trabalho de abertura, que é o de criação, é também um trabalho circular, “uma volta sobre ti mesma”. O fruto desse trabalho é o "rosto" do eu; então, o próprio "eu" torna-se a obra. Apontamos a estreita relação entre o eu e o texto, especialmente em “A Faca Não Corta o Fogo”. Percebemos que, mais do que uma coincidência de corpos, é uma coincidência entre seu sopro vital e o texto. O pneuma é referido três vezes no poema: as batalhas de "ar e fogo", a respiração dos substantivos e o ar que o poeta respira. Note que o sopro vital é, portanto, o sopro do trabalho, o sopro do texto e o sopro do criador. Trata-se de respirar, às vezes ofegante, às vezes exalação longa, como mostra a oscilação entre versos curtos e versos mais longos. Na penúltima linha antes do final, o poeta enfatiza que a tarefa do interlocutor é reunir o que está separado; em outras palavras, é tarefa da antologia.

 

Daniel Rodrigues. Les démonstrations du corps. L’œuvre poétique de Herberto Helder. Littératures. Université de la Sorbonne nouvelle - Paris III, 2012, pp. 208-210.

 

TEXTO 3

 

O primeiro verso revela-nos uma aspiração, um pedido do sujeito poético: “pratica-te como contínua abertura,”. A quem ele solicita a prática da “contínua abertura”? Temos que ele se refira à arte poética, à poesia. O sujeito almeja a constituição de poemas abertos, ou seja, que aludam a uma totalidade, a um inacabamento que sugira o infinito, o absoluto em poesia. […]

Os versos “com uma volta sobre ti mesma até eu aparecer no outro lado do rosto,/ quando te olhas,” corroboram o exercício da arte poética como uma atividade centrada em si mesma. A expressão “com uma volta sobre ti mesma” enfatiza a metapoesia, sugestionada no emprego do termo circular “volta”, ou seja, daquilo que gira em torno de si mesmo. Na sequência, o sujeito poético indica um trabalho em conjunto entre ele e a obra em processo, pois solicita que ela dê uma volta sobre si mesma até que ele apareça no outro lado “do rosto” ou “do poema” cuja fisionomia já supostamente se entrevê. A questão da metapoesia retorna novamente, pois o verso quarto insiste nela: “quando te olhas”, quando a poesia volta-se sobre si mesma.

Supõe-se que o sujeito poético passa a narrar o processo criativo, e então ele continua: “espera que desapareça o ruído em cada palavra,/ e agora só a ela se ouça,/ e então aumenta tanto quanto possas se escutas/ que me aproximo/ a gênero de abrasadura mulheril,/ a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo,”. O sujeito se dirige à obra em processo, equiparando-a a uma mulher, a saber: “uma volta sobre ti mesma”, “a gênero de abrasadura mulheril”, são expressões que a enquadram no âmbito do feminino. Quando se pede para que espere o desaparecimento do “ruído em cada palavra”, enfatiza-se o processo de depuração da palavra poética. A purificação da palavra atinge o seu ápice no momento em que “só a ela se ouça”, e como o processo criativo envolve o trabalho concomitante do sujeito e da obra, tem-se a reversibilidade do ato de um no outro, de modo que existe uma co-participação fundamental entre os dois e da qual dependerá o futuro poema: “e então aumenta tanto [a voz da obra] quanto possas se escutas/ que me aproximo [o sujeito poético]”.

De que modo deve efetivar-se o entrelaçamento entre obra e autor para que se obtenha o poema? Os versos “a gênero de abrasadura mulheril/ a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo” nos respondem. Primeiramente, com a força do erotismo feminino, visto que se fala em “abrasadura mulheril” – o processo criativo do poema equipara-se ao erotismo-sexual, já que poeta e palavras se aproximam e se entrelaçam, de modo análogo aos corpos dos amantes. Em seguida, encontramos a expressão “cálculo lírico” que, por sua vez, corrobora o sentido do segundo verso “o mais atento que custe”. O termo “cálculo” refere-se ao trabalho “matemático” executado pelo poeta no que diz respeito ao processo compositivo do poema, destacando a importância do papel da dimensão reflexiva. Por fim, este “cálculo lírico” é “infundido”, ou seja, inspirado, o que também aponta para a importância do papel do dom na confeção do texto. Ambos, dom e trabalho atuam de maneira igualmente relevante “nas lides [lutas, combates com as palavras] de ar e fogo”, isto é, no processo poético.

O verso “edoi lelia doura” faz referência a um livro de Herberto Helder, publicado em 1985 e de mesmo nome. Na verdade, a expressão “edoi lelia doura” é encontrada numa cantiga de amigo do século XIII e de autoria do jogral Pedro Eanes Solaz. O poema herbertiano retoma esta cantiga e a coloca como uma espécie de epígrafe ao seu livro de antologia de vozes comunicantes da poesia portuguesa. A expressão “edoi lelia doura” por muito tempo foi compreendida como um refrão onomatopaico, apresentando-se como uma cadeia sonora ou rítmica sem um significado específico. Na década de 60, estudiosos passaram a sugerir que o refrão desta cantiga de amigo se trata, na realidade, de um refrão em língua árabe e que se traduz por “e a noite roda” ou “a noite é longa”. No poema herbertiano, a expressão “edoi lelia doura” alude, portanto, ao encontro do sujeito poético com a faceta noturna do processo criativo e que antecede ao dia: o poema.

Logo a seguir, deparamo-nos com o verso “que o mênstruo coza e a seda escume”, o que novamente transpõe a obra em processo para o âmbito do feminino, em razão do aparecimento do termo “mênstruo”. A mulher que menstrua é potencialmente fértil e o desejo ou ordem para “que o mênstruo coza” denota igualmente o desejo de que a obra em processo resulte no poema. Que o “mênstruo” ou o “sangue da fertilidade” “coza”, isto é, que prepare o poema, que o possibilite. O verso continua e pede-se para que a “seda escume”, que a tessitura do poema aconteça. Continuando a leitura do poema, encontramos “à luz que nasce da roupa”. A palavra “luz” indica o aparecimento do poema, indica o momento em que a mescla de dom e trabalho ou de sujeito e obra é bem-sucedida. No caso, o surgimento do poema encontra-se ainda na esfera do desejo. Na obra herbertiana, o termo “roupa” apresenta-se muito recorrente e tem a ver com poema, na medida em que este é costurado ou tecido como a roupa. O texto poético é um artefacto humano, seda tecida pelas mãos do poeta.

O desejo de que a “luz” nasça da roupa continua a ser narrado, a ser detalhado. Para isso, é preciso que “os substantivos perfeitos respirem uns dos outros na têmpera”, quer dizer, que os “substantivos perfeitos” - a palavra poética, os nomes – entrelacem-se, “respirem” uns nos outros do modo mais exato, vital. Que as palavras entrem em pleno acordo, que as conexões entre elas sejam as mais eficazes possíveis. Como o poema é um animal, um corpo, um ser vivente, natural que as palavras “respirem” umas nas outras. Para tal intento, o poeta deve conferir o “tratamento térmico” adequado para que o poema surja. Se lembrarmos de que a figura do poeta pode ser, entre tantas, a do forjador de metais, temos que ele trabalha o metal, principalmente o aço, conferindo-lhe a consistência desejada por meio da operação de “têmpera”. Torna então o metal mais consistente, submetendo-o a um banho que consiste num choque térmico. Sob este aspecto, o poeta realiza a operação de “têmpera” sobre as palavras, tornando-as mais consistentes ou “substantivos perfeitos”, resultando desta operação “o frescor da língua indestrutível”, tal como o aço.

Narrando ainda a experiência poética, o sujeito poético enuncia “e então estendo por ti acima o melhor do meu braço,/ se é que posso fulgurar,”. Disto, depreende-se que o sujeito faz o melhor que pode para que surja o poema, pois estende o melhor do seu “braço” para a obra em processo, se bem que ele não possui a certeza de que o seu esforço será suficiente para a consecução do poema e, por isso, o verso “se é que posso fulgurar”. Não sabe se a luz, se o brilho, se a fulguração advirá do processo criativo.

Aventando a hipótese do resultado frutífero, o sujeito poético continua e finaliza a sua narração sobre a experiência poética: “e enquanto crio, cria-me, e cria-te como o começo de mim mesmo,/ isto: que unas o avulso,/ se te puderes mover como o ar que respiro, ó/ irrepetível, inenarrável, inerente”.

Trata-se de uma parte crucial do poema, pois aqui os versos evidenciam a reversibilidade entre as categorias de sujeito e objeto. Ambos, sujeito e obra ocupam os dois polos da clássica dicotomia a ponto de não mais podermos distingui-los. […]

Portanto, o papel do trabalho poético consiste em “soldar” esta experiência vivenciada de modo mais integral e repentino pela consciência, soldando os fragmentos que se apresentaram por conta desta experiência sensível: “isto, que unas o avulso,”. Nos poemas herbertianos, constantemente a afirmação da busca da unidade entre as coisas fundamenta o canto poético. O poeta deve unir o avulso, soldar os fragmentos a fim de compor o poema, empregando a linguagem analógica. Quando Herberto Helder publica o seu prefácio para o livro de António José Forte, temos que ele tece um comentário que vale para a sua própria poética:

 

Como muita poesia surrealista ou afim, a de Forte molda-se num corpus de fragmentos soldados por pontos magnéticos de analogia imagística ou verbal, por enlaces rítmicos: uma colagem orgânica de fragmentos. O continuum, sempre perfeito, denota a ágil intuição dos recursos de escrita, uma oficina atenta. (HELDER, Herberto. “Nota inútil”. In: FORTE, António José. Uma faca nos dentes. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2003. p. 14.)

 

Portanto, a finalidade é conectar, soldar o avulso, confecionando a “colagem orgânica de fragmentos”, ou melhor, o poema. Eis a linguagem analógica, a que procura entrever semelhanças entre os heterogêneos. Tudo o que se encontra comumente fragmentado ou separado pode servir de matéria para o espaço do poema, desvelando as relações secretas entre as coisas:

 

(...) o sentido não-intelectual, supra-racional, corporal, do poder da imaginação poética para animar o universo e identificar tudo com tudo. A cultura moderna tornou-se incapaz de tal ênfase, pois trata-se de uma cultura alimentada pelo racionalismo, a investigação e o utilitarismo. Se se pedir à cultura moderna para considerar o espírito enfático da magia, a identificação do nosso corpo com a matéria e as formas, toda a modernidade desaba (...). É forçoso ir longe, aos recônditos do tempo, ir beber nas noites ocultas. Parece que a física, agora, começa a trabalhar no sentido da pergunta poética: as coisas têm entre si relações de mistério, não relações de causa e efeito. Abre-se caminho através da obscuridade, inquirindo, seguindo adiante. (HELDER, Helder. “Herberto Helder: entrevista”. In: Inimigo Rumor, n.º 11. 2.º semestre de 2001, p. 193)

 

O excerto herbertiano supracitado corrobora a relevância da linguagem analógica para a poesia: “identificar tudo com tudo”. Dele, depreende-se que a cultura moderna valoriza demasiadamente uma racionalidade estrita, uma razão do tipo obtusa. Sendo assim, a linguagem analógica bebe de outras fontes que não o racionalismo e o utilitarismo, bebe “nas noites ocultas”, na imaginação produtora. Contrapõe-se assim a cultura moderna fundada na razão e a poesia.

Aliás, a palavra “noite” e suas correlatas têm uma função pontual na obra herbertiana: apontar para o contato do sujeito poético com o campo pré-reflexivo. É sabido que Novalis engendrou uma poética noturna, sendo a obra Hinos à noite sobejamente conhecida. Entre outras razões, o espaço da “noite” é valorizado na poética novalisiana, dado que a “noite” simboliza esse caos fecundante em que as coisas se unem e se apresentam sem distinção por conta da escuridão, enquanto que o “dia” tem a conotação da racionalidade que separa e que distingue tudo em razão de sua luminosidade apolínea.

Para a obra de Herberto Helder, tanto o “dia” quanto a “noite” têm conotações positivas e constituem etapas imprescindíveis do processo criativo, pois enquanto a “noite” aponta para o caos fecundante do campo pré-reflexivo, tem-se que o “dia” ou qualquer outra forma de luminosidade apontam para a possibilidade do surgimento do poema, indicando que o vínculo entre dom e trabalho ao menos parece bem-sucedido. E esta conotação positiva a respeito do “dia” se deve muito ao diálogo da poética herbertiana para com o cinema e a fotografia, tecnologias em que a luz possui um papel técnico fundamental na composição da imagem. Como veremos no capítulo II, esta faceta noturna do processo criativo e que se converte no dia tem também a sua relação com a obra do poeta Hölderlin.

No intuito de finalizar a análise do poema, vimos que o verso “isto: que unas o avulso” suscitou-nos uma grande discussão de cunho teórico para que entendêssemos que a linguagem analógica rege a construção dos poemas herbertianos, deixando-os propositadamente e necessariamente obscuros.

O poema termina com os versos “se te puderes mover como o ar que respiro, ó/irrepetível, inenarrável, inerente”. Caso sujeito poético e obra em processo entrem em concordância, caso estejam na mesma sintonia, tem-se o “irrepetível, inenarrável, inerente”: o poema.

 

Árvore do ouro, árvore da carne: problematização da unidade na obra de Herberto Helder. Análise de poemas d'A faca não corta o fogo, Tatiana Aparecida Picosque. São Paulo: FFLCH/SBD, 2012, pp. 106-117.

  


CARREIRO, José. “pratica-te como contínua abertura, Herberto Helder”. Portugal, Folha de Poesia, 24-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/pratica-te-como-continua-abertura.html