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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

SAUDADES PAGÃS (Antero de Quental)


Photographer: Laura Dark
Headpieces: Miss G Designs
Makeup/Models: Helena Troy, Michael Pottymouth Gray, and Manzin.ver: “Silver Lining” SERIES: http://www.darkbeautymag.com/2014/12/laura-dark-silver-lining/

                               
         
             
SAUDADES PAGÃS

I

Visões! sonhos antigos!
                     Quando a Terra,
Na inocência primeira de seus anos,
Entre flores dormia... e era seu berço
O seio de mil deuses! Quando a vida
No coração dos homens sem esforço,
Se abria como um lótus, todo cheio
Dos raios do luar e dos segredos
Do vaporoso espírito das noites!

Quando um tronco era peito comovido,
E a montanha um Áugur, e a rocha oráculo:
E não se achava um só bago de areia
Que não estremecesse e não sentisse
Agitar-se-lhe dentro a alma confusa
Quando os Orfeus passavam, silenciosos,
Por entre os arvoredos, meditando!

Saía então da Terra um grande espírito:
Havia em tudo uma expressão profunda:
Nem era muda a vastidão do mundo.
Como um canto que fere as cordas todas
Duma harpa sonora, uma mesma alma
Através do Universo ia acordando,
Em peito, árvore, pedra, e céu e onda,
As mil notas, diversas mas cadentes,
Duma mesma harmonia ‑ o hino da Vida!

Era a cidade ideal da Natureza!
Seu povo, a criação; seu templo, o espaço;
E muralhas em volta, circundando-a,
Dum lado ao outro os livres horizontes!
Era a cidade ideal! a Lei eterna
Banhava-a sempre numa aurora imensa,
Quando um povo de deuses, radiante
De mocidade e brilho, caminhava
Por entre as multidões ‑ e o solo heroico,
Teu solo sacrossanto, ó Grécia antiga,
Como um sublime palco, sob os passos
Dos atores divinos ressoava!
   
II
Ela era então formosa, a Vida! e a Terra,
Noiva de heróis, abria o seu regaço,
Por que os filhos de Alcides, ao passarem
Das longínquas conquistas, lhe lançassem
Como dons nupciais os grandes feitos...
Os feitos dos heróis! E a alma dos deuses,
Oculta dentro deles, murmurava
Por alta noite, entre as visões do sonho,
Confusa profecia! o canto vago
Das legendas futuras...
                                     Epopeias!
Impérios do esplendor! O Olimpo eterno,
Mais alto que o Sinai, não se envolvia
No nevoeiro espesso dos mistérios...
Seus flancos sobre a terra se abaixaram...
O riso dos olímpicos banquetes,
Largo rio de brilho e de harmonias,
Corria desde cima ‑ e em suas margens
Via-se às vezes mergulhar a taça,
E sereno beber, um velho... Homero!

Em baixo, contrafeito e triste, o Sátiro
Rodava em volta ao monte. Homem, acaso,
Filho do chão, talvez, a forma escura
Entrevista nas selvas parecia
Um espião dos deuses. ‑ Invejoso,
E amigo entanto, ele era o rude símbolo
Da ânsia humana, a imortal curiosidade
Que às portas d’oiro eternas espreitava
As palavras secretas... E, por vezes,
Em meio dos banquetes sua face
Aparecia ‑ e o olho vago e triste
Desse monstro infeliz lembrava ao Olimpo
A longa dor da geração dos homens!

Diziam que era o peso das palavras
Ao destino roubadas que o curvava;
E era seu confidente o livre vento.
O rochedo o sabia: e nesses montes
Onde passava a turba gloriosa,
A boca das cavernas, ressoando,
Tinha uma voz profunda. ‑ Ela dizia
À alma turva do homem mil segredos,
Mil perdidas ciências ‑ as origens,
Ocultas sob o véu dos vagos símbolos...
As guerras do princípio... os Elementos,
Titãs perante o céu lutando altivos...
Os combates da Terra e suas glórias...
A tradição dos montes e das feras...
O alfabeto dos ramos na floresta...
O voo da ave e o serpear dos rios ‑
E a harmonia das vozes na montanha
Era a letra do hino, enquanto a música
Sob os dedos de Orfeu se cadenciava!

Ó sopro livre e puro dos desertos!
Ó murmúrios das fontes! que segredos
Ensinava essa voz aos solitários?
O pastor, sacerdote das florestas,
Áugur sagrado pela luz da aurora,
Podia sobre o monte, erguendo a face,
Decifrar os arcanos do Destino
Nos voos da ave de oiro mitológica!
  
III
Feriram-te, ave augusta! Seta escura
Varou-te o coração! e aterra ingrata
Pôde beber teu sangue! No teu ninho
Vejo os ovos do abutre! tuas penas
O vento as dispersou! És como um sonho

De que mal há memória ‑ como a nuvem
Que a rajada partiu ‑ e como a lágrima
Dos olhos do cativo, sobre as ondas!
Ergo a face entre os montes e olho ao longe:
É ainda um mar de brilho esse horizonte...
Mas nas vagas serenas já não vejo
Teu seio, como barca de harmonias,
Entre o astros vogando compassado!

Alma virgem do mundo! Vestal santa!
Que sopro te apagou o lume puro
Em tuas aras d’oiro? Claro espírito!
Consciência universal! que sonho estranho
Te enlouqueceu de dor? Entre as florestas,
Quando o vento do inverno bate os ramos,
Há, pelo horror da noite, um choro escuro,
E uma voz dolorosa ao longe ulula...
É Diana, a formosa, a casta, a ingénua,
Ferida, e os pés em sangue pelas urzes,
Que vaga douda e corre pelas selvas
Chamando em vão os deuses foragidos!
   
IV
Secou-se o ramo d’oiro em mãos de Eneias!
Despovoou-se a terra! Os seus espíritos
Voaram não sei onde! A fonte chora
A viuvez das Náiades! O tronco
Agita no ar os braços descarnados,
A ver se apanha a túnica ligeira
Das perdidas Napeias! Longe, ao longe,
Nos ruídos dos bosques, nos suspiros
Do vento pelos vales, nos murmúrios
Dos rios tortuosos, nas cascatas,
Nas grutas, no rochedo ‑ em tudo, em eco
De saudade indizível se levanta!
Sai do seio da terra uma voz triste,
Longa, profunda... é ela, que lamenta
A orfandade misérrima do mundo,
A morte da alma antiga, essa alma imensa,
Esse brilho extensíssimo!
                                             Inocências!
Puros sonhos da infância do Universo!
Ah! não mais voltareis! um sopro frio
Varreu de sobre a terra as suas flores!
Entre os lábios de Orfeu o canto augusto
Gelou-se e a extrema nota dissipou-se!
A profecia antiga do Destino
Veio a cumprir-se ‑ e os deuses vagabundos
Dum horizonte ao outro, como sombras,
Arrastam os retalhos desse manto
Da velha divindade! A lira eterna
Ainda brilha no céu, mas não tem cantos,
Nem há já quem lhe entenda os santos hinos!
O banquete do Olimpo está deserto...
E a Terra está viúva dos seus deuses!
V
Viúva? não! um duro cativeiro
Os tem presos na abóbada sombria
Dum cárcere bem frio. Outros, fugidos,
Nas montanhas aéreas do horizonte,
Nas nuvens do sol-posto, passam tristes,
Lançando à terra um longo olhar de mágoa...
Seus corações heroicos estremecem
Quando a voz do leão encadeado
Se ergue e comove o abismo ‑ é digna deles
Essa queixa do forte! Então alongam
Pela face do mar os olhos vagos...
Outro mar de lembranças tumultua
Nos grandes peitos que dilata o orgulho...
E ao reflexo das ondas, toda a noite,
Veem passar os pálidos fantasmas
Da glória antiga e dos antigos feitos!

A alguns o coração ficou-lhes preso
Às duras pedras da cidade ingrata.
Em despeito da afronta, amam os homens...
Uma íntima saudade os traz à noite
Em volta aos muros... vagam como sombras...
E no confuso coro misterioso
Dos rumores noturnos, se escutares,
Hás de ouvir os soluços e o partido
Longo choro dos deuses exilados...

Como os filhos dum povo, que a conquista
Com mão de ferro sacudiu ao longe,
Todos vagam no mundo. A sombra, agora,
A esses corpos de luz é quem os veste!
Seus pés divinos ferem-se nas rochas!
Seus banquetes as feras lhes disputam!
E, em vez de muros de ouro de alto Olimpo,
Suas nobres palavras inspiradas
Mal despertam o eco das pedreiras!

Fundas minas da terra! escuros antros
Das longínquas montanhas solitárias!
Em vosso duro seio houve piedade...
Vossa boca se abriu para saudá-los...
Para saudar os fortes, na desgraça...
E, enquanto os homens surdos recusavam
À miséria dos deuses um asilo,
(Estreito que ele fosse) um lar amigo,
Vós, ó sombrias rochas, vós formastes
Sobre os montes uma ala de gigantes;
E, através das fileiras de granito,
Os príncipes do mundo, os reis caídos,
Passaram no caminho do desterro!

No deserto assentaram seu concílio
Esses que o céu, há pouco, mal continha...
Graves, sua atitude é ainda altiva,
E a majestade antiga está com eles.
Não choram sobre si ‑ em qualquer parte
Aonde habite um Deus é ai um templo ‑
Porém a ingratidão dos homens falsos
Punge-os, que a não concebem: não concebem
Esses filhos do Bem o Mal escuro.
Dir-se-á que expiam o alheio crime;
Tanto os perturba a injustiça humana,
E da afronta, que sofrem, têm piedade...
Seus nobres corações choram: mas, fortes,
Os olhos não o dizem ‑ como auroras,
Alegram o horizonte dos desertos!
     
VI
Ah! nós, nossas moradas tristes, nossas
Habitações escuras, não, não podem
Por mais tempo ficar em trevas, quando
Essa aurora imortal doura as montanhas!
Quando uma chuva de ouro luminosa,
Trazida pelo vento, vem correndo
Desde os montes sublimes, nossos vales,
Cá em baixo, não podem, tristes, frios,
Ficar estéreis como um seio inerte
De mulher na hora santa dos ardores!
Falam deuses nos ermos... e as cidades
Não hão de ter oráculos? As rochas
Têm génio tutelar... e o lar dos homens,
Como ara ao abandono, há de esfriar-se?
E da memória dos antigos sonhos
Restar apenas sobre as duras lajes
Um punhado de cinzas?

                                            A Alma eterna
Há de voltar ao seio dos ingratos!
Alma jovem de amor e luz! O mundo
Arranca as velhas cãs! rejuvenesce!
Seu gasto coração pasma, sentindo
Um novo sangue que o anima e agita!
Sorri... tenta sorrir... não sei que oráculos
Lhe ensinam a esperança! Anseia a vida...
E nos sinais do céu lê com espanto
Um poema de prósperos destinos!
A memória dos tempos venturosos
De inocência e de amor comove-o, enchendo-lhe
O peito de saudades! cisma e em sonhos
Evoca mil lembranças ‑ céus e fontes,
E os jardins doutros climas, e as legendas
Dos tempos esquecidos, e os sorrisos
Dos amigos da infância...
                                         Eles! são eles,
Cujas imagens, pela vaga noite,
Lhe enchem o sono de visões fantásticas...
Estende os braços para ver se apanha
As impalpáveis formas! pára... escuta...
E as sombras da alvorada nas montanhas,
Já lhe parecem vultos misteriosos
Que o chamam e saúdam... Eram sombras!
Mas o que diz o coração, à noite,
Quando o comove a dor e o isolamento,
Não são sonhos apenas... são presságios!

Sai das cinzas do altar uma luz frouxa...
E os lírios esquecidos dão seu cheiro...
A chama sobre o lar, às vezes, como
Se os génios, invisíveis, assistissem
Ao serão, brilha e agita-se contente,
Enchendo a casa dum clarão fantástico...
São presságios!... Também se escuta à noite
Correr nos ares um cantar suave,
Vago, longínquo, como se os espíritos
Agitassem, passando, a lira antiga...
São vozes precursoras! Quando os deuses
Vêm visitar a habitação dos homens,
Mandam sempre adiante estes oráculos...

Sim, um dia, do meio das florestas,
Há de se erguer a grande voz profética!
Há de soar! e o vento dos desertos,
Das livres solidões filho indomável,
Há de abater o cárcere sombrio!
Eles hão de surgir! Compondo o manto
Da realeza antiga, havemos de vê-los
Na majestade olímpica dos fortes
Descendo os grandes montes! Turba heroica!
E, vestidos de luz, a terra inteira,
Vendo o drama divino, há de saúda-los
Em alta aclamação ‑ teatro imenso
Co’a grande voz dos deuses ecoando!
Antero de Quental, 1864.
Primaveras Românticas, 1872.
     
           
http://www.darkbeautymag.com/2014/12/laura-dark-silver-lining/

          
         
ANTERO E A POESIA DE IDEIAS
Em «Saudades Pagãs» celebra-se, passando do tom nostálgico ao profético, a morte dos deuses, personificada em heróis e criadores antigos (Homero, Orfeu, Diana, Eneias), numa clara mas abreviada inspiração da Légende des Siècles; a visão idílica inicial («Quando a Terra / Na inocência primeira de seus anos, / Entre flores dormia... e era seu berço / o seio de mil deuses!») e já povoada por um anseio cósmico indefinível («Quando um tronco era peito comovido / [...] / E não se achava um só bago de areia / Que não estremecesse e não sentisse / Agitar-se-Ihe dentro a alma confusa») e a voz dos abismos é a possível expressão do mundo («Havia em tudo uma expressão profunda / Nem era muda a vastidão do mundo»), onde o «templo» é o próprio e total «espaço». Mas os deuses desaparecem, tornam-se «sombras», cativas entidades que deixam a terra desprotegida, e sentados à beira da água «então alongam / pela face do mar os olhos vagos...», ou, saudosos, «todos vagam no mundo». De sombras prisioneiras, essas entidades divinas transmudam-se em sonhos, mitos atuantes, forças obscuras mas determinadas, porém ineficazes na sua inoperância forçada pelo tempo na relação com um espaço agora vazio, o espaço da terra. A premonição do futuro é, no entanto, a de uma «luz frouxa» que surge como embrião da força profética que é ainda, neste texto, o retorno dos deuses. A linguagem é já, no entanto, a de uma perda e a de uma busca; a de um espaço desocupado mas onde ecoam as vozes da inquietação e da procura; esse espaço é já a natureza animizada, de vozes cruzadas com cânticos, num entrecruzar baudelairiano de manifestações sensíveis e psíquicas com a noção de um transcendente, mais poético que ético, a dominar a fábula pela força do retorno que as vozes e os coros acentuam.
Maria Alzira Seixo, “Antero e a poesia de ideias” 
in Congresso Anteriano Internacional – Actas [14-18 outubro 1991]. 
Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1993.
         
         
"The Gargoyle and His Quarry, Notre Dame" by John Taylor Arms
“The Gargoyle And His Quarry, Notre Dame” 
John Taylor Arms, 1920
       
         
GÉNESE E TRADIÇÃO DA SAUDADE NO DISCURSO LÍRICO
Maria Manuela Gouveia Delille, no seu estudo “A Recepção Literária de H. Heine no Romantismo Português (De 1844 a 1871)”, relata a presença e a influência de Heine na obra de Antero de Quental, chegando a analisar na lírica de Antero do último período de Coimbra, a forma de tratamento dado ao motivo heiniano dos deuses exilados (Delille, 1984: 197).
A autora no subcapítulo ‘O exílio dos deuses‘ relata o surgimento deste poema em cinco partes, inicialmente intitulado o desterro dos deuses e publicado pela primeira vez no número 92, de 14 de Janeiro de 1865, de o Século XIX, com dedicatória a Anselmo de Andrade. Em 1866, na revista o Instituto (vol. XIII, nº 3, pp. 64-67), surge o poema com o mesmo título, com ligeiras variantes e acrescentamentos.
Mais tarde em 1872, Antero insere na coletânea Primaveras Românticas, com algumas variantes e o novo título de Saudades pagãs, a versão publicada em O Instituto.
Ainda sobre esta longa composição Feliciano Ramos refere “a poesia Saudades pagãs, cheia de movimento, de vida, de amor à terra, e amplamente vivificada pela alegria luminosa e pela cor, contém uma bela profissão de helenismo, e nisto reflete uma atitude renovadora e sadia, diametralmente oposta à feição lúgubre da poesia ultrarromântica” (Ramos, 1933: 133).
Existe, também, um breve comentário de António Sérgio (Sérgio, 1984:249) sobre este poema, a quem os versos de Antero trazem à ideia, por um lado, Leconte de Lisle “no luminoso elogio das divindades gregas” por outro, Victor Hugo e Michelet “na parte profética e na exaltação da vida”. António Sérgio refere o sentimento de hostilidade ao Cristianismo em Leconte de Lisle e Antero, considerando no primeiro como saliente e intensíssimo enquanto que em Antero mal se vislumbra.
Maria Manuela Gouveia Delille, refere o poema Saudades pagãs ser um dos marcos importantes na receção da poesia de Heine em Antero. O motivo dos deuses exilados é um motivo recorrente na lírica e na prosa de Heinrich Heine.
Tal como o título original – O desterro dos deuses ‑ indica, também o longo poema de Antero trata o motivo do exílio dos deuses (Delille, 1984: 200). Apesar de várias analogias com Heine, existem também diferenças muito significativas, nomeadamente o tom declamatório, enfático e profético que Antero deixou representado nos seus versos.
Como exemplos das analogias com Heine poderemos mencionar logo na primeira estrofe a referência à flor de lótus, apaixonada pelos raios de luar, para exprimir o estado ideal de comunhão entre o homem e a natureza nesse mundo antigo.
«(…) Quando a vida
No coração dos homens, sem esforço,
Se abria como um lótus, todo cheio
Dos raios do luar e dos segredos
Do vaporoso espírito das noites!»
           
A terceira, quarta e quinta partes do poema referem o tempo presente, caracterizado como um tempo onde predomina a tristeza, a escuridão, a solidão e o exílio, predominando nelas o tom elegíaco.
Encontramos ainda outra analogia com Heine na referência à deusa Diana ‑ Die Göttin Diana, que incarna a dor pelo exílio dos deuses pagãos:
«(…) Entre as florestas,
Quando o vento do Inverno bate os ramos,
Há, pelo horror da noite, um choro escuro,
E uma voz dolorosa ao longe ulula…
É Diana, a formosa, a casta, a ingénua,
Ferida, e os pés em sangue das urzes,
Que vaga douda e corre pelas selvas
Chamando em vão os deuses foragidos»
         
Na quinta parte o poeta faz a descrição da sorte vária dos deuses durante o longo exílio ou cativeiro.
«(…) Outros, fugidos, 
Nas montanhas aéreas do horizonte
Nas nuvens do sol posto, passam tristes,
Lançando à terra um olhar de mágoa…»
         
Estes poemas fazem recordar o poema de Heine Die Götter Griechenlands, em que os deuses se apresentam ao poeta sob a configuração de nuvens brancas e fugidias.
A sexta parte é dirigida para o futuro. Num processo discursivo dialético ‑ depois de ter contraposto ao esplendor luminoso do antigo mundo pagão (primeira e segunda parte) a tristeza e escuridão desértica do presente, onde apesar de tudo os deuses expulsos e refugiados no seio da natureza conservam a sua grandeza e dignidade ‑, o poeta-vate, intérprete dos presságios que se vão avolumando, afirma triunfante o regresso iminente dos deuses e prevê a apoteose imensa que os espera (Cf. Delille, 1984: 203).
No poema de Antero a temática do exílio e regresso dos deuses pagãos parece ser um meio de anunciar a ressurreição das crenças panteístas, o despertar de uma nova vida mítico-religiosa, em que se restabelece a antiga e plena comunhão do ser humano com a natureza.
Este poema, Saudades pagãs, inicialmente intitulado o desterro dos deuses, é um poema onde predomina o tom elegíaco, referindo o tempo presente abundante de tristeza, de solidão e exílio ao mesmo tempo simbolizando um ideal de vida em plena comunhão com a natureza.
Universidade do Minho - Instituto de Letras e Ciências Humanas, dezembro 2008.
           





A angústia existencial. Figurações do poeta. Diferentes configurações do Ideal.
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
      
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>





[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/02/19/saudades.pagas.aspx

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

TORMENTO DO IDEAL (Antero de Quental)


Dark Fantasy Artworks by Tomasz Alen Kopera
        
             

TORMENTO DO IDEAL

Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr-do-sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura,
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste.
        
Antero de Quental, 1860-1862
(In: JÚDICE, Nuno. Antero de Quental – Sonetos. Lisboa, IN-CM, 1994)
      
          
QUESTIONÁRIO
       
Selecione a opção que melhor completa cada uma das seguintes afirmações:
1. No poema “Tormento do Ideal”, o eu lírico expressa 
a) esperança de que o convívio com outros poetas engrandeça o seu estilo.
b) desgosto ao se deparar com a falta de correspondência entre ideia e forma.
c) revolta pela indiferença da humanidade diante de assuntos superiores.
d) deceção diante da incapacidade espiritual e mística dos seres humanos.
e) critica contra aqueles que desprezam a literatura.
2. A ideia central do soneto esta mais bem sintetizada em 
a) “Conheci a Beleza que não morre”.
b) “sob a luz que jorre”.
c) “Como quem da serra / Mais alta [...] / vê tudo”.
d) “Pedindo a forma, em vão, a ideia pura”.
e) “matéria dura”.
3. A ideia contida na expressão “Recebi o batismo dos poetas” encontra equivalente em
a) “Conheci a Beleza que não morre”.
b) “Tropeço, em sombras, na matéria dura”.
c) “bem como a nuvem que erra”.
d) “sobre o mar discorre”.
e) “assentado entre as formas incompletas”.
       

              
TEXTOS DE APOIO
       
Realismo-Naturalismo: Antero De Quental. Benjamin Abdala Júnior (2007)
Análise literária. Darío Portela Núnez (2009)
Sonetos: pontes clássicas para a modernidadeNeilton Limeira Florentino de Lima (2007)
Depois de pensar e sentir, o que faz o poeta? Gabriel Villamil Martins (2012)
Antero de Quental: método paradoxal, pontual. Alberto Pimenta (1992)
     
          
          
         
          
         

REALISMO-NATURALISMO: ANTERO DE QUENTAL
O soneto “Tormento Ideal” exemplifica o caráter de tensão ideal/real (forma material) em Antero.
O poeta frustra-se por não conseguir uma síntese entre o conhecimento subjetivo (ideia) e o objetivo (formas reais). Uma “ideia pura” pediria uma forma plena, totalizadora, para assim chegar-se a uma síntese de absolutos. O poema bem feito (forma) seria a manifestação concreta do absoluto. Nas formas clássicas, segundo o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), haveria a adequação entre forma e conteúdo, mas isso não ocorre no poema romântico, em que o conteúdo extravasaria a forma. Antero, na época, um dos maiores conhecedores da dialética hegeliana em Portugal, mostra-se à procura do equilíbrio clássico perdido, em que haveria a síntese da forma/conteúdo em comunhão com o absoluto. […]             
Literaturas de língua portuguesa: marcos e marcas. Portugal, Benjamin Abdala Júnior, São Paulo, Arte & Ciência, 2007
     
          
ANÁLISE LITERÁRIA
Este soneto é dos que Antero elaborou entre os anos 1860-1862. O título do mesmo já obriga a pô-lo em relação com o Prefácio de Oliveira Martins quando diz:
“[...] É que o geral da gente não sabe que as tempestades da imaginação são as mais duras de passar! Não há dores tão agudas como as dores imaginárias. Não há problemas mais difíceis do que os problemas do pensamento, nem crises mais dolorosas do que as crises do sentimento. As agonias dilacerantes da morte com as ânsias da morte com as ânsias do estertor, os horrores mais inverosímeis dos crimes monstruosos, as aflições mais pungentes da saudade, as tristezas mais dolorosas da solidão, as lutas do dever como a paixão, os gritos do homem arruinado, os ais da orfandade faminta... tudo, tudo quanto no Mundo pode haver de doloroso, desde a miséria até à prostituição, desde o andrajo até ao veludo arrastado pela imundície, desde o cardo que dilacera os pés até ao punhal que rasga o coração: tudo isto é menos do que a agonia de um poeta vendo passar diante de si, em turbilhão medonho, as lúgubres misérias do Mundo. Todas as aflições têm o seu quê de imaginativas, e por isso há apenas uma espécie de homens que não sentem: são os cínicos, esses que perderam os nervos da moralidade, anestesiados do sentimento. [...]” 
No primeiro quarteto diz que apesar de ter alcançado a beleza ideal (ele remarca os conceitos transcendentais e filosóficos com maiúscula: Beleza), que é imperecedoira, ficou triste. Como demonstra no segundo quarteto, esse ideal de beleza não tem correspondências no mundo real onde adoece de imperfeições (“perder a cor”) e, por mais que procura a “ideia pura” (primeiro terceto) de forma caprichosa (como indica Oliveira Martins no Prefácio) nos elementos da realidade, descobre que o material apenas lhe oferece “sombras” e “a imperfeição de quanto existe”. Conclui sentenciando que, como chegou a ser poeta, pode possuir intelectualmente os ideais da perfeição, mas ficou para sempre triste e saudoso por não ser capaz de atopar essa verdade no mundo real e sensorial do resto dos humanos.
António Sérgio enquadra este poema de juventude de Antero no que ele denomina “Ciclo do sentimento pessimista”. Este sentimento quase-lúgubre (“Tropeço em sombras”) vem dado pelo contraste entre o ideal e o real que poderemos atopar noutras composições. É assim como Antero justifica esta atitude através duma concatenação de imagens (“Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre...”). E, como nos mostra António Sérgio, a imagem da “nuvem que erra” devemos pô-la em relação com outros seus sonetos deste ciclo (“Velut Umbra”) e do “Ciclo Do desejo de evasão” (“Das Unnembare”) que verificam a mudança do próprio poeta ao perceber como a beleza e a ostentosidade de a possuir (“...Como quem da serra/Mais alta que haja, olhando aos pés a terra/ E o mar, vê tudo...”) se lhe vão no mundo real.
Ó nuvens do Ocidente, ó coisas vagas,
Bem vos entendo a cor, pois, como a vós,
Beleza e altura se me vão em fumo!
(“Velut Umbra”)
       
Mas que destino o meu! E que luz baça 
A desta aurora, igual à o sol-posto,
Quando só nuvem lívida esvoaça!
(“Das Unnembare”)
     
Mas, talvez, conviria ter em conta as apreciações que o companheiro do autor, Oliveira Martins, faz ao respeito no Prefácio aos sonetos:
“[...] O próprio do génio é querer realizar o irrealizável; é ser quimérico, no sentido crítico da palavra, quando por quimera entendemos uma verdade essencial que não pode todavia reduzir-se a fórmulas compreensíveis, ou uma coisa cuja realidade se sente, sem se poder ver. [...]” (Sérgio, 1976: LXVIII)
Resulta muito interessante, também, estabelecer nesta análise como é que António Sérgio entende ao autor do XIX português que estamos a analisar para enquadrarmos esta composição no decorrer da sua obra poética. O crítico fala-nos do Antero “luminoso” (o intelectual) e o “noturno” (fisiológico, sentimental, sensível). A faceta primeira tem uma datação concreta, mentres a qualidade lúgubre do Antero noturno acompanhá-lo-ia de por sempre.
“[...] Se por «Antero» entendermos uma doutrina, será justo afirmar-se que o seu pessimismo foi «transitivo», que «conhece datas», como diz muito bem Joaquim de Carvalho; que «nasceu por 1874, desenvolveu-se de 1876 a 1882, declinou e extinguiu-se nos anos imediatos de modo que em 1886 o situava sem nostalgia numa região espiritual já percorrida»; mas o Antero do «resto», isto é, o temperamental, o sensível, ‑ esse manifestou durante toda a vida a atitude sentimental do pessimista. Ao soneto Despondency, por exemplo, de 1864 (tinha o poeta 22 anos), nada o poderá talvez superar como poética expressão de tal atitude; e são do último ciclo (1880-84) o Elogio da Morte, o Oceano Nox, o O que diz a Morte, todos de sentimento pessimista. Finalmente, sob tal aspeto, surge como confirmação o próprio suicídio (1891). [...]” (Sérgio, 1976: 75)
Oliveira Martins, pela sua parte, denuncia o período em que se inscreve este soneto (1860-1862, que se corresponde co Antero mais romântico, de atendermos às considerações de Nuno Júdice) como o de um autor duma “alma sensível, mas patenteia já a preocupação metafísica na sua fase rudimentar de dúvida teológica, e apresenta uns assomos de tristeza que são como os farrapos de nuvens quando velam intermitentemente o Sol, deixando antever a tempestade para o dia seguinte.” Repare-se na alusão de Martins às nuvens, imagem analisada mais arriba quando falávamos da beleza material fugidia. Contudo, e como já sugerimos há um pouco, Oliveira Martins não tem uma postura coincidente com a de críticos posteriores como Nuno Júdice, quem aposta pela filiação mais bem romântica deste trecho cronológico com respeito às composições anterianas (Júdice, 1994: 8). Martins sustem que o seu colega não seguiria escolas nem correntes clássicas, senão que a sua foi, uma conceção literária eminentemente pessoal, mas imbuído pelas inovações chegadas de Paris (Michelet, Quinet, Vera-Hegel, etc). Mas deixemos estas discussões para um trabalho mais geral e completo da obra de Quental.         
     

          

         
         

SONETOS: PONTES CLÁSSICAS PARA A MODERNIDADE
No soneto Tormento do ideal, inserido no período de 1860 a 1862, encontramos os seguintes versos plenos de pessimismo e de ideias contrapostas entre a realidade vivida, desejada ou imaginada e o ideal do homem-poeta, na voz do eu lírico, cujo título prenuncia, anunciando uma ‘despedida‘ dos elementos terrenos, porém sentindo-se pequeno diante da imagem que os olhos alcançavam, mas que a mão poética ‘não conseguia‘ exprimir. Desvelando o duplo papel do poeta em seu ofício: ―Pedindo à forma, em vão, a ideia pura, / Tropeço, em sombras, na matéria dura, / E encontro a imperfeição de quanto existe‖, ao utilizar a forma já ‘gasta‘, renovando-a e, por meio da idéia, modernizando o verso. E nesse jogo, entre ver e realizar em versos a visão emocionada, a forma por si só é pouco. Os enjambements do 1.º quarteto exemplificam o hiperbolismo e explanação dos versos: som e sentido. Enjambement, recurso que fora banido no século XVII e retornara a partir dos românticos no século XIX, cabendo à razão e ao pensamento-sentimento realizar o soneto a partir do 2.º quarteto, cujas visões, em passagem crepuscular, diurnas e terrenas: serra, terra, mar, nau, torre, mesclam-se com as noturnas internalizadas no eu repleto de incertezas e indefinições: triste, minguar, fundir-se, perder a cor; nos tercetos o ‘equilíbrio‘ entre o poeta que se assume, não meramente formalista, mas embebido racionalmente da sua missão: ser sempre pessimista diante da visão que o mundo lhe passava, ainda que ciente da eternidade da Beleza, cuja forma o soneto decassílabo angustiosamente lhe permitia explorar. Ora pela temática, ora pelas rimas consoantes em abba abba ccd eed (interpoladas e emparelhadas), mantendo a musicalidade e o tom grave e lúgubre em consonância com a significação das palavras. Ou seja, realizando a catarsis e o encantamento, via versos e verbos, das forças cósmicas e humanas (a partir do eu pessoal e do lírico), percebida por António Quadros, quando afirma:
(...) no modelo poemático das duas quadras e dos dois tercetos (em si próprio itinerário) foi possível a Antero de Quental encontrar a estrutura dialética capaz de fazer ascender os conceitos nascidos da observação e da reflexão ou dos juízos de valor sobre a existência problemática do homem neste mundo até a uma conclusão de ordem metafísica. (QUADROS, António. Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa. Lisboa: Editora Átrio, 1992, p. 42)
e a partir da forma clássica, a metalinguagem que o soneto em si já sugere, com Antero ampliando para temáticas explanadas por um eu lírico em crise, agônico, atormentado entre o idealizado e a realidade, entre a beleza subjetiva e o objetivismo racionalista que a sua Arte procurava. Ele, o artista moderno, pessimista quanto ao futuro sombrio, mas ciente do seu papel enquanto versejador, ― poeta em busca‖, conforme conceitua José Rodrigues de Paiva (2003), da forma ideal, da beleza, confrontando-se com a impossibilidade e ausência desta.
         
“Sonetos: pontes clássicas para a Modernidade” in Diálogo poético entre Antero de Quental e Augusto dos Anjos: a modernidade luso-brasileira  (Dissertação de mestrado). Neilton Limeira Florentino de Lima. Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 2007, pp. 31-32.
     
          



         
         
DEPOIS DE PENSAR E SENTIR, O QUE FAZ O POETA?
Antero propõe uma missão ao poeta e dá à poesia um sentido não imanente, mas o de propor um ideal à sociedade.
Eis um exemplo do que havíamos classificado de poesia subjetiva de Antero. Este soneto não mostra um apelo explícito a que se tome uma atitude frente a um estado de coisas no mundo. Ele tem aquela função terapêutica por excelência: abrir uma via de comunicação entre poeta e subjetividade. A forma é a do soneto tradicional, composto por duas quadras e dois tercetos (o esquema das rimas é abba / abba / ccd / eed). Cabe aqui lembrar que a progressão convencional do soneto é mantida: os dois quartetos, inclusive por sua idêntica combinação de rimas, reproduzem uma atitude estática, que será contraposta nos tercetos, sendo que o movimento expressado nestes cessa quando finda o poema, com o último terceto sendo o fecho de ouro.
No primeiro quarteto tem-se alguém contemplativo, ou melhor, alguém que narra um estado contemplativo que aconteceu em um tempo passado. “Conheci a Beleza que não morre / E fiquei triste (...)”; ora, já a contradição nos encontra. Como poderia alguém ficar triste diante de uma beleza eterna e de inigualável esplendor? Um sentimento como tal seria cabível em um homem que estivesse desiludido... e temos então o possível estado de ânimo do poeta. Ao contrário do que se percebe em poesias como Mais Luz!, onde tudo o que é radiante e luminoso é também salutar, a luz doTormento do Ideal é ofuscante e excessiva. Tanto que apaga, desbota e faz minguar os contornos de tudo quanto existe no mundo como a nuvem perde a cor ao errar ao pôr-do-sol. Tudo está, posto que iluminado, sem vida nem tonalidade, e a imagem de uma nuvem que se desvanece ao crepúsculo lembra dissolução. Não é um cenário romântico, mas a desesperança que toma conta de um espírito. E diante das desilusões, principia o movimento do primeiro terceto: o “eu” pede à forma algo que ela jamais poderia conceder. A ideia pura não reside na concretude das formas, mas na abstração do pensamento, e nesta ânsia de sair de si o “eu” tropeça... na matéria dura.
A “imperfeição de quanto existe” está para a deceção como a ideia pura estaria para a satisfação do desejo de um mundo perfeito que não há. E é neste estado de queda que se recebe o “batismo dos poetas” e se fica assentado “pálido e triste” (a luz é nociva) entre uma profusão de formas incompletas e ilusões que agonizam. Este conjunto de imagens, juntamente com a noção do movimento que existe no poema, faz aparecer nada menos que a sensação de queda (de espírito, de ânimo, o tropeço na matéria dura), outro traço recorrente em Antero. Começa-se em um ápice luminoso, a que se segue uma estado vacilante, sucedido pela queda e, finalmente, chega ao impacto (outro soneto onde este efeito aparece ainda mais nítido é No circo, em que ao término da queda o “eu” está mudado em uma fera selvagem). Em um esforço ousado de interpretação, diríamos que este movimento de quem está em queda vem fazer par àqueles poemas em que o “eu” parece estar em um êxtase apolíneo, em que tudo é possível, só bastando ir adiante irradiando as chamas de um novo tempo que virá com a revolução.
Ao se analisar cronologicamente o grande conjunto da obra anteriana, seu percurso global se assemelha mesmo ao de uma gigantesca queda que se reflete trágica e literalmente na vida do autor, talvez por tanto ter acreditado em um ideal colossal, divino e miraculoso reservado aos poetas:
O ideal quer dizer isto: desprezo das vaidades; amor desinteressado da verdade; preocupação exclusiva do grande e do bom; desdém do fútil, do convencional; boa fé; desinteresse; grandeza d'alma; simplicidade; nobreza; soberano bom gosto e soberaníssimo bom senso... tudo isto quer dizer esta palavra de cinco letras—ideal. (Bom Senso e Bom Gosto).
       
Antero de Quental é amiúde percebido como um místico por alguns daqueles que foram seus grandes companheiros, como Oliveira Martins. É místico tanto quanto é filósofo, e talvez seja inadequado falar em um Antero luminoso e outro noturno se o assumirmos como o homem que cai, como um poeta da queda. Aliás, não há que se falar em uma estética anteriana que não leve em conta o pensamento integralmente moralizante do autor, que enxergava o sublime exatamente no facto de se ter um ideal e por ele perecer...
Cahiram [Atenas, Roma, Jerusalém], mas deram ao mundo um espectaculo raro—o espirito e a consciencia humana triumphando da materia e brilhando no meio das ruinas como a chamma que se alimenta da destruição da lenha d'onde sahe e que a gerou. Eu não sei se v. ex.ª acha isto sensato e de bom gosto. Cuido que não. O que eu sei sómente é que isto é sublime.
         
No entanto, é a matéria dura que o faz tropeçar. A mesma matéria que ilude os sentidos e prejudica que se tenha uma visão límpida do mundo. Estas conceções são, tanto quanto a dualidade nos conceitos que se opõem, provavelmente o que mais se assemelharia ao pensamento platônico: existem as formas e as Formas, isto é, tudo o que podemos perceber por intermédio de nossos sentidos diz respeito às formas, às coisas mundanas que são experimentadas através das sensações. As Formas são a perfeição cujo esplendor total jamais poderá ser contemplado pelo homem enquanto sua alma estiver encarnada, sendo que o máximo possível é aproximarmo-nos delas através da prática e do estudo da filosofia. Somente este exercício do conhecimento faz com que a alma se habitue à investigação pautada pela razão e pela pesquisa que procura o Bem e a Verdade. E, se são estes os seus alvos, imediatamente ela também procura o Belo em seu entendimento platônico. Uma beleza que não morre, uma beleza eterna é inteiramente justiça, harmonia, verdade e temperança que se encontram no reino das Formas. De facto, a famosa alegoria da Caverna, talvez a que sintetize mais e melhor o cerne da filosofia de Platão, está para a literatura assim como os poemas de Antero estariam para a filosofia: Platão lança mão de um belo recurso literário para explicar um problema filosófico (o de que não nos devemos ater às impressões, mas à razão), e a filosofia é a matéria-prima moldada por Antero até o ponto em que adquire um matiz predominantemente literário.
Pedindo à forma, em vão, a ideia pura / Tropeço, em sombras, na matéria dura: se para Platão as sombras são tudo o que o homem aprisionado na Caverna é capaz de ver antes de descobrir a Verdade, para Antero elas são o motivo de tropeço e cegueira que impede a visão de uma luz reveladora que o levaria à ideia pura e ao bem supremo. A beleza que Antero deseja é a que Platão louva e ao mesmo tempo é outra beleza, porque traz desânimo e tristeza a quem vai ao seu encalço e não a contempla por muito tempo, ao passo que a beleza platônica é algo divino e inatingível em seu todo – ao menos na vida carnal do homem – e é ainda um elemento fundamental para a filosofia e religião platônicas. Victor Goldschmidt adverte que “Platão distingue dois males na alma: a maldade, que é como uma doença, e a ignorância, que é como uma feiura.” E mais: “não se filosofa nem no céu nem nos infernos; não se filosofa senão em terra” (GOLDSCHMIDT, 1963; p. 82). Os deuses do Olimpo desprezam a feiura e, logo, o vício; e o estudo em busca de verdade torna belos o corpo e a alma dos que empreendem este esforço, conferindo-lhes vontade e vigor para avançar sempre rumo à Beleza verdadeira, sem jamais ser causa de desânimo.
          
A estética por Antero de Quental: percepção artística expressada na poesia”, Gabriel Villamil Martins.  Revista Nau Literária: crítica e teoria de literaturas. Vol. 08, n.º 02, jul/dez 2012. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
     
          



         
         
ANTERO DE QUENTAL: MÉTODO PARADOXAL, PONTUAL
O ato estético (ou ato criador de conhecimento estético) consiste exatamente em dar ordem a uma falta de ordem, ou a uma desordem, ou a uma ordem diferente do reportório. A ordem semântica é uma ordem menor, é uma ordem estática (dito isto sem intenção de fazer jogo de palavras). O reportório em si, como diz Bense, encontra-se num estado caógeno, que tende para o caos, ou gerador de caos em si mesmo: através da seleção e estruturação, o ato estético confere-lhe uma certa ordem, dotada duma energia superior. Isto é homólogo do que se passa com a vida em termos biológicos, que pode definir-se como uma estrutura que se mantém coesa por dispor dum grau de energia superior ao do ambiente. Assim o ato estético cria um estado que permite o conhecimento estético, ou seja, um estado com um grau de energia superior ao da energia do reportório e dos objetos que o constituem, que são físicos ou semânticos, ou as duas coisas. Por isso, os nossos discursos triviais se desagregam; cumprida a sua missão semântica regressam ao caos do reportório, não dispõem de energia superior à do ambiente, que lhes dê coesão própria e os mantenha vivos, isto ao contrário p. ex. dos poemas de Antero de Quental que, graças à energia estética própria, não se desagregaram, continuam vivos. Claro que os ameaça no tempo a tal interpretação semântica, quer dizer, a redução a um estado de energia mais simples. De facto, que razão de permanência poderá ter um discurso que se lê como uma divagação sobre o conflito decorrente da existência física de opostos, ou da existência oposta física e metafísica? Por este processo, fica-se num "trabalho de Penélope", que é como o próprio Antero define a história: desfaz de noite o que faz de dia.
Num sector de pesquisa muito diverso do de Max Bense, um psiquiatra também alemão, Henning Albers, define o conhecimento como uma projeção no objeto da ordem interior do sujeito, e define loucura como o estado interior de caos que se projeta no mundo exterior.
Ora bem: a perspetiva objetiva de Max Bense e a perspetiva subjetiva de Albers podem combinar-se com resultados surpreendentes. A tradição antiga atribui ao poeta uma "divina loucura", a fonte de inspiração que preside ao tal ato seletivo, ou criativo, do material que passa do caos, do estado informe, para a forma estética. Combinando as duas reflexões, talvez possa admitir-se com muita plausibilidade que o que sucede na organização de estados estéticos é tanto do domínio interior como do exterior, ou digamos: a seleção operada com os elementos exteriores que produz a passagem do caos a uma ordem superior é reflexo duma seleção homóloga operada a nível interior. Falo em seleção operada com elementos "exteriores", porque a seleção estética implica não os ter interiorizado, não ter interiorizado a semântica convencional.
Há que admitir que a ideia antiga da "divina loucura" do poeta tem a sua razão de ser. O poeta não está imerso ou submerso no caos interior chamado loucura; se assim fosse, não lhe seria possível proceder a nenhuma espécie de ordenação de materiais de conhecimento ou, ainda que o fizesse de modo auto-satisfatório, permaneceria ininteligível, o que não é o caso. De resto, como exemplo dessa situação, temos as poesias da fase da loucura de Hölderlin.
Por outro lado, ele também não está imerso, não interiorizou o código pré-estabelecido (no sentido de o aceitar plenamente); se assim fosse, todo o seu discurso, crítico ou não, se daria a nível semântico. O ato criativo no sentido estético parece pressupor um contato qualquer com o caos. É portanto plausível que o poeta se mova, no que toca ao seu conhecimento interior do mundo, exatamente na fronteira do caos (da chamada loucura) com a ordem semântica do código pré-estabelecido. Ele é então aquele que conhece os dois lados, e que por isso tem capacidade, está em condições de apanhar dum lado elementos desconhecidos e os ordenar do outro, de modo novo, inovador, mas ainda inteligível, embora não no sentido semântico restritivo. Porque "estética", não esqueçamos, etimologicamente é conhecimento físico, sensorial. Devolver aos sentidos o que a razão lhes roubou, sem que no entanto com isso resolvesse os problemas de consciência do mundo, os problemas de conhecimento.
           
Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço em sombras na matéria dura,
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste.
             
Podia pôr-se ao lado de Camões, do último verso do soneto que começa "Transforma-se o amador...", o qual é: "Como a matéria simples busca a forma". Aqui é "pedindo à forma a ideia": matéria, forma, ideia, ou caos ‑ ordem.
Isto são "Tormentos do ideal" (é o título do soneto), não do real, isto não tem nada que ver com a vidinha de cada um, está além de pessoas, épocas e escolas, porque isto é a poesia a falar de si mesma-poesia, da necessidade da sua presença na sua presença, da sua ordem na sua ordem, etc. E qualquer análise semântica ficaria pendurada num só ramo, caso esquecesse o outro soneto em que "a ideia" haveria de ser coisa palpável para ser coisa que satisfizesse:
            
Mas a Ideia quem é? quem foi que a viu,
Jamais, a essa encoberta peregrina?
Quem lhe beijou a sua mão divina?
Com seu olhar de amor quem se vestiu?

Pálida imagem que a água de algum rio,
Refletindo, levou... incerta e fina
Luz que mal bruxuleia pequenina...
Nuvem que trouxe o ar... e o ar sumiu...

Estendei, estendei-lhe os vossos braços,
Magros da febre dum sonhar profundo,
Vós todos que a seguis nesses espaços!

E, no entanto, ó alma triste, alma chorosa,
Tu não tens outra amante em todo o mundo
Mais que essa fria virgem desdenhosa!
        
Reduzir por conseguinte estes tormentos, que são explicitamente do ideal, a tormentos existenciais e pessoais, a graus de sofrimento psicológico, é mero trabalho de legendagem para quem não quer ou não pode chegar à língua original.
         
Antero de Quental: Método paradoxal, pontual”, Alberto Pimenta. 
Revista de Guimarães, n.º 102, 1992.
           

Sorrowing Old Man (At Eternity's Gate) by Vincent van Gogh
"Sorrowing Old Man (At Eternity’s Gate)"
por Vincent Van Gogh, em 1890
         
A angústia existencial. Figurações do poeta. Diferentes configurações do Ideal.
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 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


 [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/02/13/tormento.do.ideal.aspx]