AD AMICOS1
Propter solatium2
Renasço, amigos, vivo! Há pouco ainda
Disse ao viver: «Afunda-te no nada!»
E já, bem vedes, surjo à luz dourada,
‑ No lábio o rir, no peito esp'rança infinda!
Ah, flor da vida! flor viçosa e linda!
Envolto na mortalha regelada
Do só pensar ‑ perdão! ‑ foste olvidada...
Flor do sentir e crer e amar... bem vinda!
A vida! como a sinto, ardente, imensa!
Não única! tomando a imensidade!
Livre! perante Deus surgindo forte!
Que amor! que luz! que pira vasta, intensa!
Plenitude! harmonia! realidade!
Mas melhor que tudo isto é sempre a morte!
Disse ao viver: «Afunda-te no nada!»
E já, bem vedes, surjo à luz dourada,
‑ No lábio o rir, no peito esp'rança infinda!
Ah, flor da vida! flor viçosa e linda!
Envolto na mortalha regelada
Do só pensar ‑ perdão! ‑ foste olvidada...
Flor do sentir e crer e amar... bem vinda!
A vida! como a sinto, ardente, imensa!
Não única! tomando a imensidade!
Livre! perante Deus surgindo forte!
Que amor! que luz! que pira vasta, intensa!
Plenitude! harmonia! realidade!
Mas melhor que tudo isto é sempre a morte!
(1859 a 1863)
Antero de Quental, Raios de Extinta Luz
_________________1 Expressão latina: «Aos amigos».2 Expressão latina: «Para (vossa) consolação».1. Demonstre, com expressões do poema, que quase todo ele (13 versos) constitui um cântico de exaltação da vida.2. O último verso do poema poderá considerar-se uma conclusão lógica do soneto? Justifique a sua resposta.3. Delimite as duas partes em que o poema se divide e confirme que elas se relacionam antiteticamente.António Afonso Borregana, Antero de Quental. O Texto Em Análise - Ensino Secundário, Lisboa, Texto Editora, 1998
AD AMICOS
Em vão lutamos. Como névoa baça,
A incerteza das coisas nos envolve.
Nossa alma, em quanto cria, em quanto volve,
Nas suas próprias redes se embaraça.
O pensamento, que mil planos traça,
É vapor que se esvai e se dissolve;
E a vontade ambiciosa, que resolve,
Como onda entre rochedos se espedaça.
Filhos do Amor, nossa alma é como um hino
À luz, à liberdade, ao bem fecundo,
Prece e clamor dum pressentir divino;
Mas num deserto só, árido e fundo,
Ecoam nossas vozes, que o destino
Paira mudo e impassível sobre o Mundo.
Antero de Quental, Sonetos Completos
1. Indique de que forma os sonetos transcritos confirmam (ou não) esta afirmação de Vitorino Nemésio: «[…] a dificuldade ao abeirarmo-nos deste homem genial [Antero]reside na contradição aparente do seu espírito, tão depressa elevado a uma esfera de doce conformidade como abatido a um abismo enegrecido de desesperos».2. Justifique o emprego da conjunção adversativa no verso 12.3. Saliente a expressividade da comparação e da metáfora.Ser em Português 12ºA (coord. A. Veríssimo, Areal Ed.,1999).
PERFIL BIOGRÁFICO, CULTURAL E LITERÁRIO
O poeta e filósofo Antero Tarquínio de Quental, português nascido em Ponta Delgada, capital dos Açores, na ilha de São Miguel a 18 de abril de 1842, revolucionou o contexto literário e político da sociedade coeva, plena de um Romantismo decadente.
Em 1852 segue para Lisboa, junto à mãe Ana Guilhermina da Maia para estudar no colégio Pórtico, na época dirigido pelo poeta António Feliciano de Castilho.
Quatro anos depois encerra os estudos preparatórios para entrar na Universidade de Coimbra, e escreve seus primeiros versos (mais tarde publicados nas revistas literárias: Prelúdios Literários, O Académico e O Fósforo). Cursando Direito, em 1858 participa da Sociedade do Raio, grupo secreto que trará os nomes de: José e Alberto Sampaio, António Azevedo Castelo Branco, João de Sousa Avelino, entre outros também estudantes ávidos por mudanças naquele meio académico.
Além de escrever folhetos e textos para os jornais da Universidade, tem, em 1861, publicado os seus primeiros Sonetos, prefaciados por João de Deus, poeta e amigo do jovem (a quem dedicou o artigo ―”A propósito de um poeta”).
A partir de 1865 cresce a sua produção e atuação escrita e política na sociedade portuguesa, em que destacamos: o opúsculo Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX contra a chamada opinião liberal, louvando a figura do Papa antiliberal e antiprogressista; a 1.ª edição das Odes Modernas (dedicada ao dileto amigo Germano Meireles); a divulgação da carta destinada a Castilho, intitulada Bom Senso e Bom Gosto, polemizando e gerando a Questão Coimbrã (revolucionando o meio intelectual e literário); e o folheto A Dignidade das Letras e As Literaturas Oficiais. Nesse mesmo ano o poeta destrói algumas poesias sentimentais.
No ano seguinte viaja a Paris com dois intuitos: oferecer um exemplar das Odes, para Michelet e trabalhar como tipógrafo, passando por lá cerca de cinco meses, e voltando desiludido, já com sintomas de um mal que o acompanharia por toda a vida: os problemas físicos que o levariam a quadros de depressão e angústia.
Em 1868, já na cidade de Lisboa, após ter passado um ano em São Miguel, participa do Cenáculo, grupo que defendia as ideias de uma República Federal Ibérica, com as figuras históricas de Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, entre outros.
Passados os anos, em 1871 inaugura as Conferências do Cassino, logo proibidas pelo governo, por seu teor ‘subversivo‘, proferindo na conferência o texto ―As causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos séculos”.
E, para aliviar os males do corpo e os problemas familiares, dedica-se ao estudo das línguas, da literatura comparada e da filosofia, além de iniciar uma tradução do Fausto de Göethe.
No ano seguinte, publica as Primaveras Românticas — Versos dos vinte anos e o folheto político O que é a Internacional, de cunho socialista.
Seu pai Fernando de Quental falece no outro ano, justamente quando o poeta retornara à ilha natal.
Em 1875 sai a segunda edição das Odes (contendo treze novos poemas, substituindo alguns eliminados, que estavam na primeira edição), mas em contrapartida suas crises aumentam. O que, no ano posterior é agravada com o falecimento da mãe. Seguem os anos... dividindo as dores e tempestades psicológicas, com as visitas dos amigos, principalmente Oliveira Martins, companheiro sempre presente, inclusive evitando, em 1879, a primeira tentativa de suicídio do poeta, ao tirar de suas mãos o revólver com que tentara se matar.
Em 1881, retorna à Vila do Conde, desejando buscar ares melhores para viver, porém as alegrias são poucas, entre elas a publicação dos Sonetos, pela Biblioteca Renascença.
É no ano de 1885 que Antero inicia sua preciosa amizade epistolar, mais tarde pessoal, com a filóloga Carolina Michaëlis de Vasconcelos, basilar para a divulgação dos seus versos.
No ano seguinte surgem seus Sonetos Completos (com 109 sonetos, e cinco poemas em quadras, devidamente ‘salvos‘ por Martins, antes do poeta, em uma das suas crises, tentar rasgá-los).
Em 1890 acontece o Ultimato Britânico nas celeumas políticas e econômicas da Inglaterra com Portugal, e Antero é chamado para assumir a presidência da Liga Patriótica do Norte, mais um fracasso pessoal do país e do homem, fazendo-o voltar, definitivamente, para S. Miguel.
Em 1891, ano fatídico, em 11 de setembro suicida-se com dois tiros na boca, na ilha que o acolheu derradeiramente.
No seu tempo tornou-se a voz do novo pensamento de Portugal, bebendo nas fontes da filosofia alemã, de Hegel e Schopenhauer, e na francesa, de Michelet e Proudhon (seu autor preferido). Bem como no universo poético vindos da França, Alemanha e Inglaterra, construindo ideologicamente, em seu país, o Realismo, junto a Eça de Queiroz e outros companheiros. Antero também anunciou o Simbolismo em Portugal, que viria surgir em 1890, e preparou o surgimento do Modernismo de 1915, que traria em Fernando Pessoa o idealizador.
Neilton Limeira Florentino de Lima, Diálogo poético entre Antero de Quental e Augusto dos Anjos: a modernidade luso-brasileira (Dissertação de mestrado). Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 2007, pp. 11-13
TEMÁTICA, ESTILO E LINGUAGEM DA POESIA DE ANTERO DE QUENTAL
- Amor (retrato da mulher anjo como reflexo da "divina formosura", característica dos românticos, lirismo de êxtase);
- Sonho (transfiguração do ambiente circundante, tendência para a evasão através do sonho);
- Morte (presença da noite, debilidade espiritual, a dor de Ser, solidão, ceticismo);
- Tédio (inquietações metafisicas, introversão);
- Sentimento/Razão (um sentimento de contraste e consciência da limitação de todas as coisas, perspetiva filosófica da vida e do mundo, anseio de renovação moral e social);
- Grandes ideais (Liberdade, Justiça, Amor, Bem, poesia de combate);
- Religiosidade (busca de um Deus diferente);
- Tom arrebatado e solene;
- Grande expressividade semântica e morfológica (verbos, adjetivos, advérbios, conjunções adversativas e copulativas);
- Linguagem clássica ("coorte"," verbo", etc.);
- Expressividade sonora e rítmica (encavalgamento, rima monótona, aliteração, polissíndeto, anáfora);
- Uso de determinados recursos estilísticos como forma de expressão dos seus estados de espírito (vocativo, reticências, interrogações);
- Alegorias (Ideia, Razão, Noite, Morte, etc.);
- Forma dialogada em alguns poemas.
Cecília Sucena e Dalila Chumbinho, Sebenta de Português: Antero de Quental – introdução ao estudo da obra, Estoril, Edição da papelaria Bonanza, [Edição: 2006]
A angústia existencial. Figurações do poeta. Diferentes configurações do Ideal.
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► Apresentação
crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero
de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo
da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/10/09/ad.amicos.aspx]